Este tempo de isolamento, que todos vivemos em nossas casas, é uma passagem que nos questiona e nos desafia. Para alguns poderá ser um tempo de maior interioridade, para outros de maior tensão e esforço, para outros ainda de profunda solidão. Nesta exigência de elaborar o sentido do que estamos a viver, a Comunidade da Capela do Rato partilha contributos a partir de experiências e competências pessoais.
O Cardeal José Tolentino Mendonça propõe-nos uma oração pedindo a Deus que nos livre de tantos virus.
A jornalista e escritora Leonor Xavier põe em relação o desabrochar da primavera com o recolher das pessoas em suas casas.
A psicanalista Carmo Sennfelt, em sua experiência de isolamento, reflete sobre solidões.
A Sandra Chaves Costa, coordenadora de «O Gabinete de Escuta», propõe dois textos que podem ajudar a integrar o sofrimento e a solidão: «Período duplamente profilático» e «Que sentido tem tudo isto?».
Cardeal José Tolentino Mendonça
Livra-nos deste vírus e de todos os outros.
Livra-nos, Senhor, deste vírus, mas também de todos os outros que se escondem dentro dele.
Livra-nos do vírus do pânico disseminado, que em vez de construir sabedoria nos atira desamparados para o labirinto da angústia.
Livra-nos do vírus do desânimo que nos retira a fortaleza de alma com que melhor se enfrentam as horas difíceis.
Livra-nos do vírus do pessimismo, pois não nos deixa ver que, se não pudermos abrir a porta, temos ainda possibilidade de abrir janelas.
Livra-nos do vírus do isolamento interior que desagrega, pois o mundo continua a ser uma comunidade viva.
Livra-nos do vírus do individualismo que faz crescer as muralhas, mas explode em nosso redor todas as pontes.
Livra-nos do vírus da comunicação vazia em doses massivas, pois essa se sobrepõe à verdade das palavras que nos chegam do silêncio.
Livra-nos do vírus da impotência, pois uma das coisas mais urgentes a aprender é o poder da nossa vulnerabilidade.
Livra-nos, Senhor, do vírus das noites sem fim, pois não deixas de recordar que Tu Mesmo nos colocaste como sentinelas da Aurora.
José Tolentino Mendonça
Leonor Xavier, jornalista e escritora
Desimportâncias
O sentimento do mundo ou a metamorfose do medo, desimportâncias em tempo de retiro no campo
Nas desimportâncias das nossas vidas está o fundamental da vida. Nestes dias de retiro, penso nos que sofrem. Imagino os modos de violência, as faltas de espaço, as faturas a pagar ou a receber, os empregos, a instabilidade. As faces imensas da pobreza, da exclusão, do abandono. Penso naqueles que cuidam de nós nos hospitais, nos que nos assistem e socorrem, nos que nos informam. E ainda também penso na desigualdade de condição e circunstâncias entre todos nós, os portugueses, e vou descobrindo transformações. Nos privilegiados, sinto a consciência do conforto, apesar da interrogação sobre o futuro que há de vir. Oiço agora expressões de misericórdia, conheço rituais de privacidade, desabafos de tolerância. Nasceu uma nunca imaginada intensidade de comunicação. Conversas ao telefone, sem pressa de desligar. Recados, mensagens, sinais de presença, na formal ausência. Usamos a primeira pessoa do singular, e apesar do universo virtual que nos vai devorando, ainda existe o gosto da viva voz. O espaço da casa é metáfora para falar de amor, na descrição dos pequenos gestos. O discurso direto dispensa erudição, diz o simples correr dos dias, exprime a nossa humana fragilidade. A aparência perdeu significado, a vaidade não tem vez, o poder deixou de ser ambição. Na invenção de novos saberes, revelam-se habilidades, imaginações. Os mais velhos e os mais novos passam conhecimentos, técnicas e truques são trocas, na reinvenção do tempo que nos sobra. Assisto a uma desconhecida metamorfose do mundo.
Eu vinha por dois dias ao campo e por puro acaso acabei ficando, já duas semanas passaram. Admiro a natureza, cada manhã acordada de verde, a rebentar de folhas nos troncos ainda despidos, quando cheguei. Creio na obra perfeita da Criação, quando olho o desenho das nuvens, o recorte das árvores, a exuberância no colorido das flores. Dói-me o peso do espírito carregado dos noticiários, defendo-me da doença do medo e da ameaça, decido disciplinar-me para cuidar das plantas ou fazer arrumações dentro de casa. Até ao cair da tarde sou capaz de dispensar o vício de me sentar a ver as imagens das televisões, a ouvir as opiniões dos comentadores e as entrevistas em programas que já não são de auditório, a conhecer o enunciado de desgraças, solidões, adversidades. E então, no fim do dia, entro nos horrores da realidade.
Mulher de fé que sou, em tempo de Páscoa espero a Ressurreição. Não penso na invisível fronteira entre a vida e a morte, tão perto de mim desenhada. E porque a realidade é intemporal, guardo e aplico em mim a exortação de São Paulo, na primeira carta aos Efésios: “Tu que dormes, levanta-te do meio dos mortos e Cristo brilhará sobre ti.”
Leonor Xavier, jornalista e escritora, publicado no Observador
Carmo Sennfelt, psicanalista
Solidões
Solidão e estar sozinho não são situações equivalentes tanto menos sinónimos. Estar só para rezar, ler, meditar ou simplesmente gozar de um dia de sol à beira mar, é, ou deveria poder ser, uma escolha pessoal, familiar ou de um grupo de amigos. Como ir ao cinema ou a uma exposição onde tanto se pode ir sozinho como acompanhado. Assim como ir á opera ou á pesca. A solidão, pelo contrário, é uma situação ou um estado que solvente não depende da nossa vontade. Solidão implica sempre uma falta, falta de amarras afectivas em primeiro lugar mas também por razoeis circunstanciais, sociais ou, pior ainda, uma explosiva mistura das três. Como também é solidão pura e dura aquela na qual vivem os sem abrigo, os recluso ou os refugiados sem oportunidade de integração.
A solidão, a verdadeira solidão, é um estado, não uma escolha. Os padres do deserto, os eremitas, que escolhiam viver em completo isolamento, viviam sim isolados do mundo, mas essa solidão não lhes pesava na medida em que era transcendida na contemplação e na oração. Assim acontece com os monges e monjas de clausura, circunscritos nos seus conventos, a viverem isolados do mundo mas amparados por uma sólida vida comunitária. A solidão é tristeza e desolação, as monjas que conheço são alegres, espirituosas, activas. Ao contrário de muitos idosos, poderia dar alguns exemplos, que vivem em perfeita solidão dentro das próprias famílias. Ou daqueles não poucos, também conheço alguns, que foram pura e simplesmente deixados em hospitais ou depositados, sem nunca mais serem visitados, em lares bem distantes do lugar de residência. Todos eles vivendo, deveria dizer, vegetando, deprimidos, acabrunhados, completamente desenraizados. Isto sim é solidão numa das suas brutais dimensões.
O estado de emergência, sem fim à vista, no qual nos encontramos, traz consigo gravosas implicações com as quais temos vindo, bem ou mal, a aprender a conviver. As famílias, sobretudo as numerosas, a coabitarem dia após dias, em espaços limitados, com crianças de várias idades e consequentemente com necessidades e expectativas muito diferentes, veem- se a braços com sérias dificuldades. Que o teletrabalho certamente não alivia. Os avós, quando os há, são os habituais anjos da guarda sempre com as asas bem abertas. Mas agora até esses estão impedidos de voar….
E os idosos que vivem sozinhos? Quero crer que graças ás diversas formas de solidariedade que se tem vindo a criar se possam sentir menos sós porque alguém lhes levará uma refeição, o medicamento de que precisam e uma palavra de apoio.
Mas mesmo assim, e é a triste realidade, nem todos terão esta chance. Os privilegiados como eu esses têm filhos ou netos, ou ambos, que lhes deixam as compras á porta. E que ao serão se ligam por Skype para uma animada e consolatoria reunião de família. E amigos com quem se trocam telefonemas e e-mails quase diários. E quem não tem acesso a toda esta tecnologia da qual nós dispomos, nem casa, nem familia, nem amigos, nem, nem…..?
Graças a esta poderosa tecnologia a comunidade da capela do Rato, agora em diáspora, continua a reunir- se, cada um em suas casas, para a Eucarestia dominical. Assim temos a homilia e a benção do nosso capelão nos nossos ecrãs mas falta- nos o conforto da comunhão e a partilha do abraço da paz. Por sua vez ao nosso capelão, um pastor com o seu rebanho disperso, e ao pequeno grupo que o assiste, falta- lhes o peso numérico e o calor duma eucaristia partilhada, em comunidade. Porque a tecnologia só por si não basta. Tal como para todos aqueles que vivem sozinhos. Daí que nós, os velhotes que vivem sós terão de aprender a conviver com este novo, inusitado, aspecto duma solidão sem fim á vista. Não será fácil nem indolor mas como apesar de estarmos sós não estaremos nunca sozinhos haveremos de superar a provação.
Que o Senhor na Sua misericórdia nos leve a todos e a cada um de nós ao Seu colo.
Carmo Sennfelt
Sandra Saches Costa, coordenadora de «O Gabinete de Escuta»
Período duplamente profilático!
Uma das maiores necessidades de todo o ser humano é estar em relação. Nós somos seres sociais por natureza. Necessitamos dos outros e de relações significativas com os outros não só para subsistir, mas também para evoluir até à nossa realização pessoal: ser quem somos! Assim, se a nossa mente se forma e desenvolve a partir do relacionamento com o mundo exterior e com outros seres humanos, então a privação de estar em contacto com a natureza e com outros seres humanos tem o potencial de interferir negativamente connosco.
Mas o isolamento pode perder o sabor amargo e pode, na realidade, ser uma oportunidade. É importante que este tempo possa perder o sabor amargo da solidão e da inutilidade! E ele perderá se conseguirmos requalificar o tempo cronológico, mecanizado e ininterrupto – chronos – em tempo com significado – kairos, que em grego quer dizer Deus do tempo oportuno.
As medidas de contenção social que agora vivemos, cada um em função de todos, pedem-nos um isolamento forçado, um jejum de contacto e uma abstinência de relações sociais que pode ter um impacto relevante. Enquanto comunidade, devemos, por isso, estar atentos e antecipar os sinais adversos que poderão causar em nós e nos nossos familiares, amigos e vizinhos. Mas enquanto comunidade, podemos e devemos, diria eu, olhar para este período, como um período duplamente profilático. Para além da prevenção da contaminação, ele pode ajudar-nos a prevenir o sentimento de solidão.
As estratégias para combater a solidão são diferentes em função dos recursos que cada um de nós tem ao seu dispor. Aponto algumas sugestões alertando que o objetivo não é, no entanto, ultrapassar a solidão com uma superabundância de atividades. A quantidade nunca poderá compensar a qualidade.
1. Ser uma pessoa positiva e aceitar os limites próprios
É importante ter uma atitude otimista, confiar em si mesmo e esperar sempre o melhor das pessoas e das situações. Muitas pessoas não sabem lidar com os seus limites, não sabem o que fazer com (o que consideram ser) as suas imperfeições, fragilidades e frustrações. Têm uma grande dificuldade de olhar para além das suas próprias necessidades ou de se colocar no lugar do outro. Esta é a oportunidade de percebermos que somos todos iguais na nossa fragilidade e que somos todos, por natureza, seres interdependentes – a nossa vida não depende só de nós, mas também dos outros, numa responsabilidade individual e partilhada.
2. Treinar a atitude de resiliência
A resiliência pode ser entendida como a capacidade que o ser humano tem de conseguir ultrapassar condições adversas e de ser positivamente transformado por elas. É a atitude que possibilita ter uma vida significativa e produtiva apesar das circunstâncias. Funciona, neste sentido, como um escudo protetor. A evidência demonstra que existe uma ligação importante entre a resiliência e a alteridade, porque é na transcendência, no sentido do outro, que o homem se realiza pessoalmente. Faça deste tempo de isolamento, essa possibilidade de se superar si mesmo, ao contexto e à existência, avançando para além das dificuldades que individualmente encontra. Desenvolver a resiliência é algo construído a cada instante, a cada escolha que fazemos.
3. Usar a criatividade e a inovação
É importante manter as relações familiares e sociais. Organizar o dia de forma a deixar um espaço diário dedicado ao contacto social, utilizando a tecnologia como aliado. Desde as mais antigas como, por ex., o telefone, às mais recentes como o Face Time, o WhatsApp, o Skype, ou o House Party, mais ao gosto dos mais jovens. Quando nos sentimos sozinhos, é fácil acreditar que não somos importantes para as outras pessoas. No silêncio ou na noite, esta sensação pode mesmo agigantar-se. Se sentir falta da família, dos amigos ou dos colegas, tome a iniciativa de ligar para conversar. Procure falar mais com as pessoas por quem sente maior gratidão. A generosidade, a gratidão e o apoio aos outros são fundamentais para uma boa saúde física e psicológica. Tenha em mente que as relações só se cultivam no dia a dia. Proximidade e repetição são as palavras chave na construção de relações.
4. Identificar uma ocupação, apostar na formação ou praticar desporto
A tecnologia de hoje permite igualmente participar em algumas atividades conjuntas, mesmo estando isolado. Participar em atividades como meditação e yoga, através de aplicações online como Headspace ou Calm, ajudam a ter um maior autoconhecimento e a melhorar o autocontrole. Participar em aulas de novas línguas ou em clubes de leitura virtuais, que estejam disponíveis online, são também oportunidades de desenvolvimento pessoal. Manter a prática do exercício físico pode melhorar o bem-estar e a disposição. Aproveitar os passeios higiénicos dos animais de companhia ou a ida às compras, quando possível, para manter o contacto com a natureza é importante, caso não pertença a um grupo de risco e não esteja a cumprir um período de isolamento compulsivo.
5. Traçar uma rotina
O estabelecimento de uma rotina diária também pode ser um grande aliado. Invista em manter um horário de despertar e de deitar; de preparação e confeção de refeições; de hábitos de higiene e auto-cuidado, que ajudam na manutenção da auto-estima. Mantenha-se ativo física e cognitivamente através de exercício físico e do trabalho ou outra atividade intelectualmente desafiante, quando possível. Aproveite o tempo em família, se for esse o caso, para jogos de tabuleiro; partilhar; falar e escutar, construindo pontes que serão certamente úteis no futuro. Aproveite o tempo de isolamento sozinho, se for esse o caso, para colocar a leitura em dia; para manter ou reativar contactos sociais por telefone; para acompanhar, ainda que à distância, pessoas que se encontrem em situações mais complicadas. Alimente-se da Palavra de Deus através da leitura (que é, para muitos, sinónimo de escuta) ou da Eucaristia, ainda que à distância. Enfim, do que para si tiver significado. Vai ver que os dias vão passar rápido….
6. Lembrar-se que não está sozinho na solidão
A solidão é um elemento intrínseco da existência humana, faz parte da condição humana, é parte integrante da vida. Experimentar solidão faz parte do ser humano e é, de certa forma, inevitável. Nesta fase é provável que possa vir a sentir mais ainda a solidão como um sentimento nefasto. Uma das ferramentas mais poderosas que temos à nossa disposição para nos acalmarmos no sentimento de solidão é perceber que não estamos sozinhos neste sentimento. Todos nós experimentamos este sentimento em algum momento da nossa vida e todos nós estamos isolados neste momento. Há algum conforto em saber que este é atualmente um tema universal. Aprender a deixar fluir e relaxar é uma das melhores coisas que se pode fazer.
7. Aprender a estar sozinho
Blaise Pascal dizia que “a desgraça dos homens provem de não saberem manter-se uma hora a sós no seu quarto”. Na realidade, o isolamento tem a virtude de devolver o homem a si mesmo. É nele que nos encontramos com o nosso eu, que ficamos de frente com o que realmente somos, com os nossos medos e as nossas prioridades. Com as alegrias, os pensamentos de que nos orgulhamos ou aqueles de que nos envergonhamos. O isolamento ensina-nos a não ter medo dos nossos fantasmas, porque é nele que os conseguimos conhecer e dominar antes que sejam eles a dominar-nos a nós. As pessoas que se atrevem a adentrar-se e dão vazão a uma vida interior sentem-se bem consigo mesmas. E mesmo quando se encontram “sós”, dispõem de uma sensação de conforto interior, que não lhes permite sentirem solidão. É importante distinguir entre estar sozinho e sentir-se sozinho, sentimento que conduz uma solidão que é nefasta. Uma pessoa em harmonia consigo mesma supera sem maiores problemas a segunda forma e anseia pela primeira. Há então necessidade de aprendermos a estar sós para que possamos não nos sentir sós.
8. Resignificar a solidão
Há que reconhecer que existe uma solidão terapêutica que pode encontrar-se em situações de isolamento, se a pessoa recorrer aos seus recursos internos. A solidão pode perder a amargura se se conseguir domesticar, se se conseguir mudar a sua qualidade, podendo mesmo converter-se numa fonte de criatividade pessoal e num estímulo para as relações afetivas. Paradoxalmente, esta toma de consciência, junto com o reconhecimento dos nossos limites, permite-nos aproveitar uma vida de verdade muito mais plena e tranquila! Tenho a profunda convicção de que a solidão é necessária. Enquanto meio e jamais enquanto fim em si mesma. É necessária para um encontro com o verdadeiro eu, para avaliar e regular o curso da própria vida. A psicologia afirma que os momentos de solidão são tão essenciais para a felicidade e a sobrevivência humanas quanto os períodos de convívio.
9. A espiritualidade como recurso
Muitas das pessoas que fogem do isolamento fogem de si mesmas, sem que o percebam. Fogem com medo de se confrontarem com elas próprias e o seu vazio interior. As pessoas que têm uma sensação de vazio interior podem estar acompanhadas de verdadeiras multidões e ainda assim sentirem-se sozinhas. Este sentimento de solidão é interior, pelo que se torna evidente que a solução não passa por referentes externos. A única fonte de preenchimento do vazio existencial é o que a pessoa coloca dentro de si mesma, em termos de sentimentos, pensamentos, valores e significados. O verdadeiro preenchimento interior é o que se realiza através da vida espiritual, aqui numa dimensão diferente de religiosa. A espiritualidade adulta está relacionada com o sentido da vida e a procura de valores. A espiritualidade e a fé, quando existe, são fonte de sentido. Dão um sentido de pertença à pessoa individualmente e a uma comunidade como a nossa. É, por este motivo, que a espiritualidade é um importante recurso, que se deve cultivar e valorizar, também no combate à solidão que pode resultar do isolamento que vivemos.
10. Procurar ajuda
Fale e partilhe com alguém o que é importante e o que o incomoda. A reserva até pode ser recomendável em certos círculos sociais. Porém, há círculos mais íntimos em que pode falar sobre o que o deixa acordado à noite. Se, ainda assim, persistir ou aumentar um sentimento de abandono, principalmente quando acompanhado por outros sintomas, como, por ex., tristeza profunda, alterações do padrão do sono, perda de iniciativa e alterações do apetite, então deve procurar um profissional como aliado para encontrar formas de vencer a solidão. Até Jesus, em pleno relato da sua Paixão, antecipando a noite escura da agonia no Horto das Oliveiras, sabendo o cálice de sofrimento que o esperava, pediu a ajuda de três amigos para não atravessar sozinho essa noite de profunda solidão, esse caminho que era só d’Ele. Até Ele precisou e pediu ajuda.
Que sentido tem tudo isto?
Que sentido tem tudo isto? Porquê a mim? Porquê agora? Que fiz eu para merecer isto? Porque é que Deus omnipotente permite uma coisa destas?
Estas são perguntas que nos são familiares. Que nos chegam por muitas pessoas ou que povoam os nossos territórios nesta e noutras alturas de sofrimento. Que devemos fazer com elas?
Primeiro que tudo, devemos escutar a pessoa (que bem posso ser eu ou quem se me dirige). A escuta, neste contexto, implica acolhimento, aceitação pelo que nos é dito, com um enorme respeito. Para isso, temos de deixar de lado as nossas opiniões, os nossos julgamentos rasos, as nossas naturais atitudes paternalistas e, caso queiramos dar palavra ao que sentimos, devemos depurar a linguagem que usamos. Nada de frases feitas, ocas, vazias, que não ajudam nada nem ninguém. Temos muitos exemplos conhecidos: “É a vontade de Deus!” (a vontade de Deus é o seu projeto do Reino de Deus); “Deus só nos manda o que somos capazes de suportar” (Deus não é sádico, nem tem um medidor de dor para aferir o quanto conseguimos sofrer); “Tens de ser forte” (uma atitude terapêutica é precisamente reconhecer como legítimas as diferentes expressões dos estados emocionais); “Oferece o teu sofrimento ao Senhor” (a expressão do Apóstolo S. Paulo (cf. Col 1,24) refere-se aos sofrimentos que ele teve de suportar como consequência do anúncio do Evangelho, completando no seu ministério o que faltava à construção do reino, e que, necessariamente, envolvia sofrimento), etc. Uma das questões que mais desumaniza são as respostas prontas que damos para nos sentirmos nós mais aliviados.
Na verdade, quando falamos em sentido falamos em significado, coerência, razão, objetivo. A questão do sentido do sofrimento enxerta-se na questão do sentido da vida, no sentido em que descobrimos que a nossa vida é mais do que o sofrimento. A nossa vida é mais e nós somos mais. Há, portanto, que integrar o sofrimento no contexto mais lato do sentido da vida. O sofrimento é tão inerente ao ser humano que, eventualmente, não sofrer pode configurar uma doença, de acordo com o filósofo e psiquiatra alemão Karl Jaspers. O desafio pessoal é decidir o que fazer diante dele. Segundo Victor Frankl, pai da Logoterapia, a terapia do sentido, a liberdade máxima do ser humano está em escolher a atitude diante das situações limite da vida e da morte!
Na realidade, o homem não necessita de uma vida livre de tensão, necessita sim de procurar e lutar por um objetivo escolhido em liberdade e que lhe faça sentido. Há muita sabedoria nas palavras de Nietzsche quando diz que “quem tem porque viver suporta quase qualquer como”. Quer dizer, quem tem um sentido na vida é capaz de suportar um grande sofrimento, porque a sua vida, mesmo no meio de um grande sofrimento, não perde o sentido.
O significado do sofrimento nem sempre é evidente na altura em que passamos por uma situação dolorosa e, normalmente, só descobrimos que ele pode ter dado um sentido único e irrepetível numa fase mais avançada da nossa vida. Quando trabalhei na Indústria Farmacêutica, fui responsável pela Unidade de Virologia de uma empresa. Na altura, colaborei muito de perto com uma pessoa seropositiva para o Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH) com quem desenvolvi uma relação de amizade. Não me esqueço do dia em me confidenciou que o VIH se tinha tornado um grande amigo seu, um aliado. A infeção por este vírus fê-lo lutar por um objetivo, ter uma causa, trouxe-lhe um conjunto de pessoas com quem ele não se imagina agora viver sem. No fundo, a doença e o sofrimento causado pela doença transformou-lhe a vida, resignificou-lhe a vida. Ele conseguiu dar sentido ao sofrimento através do sentido que esse sofrimento deu à sua vida. Verdadeiramente, uma pessoa madura psicológica e espiritualmente pode capitalizar o sofrimento para crescer. Quer dizer, o sofrimento, desde que inevitável, é muitas vezes um fator de crescimento e desenvolvimento pessoal.
Em qualquer situação humana, mesmo na mais miserável sequência de desgraças, o indivíduo pode vir a encontrar sentido. Mesmo no seu último suspiro existe a possibilidade de o encontrar. Nesta procura, o homem é orientado pela sua consciência, que alguns autores consideram ser o órgão do sentido. A liberdade espiritual do homem concede-lhe a oportunidade de, até ao último momento, tornar a sua vida plena de sentido. E se a vida tem um sentido, então o sofrimento também tem um sentido, porque da vida faz parte o sofrimento.
Todos nós, enquanto crentes, temos muito presentes o significado da Cruz de Cristo. Mas, há 2000 anos atrás, os apóstolos que acompanhavam Jesus não o entenderam imediatamente. Foi preciso que se cumprisse em Si o que estava desde sempre escrito! Foi preciso tempo para que o significado emergisse. Talvez o seu grito na Cruz nos últimos instantes “Eloim, Eloim, lamá sabactâni” fosse uma prece dirigida ao Pai, como sugere Tomáš Halík no seu livro “Quero que tu sejas”. Uma prece que aponta para o futuro e para o significado que só no futuro se pode compreender – o significado da Cruz.
Talvez seja difícil para nós entendermos agora o significado de todo o sofrimento causado pelo Coronavírus. Talvez seja difícil ver como a vida é bela e cheia de sentido, apesar do que vivemos. Deixemo-nos inspirar pela Etty Hillesum, uma referência na nossa comunidade! Ela, que tendo a opção de escapar aos campos de morte, escolheu cumprir o destino do seu povo e não abandonar Deus porque entendeu que Ele precisava dela naquele momento. Que é este momento!
Devemos dirigir e ajudar a dirigir todas as perguntas sobre o sentido do sofrimento e da vida a Deus. Elas fazem parte do mistério! Só Deus nos pode orientar a encontrar a resposta que será pessoalíssima e que só no futuro se revelará a cada um de nós, de forma única e irrepetível.
Sandra Saches Costa