Queridos Irmãos
Vivemos tempos estranhos, a desafiar resistências, criatividade, solidariedade, responsabilidade cívica, renovado sentido eclesial. Em tempos de recolhimento e de restrição de contactos sociais, de modo a conter a propagação da pandemia do coronavírus, vivemos hoje uma eucaristia insólita: sem assembleia, sem a vossa presença corpórea. Estamos aqui, em nome de todos vós e em profunda comunhão com todos nós, os estritamente necessários para tornar possível esta celebração com o mínimo de dignidade.
A nossa comunidade da Capela do Rato habitou-se a cumprir-se como um lugar de encontro festivo, de partilha de afetos, de celebração familiar, apertadinha, transparente, autêntica, próxima. A dimensão terapêutica da bênção tem sido consolo e conforto para tantas pessoas feridas na vida, dando passos de recomeço e de futuro. Habituamo-nos ao respirar de cada um de nós, lado a lado, corpo a corpo; por vezes o espaço é estreito para nos acolher, e amontoamo-nos: há sempre lugar para mais um. O espaço e o coração dilatam-se.
Hoje nada disto acontece. A nossa comunidade está, literalmente, em diáspora, recolhida em suas casas, evitando contactos. Estamos em quarentena em pleno tempo da Quaresma: estranha coincidência a desafiar o sentido da nossa experiência de crentes, a interpelar-nos. Vivemos, forçados, um jejum, talvez mesmo prologando, da vida comunitária, do encontro de irmãos e irmãs como corpo eclesial à volta do corpo eucarístico de Cristo. Não podemos deixar de reconhecer que tudo isto é para nós de uma violência simbólica e real: ficamos ausentes de construir e viver a dimensão visível e sacramental da Igreja, decisiva para a nossa identidade e para a nossa viva concreta, pessoal e comunitária.
Jejuamos do corpo de Cristo eucarístico. Jejuamos do corpo da comunidade, jejuamos do corpo dos irmãos, renunciando a contactos, afetos e sociabilidade. Renunciamos a estar juntos. Tantos jejuns, e talvez tão prolongados; tantas e dolorosas renúncias. Necessárias e urgentes em nome do bem maior que a todos une e que, agora, depende da cooperação responsável de todos: a saúde pública através de comportamentos sanitários de pessoas responsáveis. Porque comunidade eclesial e comunidade civil partilham o mesmo destino de esperanças e alegrias, de angústias e tristezas. E este é um momento em que esse destino comum se experimenta de modo tão concreto, tão urgente e tão corresponsável. Comparados com estas forçadas circunstâncias de jejum, todos os outros jejuns que tínhamos imposto a nós mesmos ou nas nossas famílias parecem insignificantes. Vivemos, na vida social e na vida eclesial, tempos de excecionalidade, a exigir grandeza, rigor e profundidade.
Não nos vamos desmobilizar, não nos vamos render à angústia e ao medo. Na excecionalidade do momento presente somos convidados a ativar outros recursos, talvez mais profundos, mais radicais, da nossa experiência crente, que nem sempre estamos habituados a valorizar: estamos unidos por laços tão intensos e tão profundos que ultrapassam as fronteiras do tempo e do espaço. A Igreja é, em sua radicalidade, em seu mistério, uma comunhão mística de crentes. Unidos pelo Espírito Santo, todos somos uma só humanidade em Cristo. Há comunhão invisível que nos funda, que é o amor fecundo/vivificante do nosso Deus.
Este tempo de jejum comunitário e eucarístico seja para nós o «tempo favorável» para nos sentirmos em comunhão profunda uns com os outros, com todos os irmãos e irmãs ausentes, com todos os que sofrem e se sentem mais ameaçados em sua vulnerabilidade. Criamos uma rede orante, cumpramo-nos, em nossas casas, no silêncio dos nossos quartos, em nossas famílias, como comunidade orante na diáspora. Este jejum forçado pode ajudar-nos a viver solidários com todos os irmãos e irmãs que, em diversas circunstâncias, vivem a sua fé em clandestinidade, resistem solitários e isolados, silenciosamente recolhidos em suas casas.
O que para nós hoje é exceção forçada é o quotidiano de tantos irmãos e irmãs nossos. A privação da nossa comunhão em comunidade seja, para todos e cada um de nós, um modo de ativarmos, no silêncio dos nossos quartos, na tranquilidade de nossas casas, quando não há algazarra e conflitos entre crianças e adultos, uma comunhão na oração. Saibamo-nos cumprir, em nossas casas, como comunidade orante. E sairemos mais reforçados deste tempo de prova. O deserto do nosso jejum hoje tornar-se-á, no futuro, um jardim bem irrigado e fecundo.
Mais uma vez, em tempos de diáspora a Palavra de Deus é o alimento que temos mais à mão: agora, privados do pão da eucaristia, só temos, para a maioria de nós, o pão da Palavra. Na solidão dos nossos quartos, em família procuremos cultivar a leitura e a meditação dos textos das leituras bíblicas de domingo ou diárias. Há tantos meios informáticos que nos facilitam o acesso. Basta um telefonema a um neto, a um filho. Começamos neste III Domingo da Quaresma um intenso itinerário para a Páscoa através do evangelho de S. João, marcado pela simbólica da sede e da água, da cegueira e da luz, da morte e da ressurreição. Tomamos do evangelho de hoje dois pormenores: Cristo e a mulher samaritana encontram-se, à beira do poço, pelos caminhos da privação e da carência. Um e outro não se bastam a si mesmos; mas um e outro têm dons para partilhar. Cristo, cansado da viagem, sem balde e com sede, é um pedinte de água; a Samaritana, de bilha e coração vazio, é uma sedenta de amor.
A carência e a necessidade são a base primeira da solidariedade; na fome, na sede e nos afetos, precisamos, vitalmente, uns dos outros. Neste tempo de saúde ameaçada, de urgente necessidade de privação de contactos e de sociabilidade, vamo-nos, certamente, sentir mais carentes e necessitados uns dos outros. As nossas bilhas vão estar mais vazias. Estamos isolados mas não indiferentes, privados da sociabilidade mas não da compaixão e da solidariedade. Porque, para uns poderem estar em casa, outros precisam de reabastecer mercados, garantir a segurança pública e os primeiros socorros. Está na primeira linha o pessoal sanitário (médicos, enfermeiros, bombeiros), que também não está imune ao vírus.
Neste tempo de distância física em relação aos espaços comunitários, vamo-nos cumprir todos como um grande «templo invisível», unidos para além das fronteiras do tempo e do espaço. Os lugares e os corpos são determinantes para o concreto da experiência cristã. Mas há também, a partir do evangelho hoje lido, uma relatividade dos espaços sagrados (os lugares sagrados não são para absolutizar). Em nome de uma adoração a Deus, «em espírito e verdade», na limpidez do coração, na sinceridade do encontro, na nossa verdade mais profunda. E cada pessoa, em seu próprio corpo, cada família (Igreja doméstica) pode-se cumprir como esse lugar sagrado adorante em espírito e verdade. «Vai chegar a hora – e já chegou – em que os verdadeiros adoradores hão-de adorar o Pai em espírito e verdade, pois são esses os adoradores que o Pai deseja». A nossa hora chegou, é esta: não a escolhemos, não a quisemos, mas queremo-la viver em atitude orante, «em espírito e verdade».
Quando nos voltarmos a reencontrar, livres de perigo, reconstituídos como sociedade e como comunidade crente, celebraremos com júbilo e intensa festa a nossa ressurreição: o Senhor que está vivo no meio de nós, a sua presença ressuscitada e eucarística de pão repartido, a alegria afetiva do nosso reencontro, para nos voltarmos a abraçar, a nos acolher corpo a corpo, sem medos nem receios. Então a nossa vida comunitária terá ainda mais valor, saber-nos-á melhor, porque dela fomos forçados a nos privar e o nosso desejo aumentou. Então diremos, como a Samaritana: «Senhor, – suplicou a mulher – dá-me dessa água, para que eu não sinta mais sede».
Que, entretanto, nos possam consolar as palavras de Paulo: «A esperança não engana, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado».
Pe. António Martins, Domingo III da Quaresma