Queridas irmãs
Queridos Irmãos

Íamo-nos habituando e interiorizando que o viral era virtual. Estávamos habituados que tudo podia ser acético, higiénico, e o virtual da rede ajudava-nos a falar de contaminação de conhecimento, de notícias e vídeos virais na net. Assim crescíamos em nossas ilusões, como se viral não tivesse virulência, e o vírus fosse coisa inofensiva, uma potencialidade das redes. A epidemia do coronavírus, que se propaga sem fronteiras, obriga-nos a repensar que o viral se tornou mesmo real. O vírus, que segundo as estatísticas é de baixa mortalidade mas de elevado grau de contágio, atravessa fronteiras, não se deixa capturar pela rígida vigilância dos aeroportos, não diferencia espaços laicos de religiosos. Propaga-se, transmite-se, contagia silenciosamente.

De repente acordamos atónitos e angustiados, porque o viral, com a sua virulência, é uma realidade possível perto de nós e até dentro de nós. Uma realidade a exigir cuidados, prudência nos contactos e nas sociabilidades, medidas sanitárias adequadas. De repente, o medo do outro altera o nosso quotidiano, impõe quarentenas, contenção de gestos e de expressões de afeto, distância nas relações sociais, a evitar contacto o mais possível. O corpo do outro, da pessoa mais próxima, do vizinho, do colega, de quem connosco segue no mesmo transporte, frequenta a mesma escola, o mesmo espaço público pode ser corpo transmissor, que contagia e infeta.

Não nos deixemos contaminar e infetar pelo medo do outro, pela angústia da infeção. Se a contaminação é dimensão séria, preservar uma serenidade interior, uma sanidade de consciência e de reflexividade, sem entrar nas ondas emotivas irracionais, está ao alcance de todos nós. Alertava, no princípio da semana, Andrea Ricardi, o fundador da comunidade de Santo Egídio: «Não à propagação da epidemia do medo». A prudência é necessária, mas não nos deixemos dominar pelo medo.

Este tempo de Quaresma, com o seu apelo à interioridade, pode ser a oportunidade, no contexto social e sanitário que estamos a atravessar, para cuidar de não nos deixarmos contaminar pelo medo. Podemos evitar o contágio, mas não sacrifiquemos a nossa identidade comunitária de cristão, o encontro em assembleia, a capacidade de rezar juntos e de agir juntos. Os irmãos mais fragilizados, as pessoas idosas mais vulneráveis não fiquem ainda mais isoladas. Não deixemos que o vírus do individualismo e do isolamento triunfe sobre a nossa capacidade de relação e de encontro. Para o melhor e para o pior, somos todos interdependentes, estamos ligados uns aos outros. Somos corpo exposto permanentemente à ameaça. Porque viver é conviver, porque somos carne.

Sublinho a passagem do evangelho. Jesus precisa de tranquilizar os seus discípulos, após o anúncio da sua paixão em Jerusalém e da reação violenta de recusa por parte de Pedro. Os discípulos estão em crise; Jesus fala-lhes de um destino de perigo e de morte, mas também de triunfo de vida (ressurreição) que eles não entendem. Era-lhes, mentalmente, impossível aceitar e seguir um Messias exposto ao sofrimento e à morte. Jesus faz com o núcleo duro dos discípulos (Pedro, Tiago e João) uma pedagogia da consolação. Uma cura para a crise no seguimento. Introdu-los na sua intimidade com o Pai, na sua eterna relação de Filho muito amado. Isso provoca nos discípulos uma perplexa ambiguidade: ao mesmo tempo dá-lhes gozo e temor, entram na luz e na sombra da nuvem.

O que ali experimentam no monte desconcerta-os, é uma experiência excessiva. Depois da transfiguração luminosa («o seu rosto ficou resplandecente como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz») são invadidos e envolvidos por uma nuvem. A luz dá lugar a uma palavra dita na obscuridade: «Este é o meu Filho muito amado, no qual pus toda a minha complacência. Escutai-O». «Ao ouvirem estas palavras, os discípulos caíram de rosto por terra e assustaram-se muito. Então Jesus aproximou-Se e, tocando-os, disse: “Levantai-vos e não temais”».

No meio dos nossos medos e angústias contemporâneos, é a nós que Jesus hoje nos diz: «Levantai-vos e não temais». Não vos deixeis vencer pelo medo, pela angústia do contágio. Pela incerteza do presente, pelos prejuízos económicos, pela falta de funcionamento das escolas e das universidades. Atentos, prudentes, ativos, mas não vencidos pelo medo; por aquele vírus interior que nos pode desmobilizar dos laços sociais, da capacidade de compaixão, de solidariedade. Possa ser a exigência deste nosso tempo um tempo oportuno, não para fugirmos dos desafios, nem nos isolarmos, mas para crescermos em confiança e em solidariedade, em compaixão e em cuidado pelas pessoas mais vulneráveis. E até há um toque de Jesus, uma expressão corpórea, um sinal concreto de que aquelas palavras são encarnadas, dirigidas a pessoas concretas.

Aquela experiência mística que os discípulos vivem, introduzidos na eterna relação de amor entre o Filho e o Pai em sua comunhão divina, é narrada em termos de beleza, de gozo, de vida transfigurada, luminosa e resplandecente: eles viram o invisível, vislumbraram um rasgo divino luminoso em Jesus de rosto e vestes transfiguradas. Receberam ali a graça do inesperado, do imprevisível. No meio do medo e da crise pode haver beleza e encontrar-se luz; no meio da doença e do sofrimento pode haver transfiguração; no meio de relações rasgadas pode-se encontrar sinais de transparência, de consolação e de pacificação. A transfiguração de Jesus diante dos discípulos diz-nos uma possibilidade da ação e da presença de Deus em nossas vidas: há rasgos de beleza, traços luminosos, ainda que fugazes, ainda que breves. São esses traços, por vezes tão subtis, que nos revelam que a beleza nunca fica fora da nossa vida. Ela vem, acontece, não pode deixar de se manifestar.

A realidade não está encerrada na obscuridade, não está bloqueada pela crise, pelo medo. Ficamos encantados e comovidos com o testemunho sentido de Pedro: «Senhor, como é bom estarmos aqui!». Estejamos abertos à graça do presente, à beleza que se manifesta nas pequenas coisas quotidianas, na surpresa dos encontros e das pessoas. A beleza é uma possibilidade sempre presente em nossas vidas: a visita de outra dimensão, do não quantificável, do que não é eficaz nem programado, a visita do gratuito, do excessivo, do intenso. A beleza diz-nos a abertura da vida ao divino, ou a revelação do divino a nós no traço de um rasgo de luz, de um rosto luminoso e sorridente.

Uma última referência ao belo texto da primeira leitura, a convocação que Deus fez a Abraão para deixar enraizamentos geográficos, laços familiares, carreira comercial e tribal de sucesso e partir em nome de um futuro prometido, ser dom para outros (bênção para os povos) e pai de uma nova tribo. Abraão saiu por convite livremente aceite; o seu foi um caminho de liberdade, em nome de uma promessa futura. Podemos ver na história de Abraão a parábola, ao contrário, de tantos homens, mulheres e crianças que, pela violência, pela guerra, pela fome, pela miséria, deixam os seus países de origem, atravessam, em risco de vida, terras e mares, são vítimas de redes de tráfico, ficam retidos nas fronteiras em campos de acolhimento que se tornam campos de concentração. Na longa espera e infindáveis burocracias de documentos vão perdendo a esperança na sua terra prometida. A abertura das fronteiras da Turquia aos refugiados coloca as fronteiras europeias sobre pressão. Estamos numa crise humanitária a exigir rápidas soluções: porque há vidas humanas a salvar e a preservar. Mas se a Europa só se quer preservar da avalanche de refugiados preservando a sua qualidade de vida, não é apenas uma crise humanitária que está a acontecer; é a crise da nossa própria humanidade, da nossa capacidade de compaixão e de solidariedade. A crise que pode ser o fim do humanismo fundador da União Europeia.

Tantos medos, tantos riscos e tantos perigos em nossos tempos. Mas também tantas oportunidades de beleza, de esperança, de solidariedade. De testemunho da nossa humanidade. Porque não podemos deixar de acreditar e de testemunhar: «a terra está cheia da bondade do Senhor».

Pe. António Martins, Domingo II da Quaresma