Publicam-se os textos que serviram de apoio para do dia de paragem de Quaresma, vivido pela Comunidade da Capela do Rato, no dia 29 de Fevereiro, no Convento Franciscano da Luz.
Na parte da manhã, a proposta de meditação «Educar o desejo: comer e tocar (a boca e a mão)» foi uma reflexão existencial sobre o jejum.
Na parte da tarde, a proposta de meditação «Sonhar o futuro do mundo e da Igreja, com o Papa Francisco (por uma conversão ecológica e sinodal)» inspirou-se na exortação apostólica do Papa Francisco «Querida Amazónia».
O dia terminou com a celebração da via sacra, no jardim do convento, por entre flores, árvores e pássaros. Seguimos o texto da Via Sacra no Coliseu de Roma, do ano passado, escrita pela Ir. Eugenia Bonett, italiana, que tem consagrado a sua vida à luta contra a escravatura feminina e ao acolhimento de mulheres refugiadas e imigradas em Roma (pode consultar aqui as meditações da Via Sacra)
Meditação da Manhã – Educar o desejo: comer e tocar (a boca e a mão)
- Atravessar a própria fome (tentação da posse e da apropriação/ingestão)
«O homem, enquanto homem, não se nutre apenas de comida, mas de palavras, de gestos trocados, de relações, de amores, de tudo o que dá sentido à vida nutrida e sustentada pela comida (…). Com o jejum aprendemos a conhecer e a moderar os nossos apetites através da moderação do apetite fundamental e vita: a fome, e aprendemos a disciplinar as nossas relações com os outros, com a realidade externa e com Deus, relações sempre tentadas pela voracidade. O jejum é ascese da necessidade e educação do desejo» (Enzo BIANCHI, Le parole della spiritualità, Rizzoli, Milão 1999, 157-158)
Não aceitar os limites mata: Porque comer devora, e tocar destrói:
«Vendo a mulher que o fruto da árvore devia ser bom para comer, pois era de atraente aspeto e precioso para esclarecer a inteligência, agarrou do fruto, comeu, deu dele também a seu marido, que estava junto dela, e ele também comeu. Então, abriram-se os olhos aos dois e, reconhecendo que estavam nus, coseram folhas de figueira umas às outras e colocaram-nas, como se fossem cinturas, à volta dos rins» (Gn 3,6-7).
Jejuar, uma forma de educar o desejo (a carência e a fome). Aceitar a carência para acolher a alteridade e a diferença:
«Então, o Espírito conduziu Jesus ao deserto, a fim de ser tentado pelo diabo. Jejuou durante quarenta dias e quarenta noites e, por fim, teve fome. O tentador aproximou-se e disse-lhe: «Se Tu és o Filho de Deus, ordena que estas pedras se convertam em pães.» Respondeu-lhe Jesus: «Está escrito: Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.» (Mt 4,1-4).
Opção por um estilo de vida frugal:
«Deparamo-nos no dia a dia com o apelo ao consumo desenfreado, tropeçamos na dependência de comprar coisas e objetos para fazer face aos vazios da nossa alma. Experimentamos a fome de acumular coisas. De um modo determinista ciclicamente sentiremos de novo a mesma fome… como num eterno retorno, um ciclo destrutivo sem fim.
Mas essa “fome” pode ser vencida pela confiança na Palavra de Deus, Ele proverá o alimento na hora certa, da forma certa, sem inverter a realidade das coisas com os valores inerentes a ela: “não vos preocupeis… olhai os lírios do campo… as aves do céu… a cada dia basta seu mal; o amanhã cuidará de si mesmo” (Mt 26,26). Em contraponto à fome de ter, em jeito de transformação escolhamos uma frugalidade de vida: vivamos com menos e sejamos muito; tenhamos consciência de que os recursos do planeta são limitados, portanto há que usar responsavelmente aquilo que nos foi dado; façamos face às alterações climáticas através do compromisso com uma vida mais simples, reduzida ao essencial, em que deixar de “ter” se pode transformar numa forma de “ser” mais e melhor. Escolhamos o “decrescimento” como forma de fazer face ao crescimento desenfreado» (Reflexão da Comissão Nacional de Justiça e Paz, Quaresma de 2020).
- O tocar da mão: entre a ternura e o abuso:
O tato é o mais elementar e visceral, e ao mesmo tempo, o mais sublime e delicado de todos os sentidos. Pelo tato as coisas, o mundo e os outros entram em relação connosco: tocam o nosso corpo, e pelo nosso corpo são tocadas. Pelo tato acontece o contacto, a relação entre os corpos. No encontro de pele expressa-se o encontro íntimo.
Mas o tato também pode ser apropriação, manipulação, violência, posse, instrumentalização. Cada gesto, cada toque tem a sua ambiguidade; é suscetível de interpretações e reações opostas. Daí a sua fragilidade e delicadeza. Pelo tato acontece a ternura, mas também o abuso, a violência, a invasão íntima. Por onde passa a fronteira? Quem a pode definir? Caminho pessoal e permanente, sem tréguas, de discernimento, de combate.
O toque como abuso:
« E aconteceu que uma tarde David levantou-se da cama, pôs-se a passear no terraço do seu palácio e avistou dali uma mulher que tomava banho e que era muito formosa. David procurou saber quem era aquela mulher e disseram-lhe que era Betsabé, filha de Eliam, mulher de Urias, o hitita. Então, David enviou emissários para que lha trouxessem. Ela veio e David dormiu com ela, depois de purificar-se do seu período menstrual. Depois, voltou para sua casa. E, vendo que concebera, mandou dizer a David: «Estou grávida.» (2 Sam 11,2-5)
O toque como afeto e ternura:
«Um fariseu convidou-o para comer consigo. Entrou em casa do fariseu, e pôs-se à mesa. Ora certa mulher, conhecida naquela cidade como pecadora, ao saber que Ele estava à mesa em casa do fariseu, trouxe um frasco de alabastro com perfume. Colocando-se por detrás dele e chorando, começou a banhar-lhe os pés com lágrimas; enxugava-os com os cabelos e beijava-os, ungindo-os com perfume.» (Lc 7, 36-38)
Avaliar e discernir o próprio tocar e contacto à luz da Palavra de Deus, entre sombras e luz, promessas e perigos. Cada gesto é ambíguo; pode ser expressão de bondade e de cuidado, ou de invasão e agressão.
Ouça aqui a meditação da manhã
Meditação da Tarde – Sonhar o futuro do mundo e da Igreja, com o Papa Francisco (por uma conversão ecológica e sinodal). Passagens selecionadas da exortação «Querida Amazónia» (QA)
- A indignação como resistência à convivência com o mal
«É preciso indignar-se, como se indignou Moisés (cf. Ex 11, 8), como Se indignava Jesus (cf. Mc 3, 5), como Se indigna Deus perante a injustiça (cf. Am 2, 4-8; 5, 7-12; Sal 106/105, 40). Não é salutar habituarmo-nos ao mal; faz-nos mal permitir que nos anestesiem a consciência social, enquanto «um rasto de delapidação, inclusive de morte, por toda a nossa região, (…) coloca em perigo a vida de milhões de pessoas, em especial do habitat dos camponeses e indígenas». Os casos de injustiça e crueldade verificados na Amazónia, ainda durante o século passado, deveriam gerar uma profunda repulsa e ao mesmo tempo tornar-nos mais sensíveis para também reconhecer formas atuais de exploração humana, violência e morte» (QA, 15).
- A sensibilidade de consciência para discernir (e corrigir) os vícios autodestrutivos
«Muitas vezes deixamos que a consciência se torne insensível, porque “a constante distração nos tira a coragem de advertir a realidade dum mundo limitado e finito”. Se nos detivermos na superfície, pode parecer “que as coisas não estejam assim tão graves e que o planeta poderia subsistir ainda por muito tempo nas condições atuais. Este comportamento evasivo serve-nos para mantermos os nossos estilos de vida, de produção e consumo. É a forma como o ser humano se organiza para alimentar todos os vícios autodestrutivos: tenta não os ver, luta para não os reconhecer, adia as decisões importantes, age como se nada tivesse acontecido”» (QA, 53).
- Qual a nossa voz profética?
«O diálogo não se deve limitar a privilegiar a opção preferencial pela defesa dos pobres, marginalizados e excluídos, mas há de também respeitá-los como protagonistas. Trata-se de reconhecer o outro e apreciá-lo “como outro”, com a sua sensibilidade, as suas opções mais íntimas, o seu modo de viver e trabalhar. Caso contrário, o resultado será, como sempre, “um projeto de poucos para poucos”, quando não “um consenso de escritório ou uma paz efémera para uma minoria feliz”. Se tal acontecer, “é necessária uma voz profética” e, como cristãos, somos chamados a fazê-la ouvir» (QA, 27).
- Cultivar o sentido estético e contemplativo
«Despertemos o sentido estético e contemplativo que Deus colocou em nós e que, às vezes, deixamos atrofiar. Lembremo-nos de que, “quando não se aprende a parar a fim de admirar e apreciar o que é belo, não surpreende que tudo se transforme em objeto de uso e abuso sem escrúpulos”. Pelo contrário, se entrarmos em comunhão com a floresta, facilmente a nossa voz se unirá à dela e transformar-se-á em oração: “Deitados à sombra dum velho eucalipto, a nossa oração de luz mergulha no canto da folhagem eterna”. Tal conversão interior é que nos permitirá chorar pela Amazónia e gritar com ela diante do Senhor» (QA, 56).
- O carisma das mulheres na Igreja
«Numa Igreja sinodal, as mulheres, que de facto realizam um papel central nas comunidades amazónicas, deveriam poder ter acesso a funções e inclusive serviços eclesiais que não requeiram a Ordem sacra e permitam expressar melhor o seu lugar próprio. Convém recordar que tais serviços implicam uma estabilidade, um reconhecimento público e um envio por parte do bispo. Daqui resulta também que as mulheres tenham uma incidência real e efetiva na organização, nas decisões mais importantes e na guia das comunidades, mas sem deixar de o fazer no estilo próprio do seu perfil feminino» (DA, 103)
- Cultivar o diálogo, superar a dialética do confronto
«O conflito supera-se num nível superior, onde cada uma das partes, sem deixar de ser fiel a si mesma, se integra com a outra numa nova realidade. Tudo se resolve “num plano superior que conserva em si as preciosas potencialidades das polaridades em contraste”. Caso contrário, o conflito fecha-nos, “perdemos a perspetiva, os horizontes reduzem-se e a própria realidade fica fragmentada”» (DQ, 104).
«Isto não significa de maneira alguma relativizar os problemas, fugir deles ou deixar as coisas como estão. As verdadeiras soluções nunca se alcançam amortecendo a audácia, subtraindo-se às exigências concretas ou buscando culpas externas. Pelo contrário, a via de saída encontra-se por «transbordamento», transcendendo a dialética que limita a visão para poder assim reconhecer um dom maior que Deus está a oferecer. Deste novo dom recebido com coragem e generosidade, deste dom inesperado que desperta uma nova e maior criatividade, brotarão, como que duma fonte generosa, as respostas que a dialética não nos deixava ver» (QA, 105).
- A força que nos une
«Num verdadeiro espírito de diálogo, nutre-se a capacidade de entender o sentido daquilo que o outro diz e faz, embora não se possa assumi-lo como uma convicção própria. Deste modo torna-se possível ser sincero, sem dissimular o que acreditamos, nem deixar de dialogar, procurar pontos de contacto e sobretudo trabalhar e lutar juntos pelo bem da Amazónia. A força do que une a todos os cristãos tem um valor imenso. Prestamos tanta atenção ao que nos divide que, às vezes, já não apreciamos nem valorizamos o que nos une. E isto que nos une é o que nos permite estar no mundo sem sermos devorados pela imanência terrena, o vazio espiritual, o cómodo egocentrismo, o individualismo consumista e autodestrutivo» (QA, 108)
Ouça aqui a meditação da tarde