Queridas Irmãs
Queridos Irmãos

«Lembra-te, ó homem/ó mulher, que és pó, e ao pó hás de voltar».
Este apelo, nada simpático, lembra a nossa origem e o nosso fim de pó, de fragilidade, fragmentação, dissolução e morte. Não esqueçamos a nossa vida sempre ameaçada pelo vazio, sempre em risco, grandiosa mas exposta a tanta miséria. Não nos esqueçamos que somos pó (barro), pobres mortais vulneráveis. Inventamos grandiosidades para mascararmos a nossa radical indigência e pobreza. Qualquer vírus, em tempos de globalização, ameaça e põe em perigo o quotidiano da nossa vida tranquila, deixando-nos indefesos e desconfiados uns dos outros. Lembremo-nos que somos pó; não nos iludamos das nossas seguranças (tecnológicas, financeiras, médicas, relacionais, físicas…). Estamos sempre em risco.

Este veemente lembrar do que somos, com uma forte nota dramática e desencantada, sem ilusões nem fantasias, é feito à luz do evangelho que é Cristo, nossa Páscoa, vida vitoriosa da morte. Por isso, a dimensão penitencial da Quaresma é caminho pascal; é apelo a renovarmos a vida, ou melhor, a deixarmos que o Espírito Santo nos renove, nos vivifique, a partir do mais profundo do nosso ser, do nosso sentir e do nosso pensar. Daí o apelo positivo e esperançoso que acompanha a imposição das cinzas: «Arrepende-te e acredita no evangelho». Porque são sempre possíveis novas alternativas, outras atitudes, modos diferentes de nos cumprirmos, mais generosos, mais humanos, mais santos. No gps dos evangelhos é sempre possível uma inversão de marcha.

Em cada ano litúrgico, de novo a Quaresma é-nos oferecida como uma nova oportunidade. Como um tempo favorável e oportuno para revermos e avaliarmos a nossa vida à luz de Cristo o Homem Novo. Escreve-nos o Papa Francisco na Mensagem para a Quaresma deste ano: «Esta nova oportunidade deveria suscitar em nós um sentido de gratidão e sacudir-nos do nosso torpor. Não obstante a presença do mal, por vezes até dramática, tanto na nossa existência como na vida da Igreja e do mundo, este período que nos é oferecido para uma mudança de rumo manifesta a vontade tenaz de Deus de não interromper o diálogo de salvação connosco». Em sua misericórdia, o Pai não desiste de nós, seus filhos e filhas, por mais errantes que sejamos. Continuamente vem ao nosso encontro, para nos falar ao coração, para nos derreter de ternura e assim derreter a dureza do nosso coração. Pela sua parte, as fontes da salvação estão sempre a jorrar; não há becos sem saída, sentidos únicos obrigatórios. Deus espera continuamente por nós e nos chama do profundo: «Convertei-vos a Mim de todo o coração».

As cinzas são o que resta da combustão; são expressão visível de um não ser, de um vazio, de uma destruição. Aceitando sinalizar as nossas cabeças com cinza queremos mergulhar no fogo do amor purificador de Deus nosso Pai, que destrói na santa combustão do Espírito Santo a maldade e a iniquidade do nosso pecado, pessoal e coletivo. O perdão é a santa combustão do Espírito Santo que reduz a cinzas o nosso pecado, tornando-o insignificante, vazio, sem consistência. Com as palavras do Profeta Joel, toda a Igreja, e cada um de nós, implora, com intensidade e comoção: «Perdoai, Senhor, perdoai ao vosso povo»; ou com oração feita suplica do salmista grita: «Criai em mim, ó Deus, um coração puro e fazei nascer dentro de mim um espírito firme».

As cinzas também são aproveitadas para fecundar os terrenos, como adubo. O que resta, o que parece vazio e nada, ainda é portador de riqueza. As cinzas ajudam a revitalizar a terra, a dar-lhe energia, novas propriedades capazes de gerar mais vida. As cinzas também podem ser símbolo de fecundidade e de vida nova, renascida das nossas próprias cinzas; porque o nosso vazio ainda é riqueza; a nossa pobreza e a nossa fragilidade, à luz da páscoa, são bênção, caminho de humanidade. As cinzas são, pois, um símbolo pascal.

O evangelho de Mateus, lido neste dia, com o seu estilo próprio marca a diferença cristã nas tradicionais práticas religiosas e penitenciais: o jejum, a oração e a esmola. Práticas a realizar com discrição e sinceridade, no contexto da relação interior entre cada crente e Deus. Jesus alerta-nos para o perigo, sempre presente, do exibicionismo, da visibilidade para ganhar aplausos e reconhecimentos públicos. A generosidade cristã não deve entrar nos critérios publicitários: «Quando deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita, para que a tua esmola fique em segredo; e teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa».

A oração, esse estar despojado, transparente, indefeso na presença de Deus, é um encontro de amor, no mais íntimo, o quarto interior, onde no segredo os amantes se encontram e se celebram. Porque os amantes gostam do segredo, criam os seus segredos, vivem do segredo que é o próprio amor. «Tu, porém, quando rezares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora a teu Pai em segredo; e teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa». Possa este tempo de Quaresma ajudar-nos a uma disciplina na oração, a criar um tempo e um espaço para celebrar o segredo do encontro. A entrar «no quarto interior» que pode bem passar por criar um espaço de oração no próprio quarto. E depois procuremos ser fiéis, quotidianamente, a esse espaço e a esse tempo, para cultivar e intensificar o segredo. Para acrescentar segredo ao segredo. Nas palavras da Mensagem quaresmal do Papa Francisco, a oração é «um diálogo coração a coração, de amigo a amigo». Antes de ser um dever, «expressa a necessidade de corresponder ao amor de Deus, que sempre nos precede e sustenta. De facto, o cristão reza ciente da sua indignidade de ser amado».

Deixemo-nos escavar por dentro pela oração, pela escuta mais atenta da Palavra, pela hospitalidade do silêncio, por esse não fazer nada em que nos expomos ao fazer do Espírito em nós («Faça-se!»). Para podermos partilhar com maior generosidade os nossos bens (a esmola) e contermos a intensidade do desejo, que pode devorar e destruir, pelo jejum.

Não recebamos em vão a graça desta Quaresma.

Pe. António Martins, Quarta-feira de Cinzas

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PAUSA ESTIVAL

A Capela do Rato encontra-se em pausa estival, reabrindo a 15 de setembro, com a Eucaristia às 11h30.

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