Queridas Irmãs
Queridos Irmãos

O maior perigo em que podemos cair é a distração. O perigo de vivermos desatentos ao que acontece à nossa volta, ao que nos vai acontecendo. Vivemos como que desligados do nosso ser profundo, da razão dos próprios acontecimentos, mergulhados na banalidade e na superficialidade acelerada do nosso viver quotidiano. Somamos gestos repetidos, banais, necessários certamente. Vivemos entregues, sem discernimento, à lógica das exigências do quotidiano.

E assim corremos o risco de vivermos como que autómatos respondendo às solicitações imediatas (familiares, profissionais, pastorais até…), sempre produtivos e hiperativos, mas desligados da nossa interioridade. Vivendo nesta voragem, a nossa vida pode caminhar para o naufrágio. Podemos perder a ligação vital às razões profundas do acontecer e do ser das coisas e de nós mesmos. Podemos alienar o nosso futuro pela inconsciência e distração com que vivemos o nosso presente.

Começamos hoje o tempo denso do Advento. Este tempo litúrgico apela a nos concentrarmos no essencial, a acordarmos da sonolência em que podemos estar a cair, levados pela embriaguez do consumo e da publicidade exteriores. O Advento oferece-nos critérios de resistência, de motivação contra corrente, de alternativa à lógica dominante do mercado. O Advento quer fazer-nos despertar; apela-nos a estarmos vigilantes e acordados, bem atentos ao que nos acontece, ao sentir profundo de nós mesmos.

É também a nós que Paulo se dirige: «Chegou a hora de nos levantarmos do sono, porque a salvação está agora mais perto de nós do que quando abraçámos a fé». Veja cada um de nós o sono anestesiante em que vive; as decisões que adia, a causas a que passa indiferente, as pessoas concretas a que volta as costas. Acordemos, pois, da nossa banalidade e superficialidade quotidianas. «Chegou a hora de nos levantarmos do sono». Chegou a hora de não adiarmos mais as decisões vitais e decisivas do nosso futuro. Chegou a hora de nos decidirmos, de tomarmos uma reorientação profunda e radical.

Começa hoje (I Domingo do Advento) um novo ano litúrgico (o Ano B). Ao longo deste ano seremos guiados pelo evangelho de Mateus. O texto que hoje lemos é retirado do longo capítulo escatológico (Mt 24) em que Jesus anuncia a sua vinda futura como Senhor e juiz do universo («a vinda/parusia do Filho do Homem»), revelando a verdade da história e das consciências. A sua vinda constitui um acontecimento de crise, de separação entre o trigo e o joio, a verdade e a mentira, o novo e o velho que, no presente, coabitam dentro de nós, nas nossas relações e instituições. A expetativa da vinda em glória de Cristo dá orientação ao nosso viver quotidiano, marcado por crises, por imprevistos, por tensões e conflitos, que havemos de viver com discernimento, em estado de alerta.

Jesus recorda, para agitar as consciências dos seus ouvintes, os tempos antigos do dilúvio, esse cataclismo natural que pôs fim a um mundo de pecado e violência. A destruição do caos pelas águas apanhou de surpresa os contemporâneos, distraídos com a banalidade das preocupações do dia a dia. Inconscientes perante os sinais perturbadores do presente, não souberam prevenir nem antecipar o caos que se avizinhava: «comiam e bebiam, casavam e davam em casamento». O trágico desses comportamentos vitais e necessários era uma vida distraída e alienada: «não deram por nada, até que veio o dilúvio, que a todos levou».

Mas houve um homem que com a sua família antecipou a crise do dilúvio construindo uma barca salvadora para si, para os seus e para a criação. Temos aqui, pelas palavras de Jesus, uma lição de vida: a maior fatalidade das crises é apanhar-nos impreparados, distraídos, embriagados na superficialidade da vida. O risco é sermos levados, simplesmente, na enxurrada das águas. Esta é a ousadia a que nos convocam a fé e a esperança cristãs: esperar o inesperado, conhecer antecipadamente o desconhecido, preparar o surpreendente. Isto, à primeira vista, parece ilógico, mas em profundidade é o decisivo da sabedoria cristã. Somos chamados a viver em permanente estado de vigilância e de alerta, de antecipação preventiva do futuro. «Portanto, vigiai, porque não sabeis em que dia virá o vosso Senhor».

Nada sabemos da imprevisibilidade dos acontecimentos futuros. Não sabemos quando virá o Senhor, nem de que modos e em que circunstâncias passará a sua presença/manifestação em nossa vidas. O desconhecimento do futuro abre-nos à surpresa e à expetativa; mas compromete-nos também, e ao mesmo tempo, numa atenção ao concreto, num perceber o sentido da voz do vento, o rumo das águas, o grito de esperança que, silenciosamente, ressoa na revolta das populações em Hong Kong, em Santiago do Chile ou no sul do Iraque. É o novo que, confusamente, emerge; é o advento da humanidade que já começa, impercetível, enigmático e confuso. Cada crise, cada perturbação, cada conflito tem sempre uma marcada de novidade, trás sempre uma oportunidade de futuro. E se não estivermos atentos e despertos, a oportunidade dos acontecimentos passa-nos ao lado. «Por isso, estai vós também preparados, porque na hora em que menos pensais, virá o Filho do homem».

Preparamos a vinda definitiva do Senhor, atentos à sua vinda permanente nos acontecimentos da história e da nossa vida. Porque o Senhor é aquele que continuamente vem a nós, para nos atrair para Ele. Ele vem a nós por caminhos insólitos, sem hora marcada, fora de esquemas e programas. Vem a nós na surpresa do imprevisto: «Compreendei isto: se o dono da casa soubesse a que horas da noite viria o ladrão, estaria vigilante e não deixaria arrombar a sua casa». Estranha comparação a da vinda do Senhor com a vinda do ladrão. A relação está apenas no imprevisto da hora, que suscita em nós vigilância e atenção.

Num encontro, ontem, organizado pela Comunidade de Santo Egídio em Portugal, tivemos aqui na Capela do Rato o testemunho do jurista e comissário de polícia norte-americano George Kain na sua luta nos EUA pela abolição da pena de morte, e como a legitimação jurídica e estatal da mesma brota do desejo de vingança que habita no coração humano. E como a justiça às vítimas não se faz abatendo o agressor, porque no corredor da morte todos sofrem, silenciosamente. A luta pela dignidade da vida humana é uma causa de advento, porque aí se decide o futuro do humano, que é o desejo e a promessa de Cristo: «eu vim para que tenha vida e a tenha em abundância».

Na próxima terça feira, dia 3 de Dezembro, celebramos o dia internacional da pessoa com deficiência. A realidade humana da pessoa com deficiência continua a ser muito escondida e ignorada na nossa vida eclesial: a sua ausência das nossas comunidades significa ainda tantos medos, tantas resistências a vencer. Levamos tempo em acolher a sua diferença como dom de Deus a todos nós para crescermos, mais ricos em humanidade, uns com os outros, numa comunhão de fragilidades que faz a força da Igreja. Esse é o Advento que ainda nos faz, o caminho de futuro que vamos adiando. Vencidos pela ignorância do medo.

Um grupo de quatro mães de pessoas com deficiências publicaram nestes dias um manifesto. Todas quatros estiveram presentes, dando o seu testemunho, aqui na Capela do Rato, no passado mês de Março. Escrevem: «Neste dia, gostaríamos de contrariar o medo, chamar a atenção para a indiferença. Convidando cada um a mover-se pelo impulso humano de nos colocarmos nos “lugares uns dos outros. Nasceu assim um manifesto, não sobre as pessoas com deficiência, mas antes um manifesto da nossa deficiência, que não diminui, é universal e parte da nossa condição humana» (ver artigo aqui). Porque o imprevisto de uma deficiência pode acontecer a qualquer um de nós, sem hora marcada.

Nunca sabemos a que horas vem o ladrão. Nas palavras centrais do evangelho de hoje: «Vigiai, portanto»; «estai vós também preparados». Vigiemo-nos, discernindo os apelos e os impasses da nossa vida interior. Vigiemos uns aos outros, não para controlar mas para ativar um cuidado atencioso; para testemunharmos, em palavras e gestos, que a vida tem futuro. E o seu futuro decide-se hoje, no concreto das nossas escolhas.

Com alegria expectante, vivamos em Advento.

Pe. António Martins, I Domingo do Advento

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