Queridos Irmãos
Como os Apóstolos, também nós estamos aqui reunidos todos no mesmo lugar, neste pequeno espaço físico mas de grande riqueza humana que é a Comunidade do Rato. Somos diferentes, cada um portador da singularidade da sua história de vida, grandiosa mesmo em sua pobreza e fragilidade. Uns vieram de mais perto, outros de mais longe. Uns trazem a objetividade das suas competências (musicais, vocais, estéticas), mas todos trazemos o dom da nossa presença, este estar aqui na alegria do encontro, da festa partilhada. Assim nos cumprimos como Comunidade reunida pelo Espírito Santo, o sopro da fecundidade do amor e da vida de Deus em nós.
É no e pelo Espírito que a comunidade cristã se realiza como corpo inclusivo de diversidades, no concreto dos espaços, das vidas e das situações. Cada um de nós se sinta reconhecido e agradecido em sua singularidade, mesmo naquela mais discreta ou mais silenciosa. Cada um(a) em concreto e todos em comunhão complementar: este é o sentido da Solenidade de Pentecostes.
No relato dos Atos dos Apóstolos, o dom do Espírito divino divide-se e reparte-se em forma de línguas de fogo: sobre cada um dos Apóstolos e de Maria poisa e repousa uma língua. O mesmo impulso divino, que enche toda a casa pessoaliza-se, indo ao encontro de cada pessoa concreta. Na repartição do dom do Espírito não há eleitos nem excluídos; todos são integrados, confirmados e consagrados.
A solenidade que hoje celebramos é a festa fundante da vida em comunidade, a festa da Igreja-comunhão feita da partilha de dons, de alegrias e dores, de experiências luminosas e dramáticas, de histórias de vida, de serviços: «Em cada um se manifestam os dons do Espírito para o bem comum», diz-nos Paulo na segunda leitura. É no Espírito Santo que nos cumprimos como comunidade: unida na riqueza das suas diferenças. Deus quer-nos diferentes, únicos, singulares, mas com as nossas diferenças quer-nos complementares. O Pentecostes é a festa da diversidade mas também a festa da unidade. «Há diversidade de dons espirituais, mas o Espírito é o mesmo».
No relato do evangelho de João, hoje proclamado, Jesus despede-se dos discípulos em sua partida para o Pai através da páscoa (do dom da sua vida até ao fim). Neste adeus, Jesus prepara os discípulos para a sua ausência, para serem testemunhas no mundo do seu amor pelo Pai e pelos irmãos. Por eles e por todos os crentes do futuro reza: para que sejam um como Ele e o Pai são um. Nessa oração pede ao Pai o dom do Paráclito para «estar sempre com eles/connosco». Para que não se sintam só, perdidos, entregue a si mesmos.
«Paráclito» quer dizer defensor, consolador, aquele que vem em socorro do nosso grito e da nossa dor, aquele que escuta a nossa carência e por nós intercede. Por vezes entramos na lógica da acusação, de quem só aponta defeitos e assinala erros e carências. O Paráclito ensina-nos, continuamente, a ir em socorro dos mais débeis porque também nós somos socorridos, a consolar porque somos consolados; ensina-nos a ver promessas e possibilidades para além dos limites e das carências; a defender, a promover, a cuidar e a consolar.
Enviado pelo Pai a pedido do Filho, o Espírito Paráclito tem a missão de nos «ensinar todas as coisas» e de nos «recordar de tudo» o que Jesus disse. O Espírito é o nosso mestre interior, o nosso pedagogo, o nosso catequista, o nosso teólogo; é quem nos guia na escola do amor do Pai e do Filho. Ele garante, continuamente, a memória viva em nossos corações das palavras e dos gestos de Cristo. Pelo Espírito, a Palavra de Cristo continuamente se interioriza, se descobre com novos significados. Não é uma palavra estagnada, mas uma Palavra de vida a suscitar novas experiências, novas leituras, novas linguagens, novas interpretações. Na memória do Espírito, o evangelho de Cristo é permanente novidade.
Neste dia de Pentecostes, da festa das línguas e da linguagem («cada qual os ouvia falar na sua própria língua»), desejei que se voltasse a (re)interpretar, no próprio acontecer da eucaristia, a missa que o nosso querido João Madureira compôs para o Pentecostes e que dedicou a esta Comunidade do Rato em 2010. Uma feliz convergência de possibilidades torna este desejo realidade. Agradecemos a disponibilidade dos Sete Lágrimas que dão voz e som, tonalidade e entoação às composições musicais do João. Não estamos perante um espetáculo nem perante um concerto em que somos mero público que assiste. Estamos todos a celebrar a eucaristia de Pentecostes, numa diversidade de desempenhos e contributos. Nas vozes e nas interpretações dos Sete Lágrimas é uma comunidade inteira que celebra, um povo que canta a ação inspiradora do Espírito. Eles são a nossa voz em louvor; eles cantam por nós um cântico novo, jubiloso, agradecido e suplicante.
João Madureira é um dos compositores mais originais da sua geração. Pertence a esta Comunidade e connosco caminha na fé. Dá-nos a alegria da sua presença. A sua inspiração e criatividade é dom que queremos acolher, agradecer e honrar. A sua música é bem expressão de um encontro inspirador entre tradição e renovação. Não se deixa explicar por ideologias tradicionalistas nem por retóricas vanguardistas. A sua música não é uma reprodução de escola, nem exercício de academismo. É música empenhada eticamente, sem se tornar um panfleto. É música em busca dos lugares espirituais, sem se deixar capturar pelos catálogos da «música de igreja». No trabalho sobre a memória bíblica e cristã, a sua música aproxima-se tantas vezes do contínuo extático e do silêncio místico. A sua música exige que aprendamos a ouvir. Na escuta da sua música educamos o nosso ouvido, e podemos sem dúvida dizer que nessa atenta escuta também somos ensinados pelo Espírito.
A Missa de Pentecostes, do João Madureira, apresenta-se como um todo, feito de fragmentos, num discurso musical e estético aberto. A tradição do cântico gregoriano dialoga com as vanguardas contemporâneas, numa transgressão fecunda de fronteiras. As heranças musicais recebidas cruzam-se com novas linguagens musicais. As partes próprias do ordinário da Missa (ordo) sucedem-se, na sequência litúrgica, num feliz encontro entre tradição e inovação. Nas palavras do próprio João Madureira, «A Missa de Pentecostes é um lugar em que se procura interrogar a tradição gregoriana através das práticas da música contemporânea – e vice-versa. Revistar a tradição medieval. Recontextualizar as tradições populares, abraçar a tradição tonal, abrir portas a momentos marcados pela herança da música espectral… É um discurso musical aberto, em que cuidadosamente se evita a supremacia de qualquer linguagem sobre outra».
O latim litúrgico coexiste e dialoga com a poesia contemporânea de Teixeira de Pascoais, de Sophia de Mello Breyner, de Mário Cesariny, de Maria Gabriela Llansol, de José Augusto Mourão. O canónico abraça o mundano, não em sentido pejorativo, mas em seu sentido mais próprio e profundo, a verdade e a realidade das coisas criadas que nos são dadas a ver, a habitar, a cuidar: a água, a luz, o céu, o mar, a flor, a noite, o amanhecer, o jardim, o vento, a estrada… Os poemas contemporâneos convocados celebram a alegria encantatória do epifania do mundo (da criação) diante de nós: o espetáculo maravilhoso da gratuidade do puro ser das coisas que existem sem nós e para nós.
Na missa do João Madureira celebramos o dom da inspiração e da criatividade, a memória da tradição em sua contínua inovação; a beleza da imanência do mundo marcado pela transcendência do Espírito que o habita. Na voz deste canto, que é nosso, todo o fragmento de matéria se transfigura. Esse é o destino da eucaristia, santificar e consagrar a matéria, através da nossa humanidade, pela invocação do Espírito: «Enviai Senhor o vosso Espírito e renovai a face da terra». Por isso mesmo, a Missa do João Madureira é uma bela expressão litúrgica do Pentecostes.
Cumprimo-nos como Igreja (comunidade crente, no seu todo), e singularmente como pessoas que buscam um sentido para o nosso viver quotidiano, em permanente epiclese/invocação do Espírito. Gritamos de desejo ao Espírito Santo para que nos santifique, nos inspire, nos renove, nos console e nos socorra. Porque somos frágeis e carentes, porque a nossa vida corre riscos, porque a bênção e fecundidade de Deus nunca nos abandonam. Todos os nossos gestos de bondade e de beleza, todos os nossos momentos de paz, de inteireza e de dádiva, todos os encontros conseguidos, são dons do Espírito. O Espírito respira em nós em nossa própria respiração. Porque o Espírito é a respiração da vida, do universo. Agradecidos pela vinda do Espírito, gritemos-lhe a nossa urgência, com as belas e ousadas palavras de José Augusto Mourão:
vem, defensor do pobre
vem, sinal rumoroso da voz
que move o mundo
vem, memória de água
barqueiro do nosso olhar
entre a luz e o seu véu
vem, testemunha da dor
e da angústia sem nome
vem, força da vida
Pe. António Martins, Domingo de Pentecostes
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