Perguntamos pelo significando das tragédias que vão acontecendo, como nos últimos dias as vítimas (mais de 417) do ciclone tropical Idai, em Moçambique, com a devastação de populações já fragilizadas em sua precaridade, agora violentamente devastadas pela catástrofe. Todos os acontecimentos desafiam a nossa interpretação, a nossa consciência cívica e crente, a nossa ação solidária.
É com referência a tragédias humanas, que estavam ainda na memória dos seus contemporâneos, que Jesus nos continua a desafiar a essa mudança de rumo e de lógica de pensamento e de ação, que se chama «conversão/metanoia», e a que vamos resistindo em nossos hábitos e comportamentos adquiridos. Duas tragédias, uma política e outra natural. A política: a violência de Herodes que mandou matar revoltosos galileus enquanto prestavam o seu culto (sacrificavam), sem qualquer respeito pelas suas crenças. É a violência instituída do Estado, que sempre se justifica em nome da paz social. O outro episódio foi a queda da Torre de Siloé, em Jerusalém, que fez 18 vítimas. Nem num caso nem noutro há castigo de Deus, mas desafio a ler nesses sinais apelos à conversão, a uma radical reorientação de vida: «se não vos arrependerdes, morrereis todos de modo semelhante».
Todos os acontecimentos do mundo, positivos ou negativos, são para nós interpelações de Deus, ocasiões para atuar o discernimento sobre o modo como vivemos, como nos cumprimos. No nosso adiamento, nessa morna continuação dos nossos modos habituais de vida, pode estar inscrito um risco de perigo e de morte, um risco de catástrofe, a evitar futuramente. Jesus continua a dizer-nos que a vida é um projeto de liberdade, pessoal e coletiva. E que, a qualquer momento, podemos rever a orientação que levamos, introduzir novos rumos, arrepiar caminhos, inverter, se necessário, direção.
E com que ternura e consolo não lemos nós a parábola da figueira estéril, imagem possível de cada um de nós, no presente de uma aridez, de uma secura? Ou a imagem, forte, entre o espetáculo do culto das aparências (uma figueira viçosa, verdejante, com folhas de intenso verde) e sem aquela fecundidade (os figos) da doçura, da ternura, do perdão e da compaixão? Mas também podemos ler a forma violenta, condenatória, ruinosa com que pomos fim a relações, que julgamos infecundas e ruinosas? Ou ainda o modo como descarregamos a violência condenatória dos nossos juízos sobre pessoas que não correspondem às nossas expetativas e às nossas medidas? Todas estas dimensões, que bem podem ser as nossas, ali estão na imagem da figueira.
Saliento o contraste entre o julgamento decidido do dono da vinha, onde se situava a figueira, e o cultivador quotidiano da vinha (o vinhateiro) que a vigiava, a cuidava, e bem sabia esperar, com paciência, o tempo da floração e da frutificação. Ele sabia, também, por experiência adquirida pela prática no tempo, que podem passar anos sem uma árvore dar fruto. Depende do solo, da intensidade do sol, da qualidade da rega e do cuidado da terra. O dono da vinha manda cortá-la porque «está inutilmente a ocupar a terra». Três anos de inutilidade é tempo demais, numa lógica de pura produtividade. É necessário uma outra cultura agrícola mais produtiva, com resultados mais imediatos. Será a capacidade de produtividade imediata o único critério para avaliar pessoas e relações? Essa é a lógica dominante de uma sociedade de lucro imediato em que as pessoas são avaliadas pela sua «produtividade», pela capacidade imediata de dar frutos. E o tempo interior de crescimento, de maturação, as crises e os impasses da vida quem os tem em consideração?… Não entra na lógica dos processos de avaliação.
Mas o vinhateiro, homem do quotidiano e do concreto, homem da paciência da espera, que aceita o ritmo do tempo do crescimento próprio, tem outra solução, não drástica nem violenta: «Senhor, deixa-a ficar ainda este ano, que eu, entretanto, vou cavar-lhe em volta e deitar-lhe adubo». Que pedagogia de esperança ele nos oferece, desarmante. Com uma confiança sem cálculos, de não rendição à pura utilidade. Este cultivador introduz-nos a lógica de uma paciente espera ativa em seu compromisso, em seu empenho e investimento relacional e afetivo: «Senhor, deixa-a ficar ainda este ano, que eu, entretanto, vou cavar-lhe em volta e deitar-lhe adubo».
Que palavra bela este «entretanto», palavra de esperança, de futuro a partir do empenho no presente, de ação decidida e concreta, de mãos à obra, com esforço, com dedicação e entrega: cavar-lhe à volta, deitar-lhe adubo, preparar o terreno, estimular, acrescentar, motivar, são verbos de ação que bem podem ser concretizações pedagógicas e relacionais em nossas vidas. O homem que cuida da vida não pensa em destruir; não lhe passa pela cabeça arranca-la pelas raízes. Acredita na vida e por isso acredita que o que se faz hoje de empenho pela fecundidade da vida tem futuro, tornará a própria vida ainda mais fecunda, mais realizada, com frutos/figos doces.
E, contudo, não há nenhumas garantias que possa dar fruto no ano seguinte: «Talvez venha a dar frutos». Talvez sim, talvez não… Mas por esta lógica da espera, que é a lógica da misericórdia de Deus para nós, há sempre mais um tempo a acrescentar. Deus não desiste de nos esperar. É o Pai esperante, pacientemente. Para celebrar connosco da festa do encontro, e devolver-nos o anel e a veste de filhos amados. Como rezamos no Salmo, «o Senhor é clemente e compassivo, paciente e cheio de bondade».
A espera de Deus é razão para a nossa urgência, para a reorientação dos nossos caminhos, para buscar outras alternativas nos ritmos seguros das nossas vidas rotineiras, feitas da segurança dos hábitos adquiridos. É preciso ousadia, atrevimento, para arriscar caminhos alternativas e acolher, nesses desvios, as surpresas de Deus. Para isso nos aponta o belo texto do livro do Êxodo, na primeira leitura. Moisés, com 80 anos, cuida, tranquilamente, os rebanhos do sogro, na pacatez dos ritmos próprios de um idoso, que não gosta da vida alterada nem que lhe retirem as seguranças do quotidiano.
Mas, não se sabe por que razão, ou sem nenhuma razão justificada, este homem, um dia, por acaso, sem previsão nem planificação, «leva o rebanho para além do deserto e chega ao monte de Deus, Horeb», para além das suas rotas habituais de pastor. Nesse inesperado desvio das rotinas, por um homem com certeza cheio de rotinas, encontra a surpresa de Deus e um novo destino, impossível e impensável: voltar ao Egipto, de onde tinha saído como fugitivo, expulso pelos egípcios e pelos seus compatriotas, para os libertar da opressão.
Quando estamos abertos à surpresa, quando saímos das nossas zonas de conforto, quando avançamos num «para além» do conhecido, do habitual, há revelação, encontro e recomeço. Podemos voltar ao lugar de onde fomos expulsos, onde fomos feridos e excluídos, porque regressamos outros, curados por graça, e capazes de ajudar outros a crescer. Porque os caminhos de libertação pessoal só se podem traduzir em caminhos de terra prometida com os outros. Esse é o novo êxodo de Moisés, não regresso ao passado, mas passo no futuro com um povo de irmãos, convocados por Deus para a libertação.
Esse novo êxodo poderá ser também o nosso. Na paciência da espera de Deus, tomemos consciência da urgência da nossa frutificação. O tempo é breve.
Pe. António Martins, III Domingo da Quaresma
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