Minhas queridas Irmãs

Meus queridos Irmãos

Santa Noite de Natal

A noite de Natal tem um fascínio acrescido, precisamente porque na escuridão, ou na penumbra, a magia das luzes é maior e tem mais encanto. Assinalam-se os recortes luminosos, a fantasia da imaginação e das figuras. A narrativa do Natal tem, ainda, essa capacidade de nos envolver e de nos situar num tempo outro de sonho, de fantasia, de encantamento. Na noite de Natal celebramos a noite: as densas noites trágicas da história humana, a dramáticas noites da nossa existência, as noites da espera prolongada e por vezes desesperante.

Densas noites da dúvida, de solidão, de silêncio e de perda; noites de dor e de desolação, em que se sente o não-amor, em que se passa a paixão do não-acontecer e do não-sentido. Noites de resistência, de prova, de busca, por vezes desconcertante; noites de abandono e de medo, em que nenhuma luz nos habitou e a escuridão foi densa, envolvente, impenetrável: por todas essas noites se chega à noite de Natal. A liturgia da noite de Natal celebra, precisamente, a noite habitada pela luz. E convoca-nos para acolhermos as nossas noites à luz desta grande e santa noite.

A noite é o símbolo da desordem, do caos, da morte; a luz da ordem, da vida que se projeta, da criação que acontece, da história que avança. Mas noite e dia, trevas e luz não são duas ordens opostas, inconciliáveis, de significado; são duas dimensões complementares do nosso viver. Caminham em conjunto, paradoxalmente; por vezes alternam-se e experimentamos que essa mesma alternância é a verdade do ritmo da nossa vida. Não somos portadores de uma vida totalmente luminosa nem as nossas noites significam uma densa escuridão, sem rasgo de luz.

Duas passagens marcam esta paradoxalidade do mistério desta noite, evocado pelas leituras que acabamos de ouvir. Da primeira leitura, do Livro do Profeta Isaías, lemos a alegre notícia da promessa do Messias, «um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado». E essa é a luz dada a ver ao Povo que vivia nas trevas e na sombra da morte, que atravessava na sua história uma longa e desesperante noite. A noite da violência, da guerra e da opressão chega ao fim com a vinda do Príncipe da Paz, na promessa de um menino indefeso que é dado como sinal de futuro e de paz. A noite transporta uma gravidez de vida e de futuro. É nessa perspetiva que queremos ler os acontecimentos do tempo presente, com a sua inquietação, perplexidade e promessa.

No evangelho, Lucas narra-nos: «Havia naquela região uns pastores que viviam nos campos e guardavam de noite os rebanhos. O Anjo do Senhor aproximou-se deles e a glória do Senhor cercou-os de luz; e eles tiveram grande medo». Estes pastores faziam equipas de vigilância para guardar os rebanhos do perigo dos ladrões e dos animais ferozes. Para que uns tenham uma noite tranquila, outros precisam de vigiar, de estar de sentinela, atentos, prontos a socorrer ou a defender. Nesta noite de Natal celebramos e honramos também aqueles que, vigilantes na noite, garantem a segurança de outros, nas forças de segurança, nos hospitais, nos bombeiros.

A luz de Deus, anunciada pelo profeta ao Povo, pelo Anjo aos Pastores, pelas leituras a nós, não quer esquecer as noites da nossa condição humana. Deus vem consagrar a noite como modo de vir a nós, como modo próprio de estar connosco (de ser Emanuel), como modo de nos iluminar (em nossas noites). A escuridão é um existencial humano de que a fé não pode fazer economia. A noite é irmã da luz, e é na própria noite que mais podemos ver e acolher o brilho e a surpresa luminosa da luz, a visita do nosso Deus na discrição silenciosa de sua humanidade que vem connosco habitar nas nossas noites.

Nesta noite de Natal façamos a oferenda das nossas noites, aqueles densas de escuridão e aquelas habitadas por uma luz, aquelas marcadas pelo desespero e aquela em que renascemos em esperança. Aquelas noites em que fomos provados e nos sentimos vencidos e aquelas em que atravessámos a escuridão na certeza do amanhecer. A noite de Natal consagra todas as nossas noites, e nenhum fica de fora.

No silêncio da noite Deus entra de mansinho em nossa humanidade, para ser um de nós e Deus connosco. Entra não pelo caminho da força, mas pela fragilidade, expondo-se indefeso em sua vulnerabilidade ao nosso cuidado, ao nosso acolhimento. Deus oferece-se vulnerável numa criança indefesa às nossas mãos. O evangelho de Lucas di-lo aos pastores de uma forma solene e profundamente terna: «vos anuncio uma grande alegria para todo o povo: nasceu-vos hoje, na cidade de David, um Salvador, que é Cristo Senhor»; «Isto vos servirá de sinal: encontrareis um Menino recém-nascido, envolto em panos e deitado numa manjedoura». O encontro entre Deus e o Homem acontece na fragilidade da nossa condição humana. Na fragilidade do Menino e na de cada um de nós.

Nunca cessaremos de nos estranhar e rejubilar na densidade do mistério do Natal: Deus vem a vós como um de nós, como bebé que nasce de mulher e aprende a ser humano no tecido familiar e social das relações e dos afetos. Deus humaniza-se: perante esta condescendência do seu amor somos habitados por uma imensa ternura. Descobrimos que a fragilidade é o modo próprio de Deus vir a nós, de nos encontrar em nossa própria fragilidade.

Façamos a oferta da nossa pobreza ao mais pobres dos pobres, ao Pobre, esse Menino que precisa de tudo, pois é expressão da nossa humanidade carente e necessitada, aquela que Deus ama e que encarna, faz sua. Façamos a oferta da nossa pobreza, aquela que nos envergonha, que nos humilha, mas aquela que nos humaniza e que havemos de receber, continuamente, como dom da parte de Deus.

Só os pobres têm lugar no presépio, só os pobres de coração, com toda a sua pobreza em oferta, se sabem prostrar diante do Deus-Menino e por ele ser abençoados. As nossas riquezas (económicas, culturais, de relacionamentos, de família…) são apenas a máscara, ainda que muito sofisticada, da nossa humana pobreza, aquela que o Menino expõe e consagra nesta noite.

Pe. António Martins, Natal do Senhor, Missa do Galo

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