Em tempos, como os nossos, de reforço das dinâmicas identitárias, com o aumento perigoso do nacionalismo, em termos políticos, e de grupos integristas agressivos, em termos religiosos, consola-nos e motiva-nos a Palavra de Deus hoje. Consola-nos porque, convictamente, nos confirma na nossa resistência a entrar nessa perigosa lógica, por vezes homicida, de exaltação do próprio grupo à custa da denúncia, da perseguição e da exclusão de quem é diferente e exterior. Motiva-nos a um agir de integração e de inclusão, dimensões que cada vez mais parecem hesitantes, tanto na sociedade civil, a nível de políticas de alguns Estados, como no espaço religioso institucional.
Da primeira leitura, do Livro dos Números: Para escândalo e protesto de muitos, aqueles dois (Eldad e Medad) que, estando inscritos na lista oficial dos convocados, não comparecem à chamada, também receberam o Espírito de Deus e profetizaram no meio do acampamento. O dom da profecia não está dependente de listas de eleitos, de inscrições prévias. A ação de Deus, no interior das consciências, atravessa fronteiras. Haverá sempre alguém, mais jovem ou mais velho, a reivindicar que eles «não compareceram à chamada», e que, por isso mesmo, só podiam ficar excluídos da profecia.
Moisés alarga os estreitos horizontes identitários dos resistentes, denunciando a lógica subtil do ciúme entre eles e convocando todos a um desejo: «Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta e que o Senhor infundisse o seu Espírito sobre eles». O Espírito cria diversidade, diferença, iniciativa, audácia. Podemos fazer um exercício de imaginação: que configuração teria uma comunidade onde todos fossem profetas, cheios de ousadia, de criatividade, portadores de novidade? Uma comunidade carismática de profetas: é o sonho de Moisés para o seu povo.
O mesmo acontece no relato do evangelho de Marcos. Alguém, que não é do grupo dos discípulos, que não anda com eles pelo mesmo caminho, seguindo o Mestre, aparece a devolver qualidade de vida às pessoas, libertando-as de profundas alienações. Expulsa demónios em nome de Jesus, sem mandato; faz o mesmo que os discípulos, sem estar integrado na escola itinerante do Mestre. De imediato, ativa-se nos discípulos a lógica da exclusão, a vontade de controlar, de definir as regras do bem fazer, e de fazer o bem: «procuramos impedir-lhe, porque ele não anda connosco».
A pretensão identitária do grupo dos discípulos é anunciada por João. João é a figura do zelota, do potencial fanático identitário que late no profundo de cada crente, em cada um de nós. É a figura de uma Igreja-cidadela, amuralhada contra o mundo e contra os outros em suas iniciativas de vida multiplicada e libertadora e liberta. É a figura daqueles cristãos sempre prontos a julgar, a acusar e a proibir os comportamentos dos outros, a definir com rigor as fronteiras do dentro e do fora.
De Jesus uma resposta pronta e imediata: «Não o proibais; (…) porque ninguém pode fazer um milagre em meu nome e depois dizer mal de Mim. Quem não é contra nós é por nós». Há mais vida e vida do Espírito para além das fronteiras institucionais da Igreja e dos catálogos oficiais dos discípulos. O Espírito sopra onde quer, como o vento imprevisível. Atiça no coração humano o sentido da justiça, da bondade, do dom de si mesmo, do cuidado pela vida. Todos nós estamos fundados nessa fonte de beleza e de bondade que é o Espírito Santo de Deus.
Cada gesto, o mais quotidiano, o mais ferial, como dar de beber um copo de água, é um gesto salvífico. Não precisamos de momentos excepcionais para fazer o bem e sermos virtuoso: basta estarmos atentos ao acontecer da vida em suas carências e necessidades. Basta estarmos atentos às sedes dos nossos irmãos e lhe oferecermos, na humildade do dom, mas com o sentido da oportunidade, o copo de água que lhe mata a sede. Bem sabemos que este gesto banal, quotidiano, no meio da aridez e secura do deserto, era e é um gesto vivificante e salvífico. Quanta sensibilidade de vida não nos convoca o evangelho no quotidiano apressado nos nossos dias!
Ainda uma referência à parte mais difícil e obscura do evangelho de hoje. Choca-nos, sem dúvida, o que Jesus nos diz: «Se a tua mão é para ti ocasião de escândalo, corta-a; porque é melhor entrar mutilado na vida do que ter as duas mãos e ir para a Geena, para esse fogo que não se apaga». Deixo uma proposta de leitura: «mão», «pé», «olho» são símbolos corpóreos que reenviam para dimensões práticas do nosso sentir, do nosso desejo, do modo como nos relacionamos com os outros e com o mundo. São, fundamentalmente, modos de relação a cuidar.
A mão expressa a força do agir, do fazer, a capacidade criadora, mas também destruidora; assinala a violência da apropriação, da posse, da agressão. Mas a mão também semeia, cuida, cura, ampara, protege, acaricia, abençoa. Cortar a mão poderá significar o corte de expressões práticas do desejo de posse, de apropriação, de manipulação, de violência, de poder. O pé assinala a inscrição do nosso corpo no mundo, mas também indica impressão (rasto de peugadas), ocupação do espaço, apropriação, conquista e posse (as botas de guerra dos soldados). Com os pés se espezinha, se esmaga, se humilha. A imagem de cortar o pé poderá ser um alerta severo para o cuidado permanente com o que pisamos, o modo como andamos e respeitamos a vida que acontece sob os nossos pés. O olho expressão de um desejo de cobiça, o roubo, a apropriação indevida do outro reduzido a objeto e a coisa. Pelo olhar começa, no interior de nós mesmos, a ativar-se a lógica de um desejo devorador. Por isso o evangelho nos convida a uma continua purificação do olhar: «Bem-aventurados os puros de coração porque verão Deus». Precisamos de disciplinar o nosso próprio olhar, cortar a tentação permanente de manipulação e instrumentalização do outro, reduzido a objeto do nosso desejo. Olhar bem é reconhecer o mistério do outro em sua inacessibilidade e transcendência, esse reduto inviolável de uma liberdade e de uma consciência que nunca alcançarei, que sempre me escapa.
A que disciplina dos sentidos e dos gestos o evangelho nos convoca! Numa vida espiritual feita no quotidiano.
Pe. António Martins, Domingo XXVI do Tempo Comum
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