
Queridos Irmãos e Irmãs
A viagem de Jesus com os discípulos, e connosco, continua. Mas se Jesus e os discípulos percorrem o mesmo caminho geográfico, entre um e outros há um profundo desencontro. A viagem geográfica, pelo terreno da Galileia, não corresponde a uma viagem interior sintonizada, em comum acordo.
O evangelho de Marcos, e particularmente o texto de hoje, faz eco desse radical abismo. Apresenta-se como uma radiografia da permanente tensão que atravessa a vida da Igreja, de toda a comunidade e o interior de nós mesmos: a abissal distância entre os apelos de Cristo e a nossa capacidade de compreender e responder. Nunca estamos à altura do Evangelho, e levamos tempo (tanto tempo…) a conformar a nossa vida com a sua Palavra.
Mas Marcos é também a expressão de um Cristo que não desiste dos seus discípulos (de nós), resistentes, duros de coração e de mente, e que continuamente, com paciência, nos educa e nos instrui com a sua palavra e os seus gestos.
Mais um anúncio da subida a Jerusalém (o filho do homem vai ser entregue, morto e três dias depois ressuscitará) só aumenta neles a resistência e o medo: «Não compreendiam aquelas palavras». Também não são capazes de pedir esclarecimento a Jesus. Sabemos mais à frente pela narrativa do texto evangélico que o silêncio e o medo são apaziguados com a discussão sobre qual deles é o maior. Jesus coloca-os perante as questões decisivas da vida: o sofrimento, a morte, a esperança que atravessa o abismo do nada (a ressurreição), e eles distraem-se em disputas de poder e de influência.
À agitação do caminho sucede a quietude do repouso em casa. «No caminho» e «em casa» são dimensões complementares da espiritualidade cristã. A imagem do caminho a assinala que a vida é viagem, avanço, transito por zonas desconhecidas, acidentadas, vales tenebrosos, ou suaves e tranquilas planícies.
Mas precisamos de tempos de repouso e de descanso, de pausas regenerativas, de aprofundamento das razões que nos mobilizam, de espaços serenos de tranquilidade, de hospitalidade e de afeto. Precisamos todos de um abraço que nos acolha, de uma casa que nos proteja. Depois da caminhada, os discípulos chegam a casa, em Cafarnaum. E na tranquilidade do encontro e dos afetos, o Senhor faz com eles uma espécie de revisão de vida do que foi dito e vivido pelo caminho. Convoca-os a uma pedagogia do discernimento, não apenas com palavras mas também com gestos concretos.
«Em casa», pergunta-lhes: «O que discutíeis no caminho?».
Sublinhamos o pormenor narrativo de Marcos: «Eles ficaram calados, porque tinham discutido uns com os outros sobre qual deles era o maior». Envergonhados, não são capazes de dizer ao Mestre a razão da sua discussão. Afinal o caminho não era um seguimento incondicional e desinteressado de Jesus; era, sobretudo, um lugar de discussão e de competitividade entre os discípulos sobre qual deles seria o maior.
O texto oferece, com realismo e traços de alguma crueza, o espelho da nossa contínua condição de discípulos desencontrados com o seu Senhor, mais preocupados com a conquista de protagonismo do que com o alinhamento pascal e o serviço desinteressado aos irmãos.
Entre a Igreja e Jesus há uma fratura de abissal distância, uma zona de não coincidência, de rejeição até. O texto de Marcos põe a nu as intenções profundas do coração humano. Não são, frequentemente, as nossas comunidades, pequenas ou grandes, lugares de violenta ou subtil disputa de protagonismo e de áreas de influências?
«Jesus chamou os Doze e disse-lhes: «Quem quiser ser o primeiro será o último de todos e o servo de todos». E para que tudo isto não seja apenas palavras faz um gesto concreto e exemplar, como atitude pedagógica: «E, tomando uma criança, colocou-a no meio deles, abraçou-a». Sublinhamos a sequência das palavras que se tornam centrais no texto: «último», «servo de todos», «criança no meio».
Também nós somos chamados a colocar no centro das nossas vidas e no centro das nossas comunidades os mais frágeis, os carentes de segurança e de reconhecimento. Somos chamados, evangelicamente, a valorizar a dimensão do encantamento, da fantasia, da autenticidade sem cálculo, da arte do jogo e da festa, próprias das crianças, e que enquanto sérios adultos vamos sufocando e perdendo. Em cada um nós, há sempre uma criança a salvar e a recuperar.
Há ainda um outro elemento a assinalar: A criança é apresentada como ícone vivo e encarnado de Cristo a solicitar acolhimento e aceitação (outro Cristo): «Quem receber uma destas crianças em meu nome é a Mim que recebe». O Verbo «receber» significa estender as mãos abertas para acolher um dom que nos é dado. Cristo vem a nós, oferece-se às nossas mãos de ternura e de acolhimento na carne dos mais vulneráveis, carentes indefesos.
No centro do evangelho está a carne dos frágeis, dos mais pequeninos. No centro da experiência cristã está o afeto, a ternura, o abraço, a vulnerabilidade.
Seja esse também o centro da nossa vida.
Pe. António Martins, Domingo XXV do Tempo Comum
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