Queridos irmãs e irmãos,

O Cristianismo parece uma proposta fácil e parece uma proposta impossível. A acusação que desde a Antiguidade pesa sobre os cristãos, uma suspeita permanente que sempre tem acompanhado a História ao longo destes dois mil anos, é perguntar se os cristãos são verdadeiramente pessoas religiosas, se o Cristianismo é uma religião e não é uma forma de ateísmo – que é uma acusação que muitas vezes se fez aos cristãos, dizendo: vocês são ateus, não são religiosos, porque o ethos cristão, aquilo que vos distingue, a diferença cristã o que é?

Se dizemos “Deus é amor. E quem ama é que conhece a Deus, quem não ama não conhece a Deus”, de certa forma estamos a deslocar a questão central da religião que é o conhecimento de Deus. Estamos a deslocar de um campo tipicamente religioso para coloca-lo num campo antropológico. Por isso aquela história do militar romano, do centurião romano que Pedro conhece, que é um homem bom, um homem que pratica a justiça, um homem que ama os seus semelhantes e que recebe o Espírito Santo. Não há nenhum impedimento para que o Espírito Santo não desça sobre os pagãos, sobre os gentios, sobre aqueles que desconhecem Deus. Eles desconhecem Deus, mas Deus não deixa de estar neles, não deixa de os conhecer. Isso faz do Cristianismo, e é essa a acusação, uma religião fácil. Porque não é uma religião de uma iniciação rebuscada no conhecimento de Deus, não pede de nós uma ascética em direção ao divino muito peculiar, mas é o amor que nos dá o conhecimento de Deus, que é o grande laboratório do conhecimento de Deus.

E, ao mesmo tempo, o Cristianismo parece uma proposta impossível porque esta passagem do Evangelho de S. João é eloquente. Porque Jesus diz: “O meu mandamento é este: amai, amai-vos uns aos outros como Eu vos amei.” E nós sabemos que podem-nos pedir muitas coisas, mas ninguém nos pode pedir para amar. Amar não depende de uma lei. Não há nenhuma lei que mande amar. As leis mandam respeitar, mandam reconhecer a dignidade, reconhecer os direitos dos outros, mandam ser tolerante, mandam dar lugar, dar um espaço de vida ao outro. Mas amar o outro? Que lei é esta? E como é que nós podemos compreender esta palavra de Jesus que faz do amor uma ordem, um imperativo, um mandato, um mandamento? “O Meu mandamento é este: amai, que vos ameis uns aos outros como Eu vos amei.”

E nós pensamos: será possível? O Cristianismo será uma proposta razoável para a nossa vida? Não me está a ser pedida uma coisa que eu não consigo realizar? O amor está no centro da experiência cristã e no centro do grande anúncio que Jesus faz de Deus. Deus é dito como o Amor. Que é uma coisa que muitas vezes nós não chegamos a compreender porque vivemos o amor de uma forma transitiva, vivemos o amor como ação. Nós amamos ou não amamos. E, em relação a Deus, o amor não é uma forma de ação, é uma forma de ser. Deus é Amor, Deus é Amor. Deus identifica-se com o próprio Amor. Não há nenhuma separação entre o que Ele guarda em si, guarda no mistério da Sua pessoa, da Sua essência e aquilo que é o Amor. Há uma coincidência total. Que é uma coisa que em nós não existe, não é natural. Mas é um chamamento, é uma construção sobrenatural que tem de acontecer em nós. Nós só poderemos viver o mandamento do Amor se permanecermos no amor. E permanecer no amor não é apenas amar pontualmente este ou aquela, mas permanecer no amor é fazer do amor a sua identidade, é fazer do amor a sua vocação, é fazer do amor aquilo que se é de uma forma estável, de uma forma contínua. É treinar tantas vezes o amor, é buscar tanto o amor, é praticar tanto o amor que o amor se torna a nossa vida e deixa de haver uma distinção, uma diferença. Porque o amor contamina, contagia, infiltra-se em tudo aquilo que somos e isso é permanecer no amor.

A proposta cristã só é possível porque nós somos amados por Deus, porque Deus nos dá esse amor assim. Porque Ele ama-nos primeiro. O amor que nos é pedido, antes de tudo, é um amor passivo, não é um amor ativo. Muitas vezes nós pensamos no amor como uma capacidade de fazer, o amor é antes de tudo uma capacidade de aceitar, uma capacidade de receber, uma capacidade de acolher o dom, aquilo que nos é dado, aquilo que nos visita em cada dia, em cada instante. Poder receber. E talvez o amor mais difícil para nós não seja o amor que nós damos mas seja a nossa incapacidade, os obstáculos que colocamos a ser amados, a receber este amor pleno, este amor total, este amor de que temos medo, este amor de que fechamos as portas, este amor que não interpretamos. Porque, se nós nos situamos dentro do amor, nós percebemos que o amor nos visita continuamente, percebemos que tudo à nossa volta é uma corrente de amor e percebemos muito mais presente na nossa vida do que nós estamos dispostos a reconhecer.

Por isso, aceitar ser amado, aceitar esta passividade do amor, aceitar que o amor nos encha, aceitar que o amor é desde sempre. Porque, quando pensamos no amor, pensamos claramente na nossa história psicológica, no nosso itinerário biográfico. E pensamos: tenho 50 anos, o amor em mim tem 50 anos. Não, o amor em mim é desde sempre, é desde a eternidade, é desde a origem de Deus, é desde o coração de Deus e é com esse amor eterno que eu me tenho de confrontar. Não é apenas com o amor hesitante, relutante, presente ou não presente da minha história com o qual eu tenho de fazer contas, mas eu tenho de ligar-me, de conectar-me interiormente com esse amor eterno, com essa torrente de amor, com esse oceano de amor que vem desde sempre. E é essa eternidade do amor em mim que é capaz de reparar todas as feridas, todas as lacunas, todo o espaço por resolver, toda a pergunta sem resposta. É esse amor eterno capaz de me consolar, capaz de dizer a minha verdadeira identidade, aquilo que eu sou.

Por isso, a experiência fundamental, a experiência fundante é esta experiência de se ser amado. E aqui nós precisamos, na nossa relação com Deus, de fazer uma viragem, de fazer uma mudança de olhar. Porque ainda ficamos dependentes de um Deus que nos julga, de um Deus que só dá o amor se merecemos – aquele ditado português: “Deus castiga mas não é com pau nem com pedra, mas Ele castiga.” Estamos sempre à espera do Deus que nos castiga, do Deus que nos policía, do Deus que é o deus da moral, o Deus que nos impõe um caminho ético, uma decisão ética e que depois nos vai pedir contas – não mergulhamos na intensidade deste mistério deste Amor de Deus que é aquilo que nos pode transformar e nos pode ensinar quem é Deus. Nós precisamos aprender quem é Deus e só o aprendemos, diz S. João, se soubermos a desmesura, a excedência, o exagero, o infinito desse amor, a experiência de um amor assim que nos toca para lá de todo o mérito, para lá de toda a qualidade, para lá de toda a coisa boa que podemos querer ou sonhar. Quando somos maus também Deus nos ama, quando somos miseráveis também Deus nos dá tudo do Seu amor. Quando somos infiéis, Ele continua a ser fiel, porque só a fidelidade a esse amor nos pode salvar, só porque Deus permanece fiel à mulher ao homem que somos é que nós podemos ser salvos.

E por isso, o que é a fé cristã? É a contemplação, é o espanto por um amor assim. Vivermos o espanto, vivermos a contemplação permanente, vivermos a oração de um amor assim. Um amor que está para lá de tudo, é superior a tudo, é que é de facto a medida do amor.

Há um filósofo contemporâneo, Jean- Luc Nancy, que escreveu uma série de textos que intitulou a A Declusão (Desconstrução do Cristianismo) e ele centra-se muito na questão do amor. E diz: “O Deus que os cristãos anunciam é um Deus que vive fora de Si, é um Deus que vive alheio a Si mesmo, que vive completamente em saída.” E o amor é isso, o amor não é eu basear-me naquilo que eu sou, não é eu fazer da minha vida uma trincheira, um repositório de amor. O amor não é uma coisa que eu tenho em mim, o amor precisa dessa saída. O amor é isso. Nós não podemos dizer: o amor é fazer isto ou fazer aquilo. É fazer tudo, é “Ama e faz o que quiseres” como dizia Sto. Agostinho. Mas, o amor é essa saída permanente, esse êxodo permanente, essa capacidade de se colocar no lugar do outro, essa excedência em relação a nós próprios, esse alheamento, esse esquecimento de si, esse tornar a vida dom, dádiva nas minúsculas realidades e nas grandes, é viver esse transbordar. Deus é presença transbordante de amor. É o ato de transbordar, é o ser transbordante.

E é isso que nós precisamos. Vivemos demasiado à defesa, vivemos demasiado a fazer contas do que tu me deste e do que eu dou, vivemos demasiado limitados à ética da retribuição: eu amo aqueles que me amam. Vivemos demasiado nos nossos cálculos, nas nossas contas e perdemos a vida. Porque, se a vida não é o transbordar, nós perdemos a vida, perdemos essa água, deixamos de ser aquilo. Pensamos que aquilo que nos é pedido é manter a água intacta no cântaro, quando o que nos é pedido é este derramar-se. O amor é isso, o amor é um derramar-se, é alagar tudo desse amor. E não pode ser só amar aqueles que me amam, mas tem de ser um alagar todas as coisas, um chegar a todas as coisas. Porque aquilo que é próprio do amor é precisamente essa expansividade, esse alargamento permanente.

E depois, isso é vivido sob a forma da compaixão. Nós precisamos aprender verdadeiramente de Deus este Amor como compaixão. Compaixão uns pelos outros, compaixão pelas criaturas, compaixão pelo mundo, compaixão connosco mesmos (que às vezes é tão difícil), compaixão com o próprio Deus. É interessante como os Pastorinhos de Fátima, naquela simplicidade um bocado rudimentar, primária das crianças, tinham a sensibilidade de dizer que tinham de consolar Deus, que tinham de consolar Nosso Senhor, que Nosso Senhor precisa de ser consolado. E esta consolação é um ato de compaixão. Nós precisamos de colocar no centro como expressão orante da nossa vida a compaixão. O que nos distingue não são as orações que podemos ou não saber, o que nos distingue verdadeiramente é uma prática permanente de compaixão e atenção amorosa aos outros, e atenção comprometida no afeto de uma afetuosa presença ao lado uns dos outros e no meio do mundo.

Hoje nós celebramos o Dia da Mãe. E na figura da mãe nós percebemos muito daquilo que Deus é. A mãe é uma página do Evangelho, porque nos diz sem palavras com a forma de ser aquilo que nós contemplamos em Deus e temos de contemplar em nós. Porque, nós somos mães e pais uns para os outros, nós somos parteiros de vida uns para os outros, nós ajudamos os outros a ser, os outros a viver. E isso é amar a Deus, isso é perceber o Deus que é Amor.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo VI da Páscoa

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