Queridos irmãs e irmãos,

A leitura do livro do Génesis começa com uma pergunta inesperada mas necessária: “Onde estás?” Deus pergunta à sua própria criatura: “Onde estás?

Onde estamos nós?” é uma pergunta existencial e espiritualmente obrigatória: porque é partindo do lugar onde estamos que nós podemos fazer um caminho, é abraçando e aceitando o lugar onde estamos que uma transformação pode acontecer, que a receção do dom de Deus e do acolhimento de Deus pode acontecer.

É claro que os rabinos diziam que esta era a pergunta mais estranha que aparecia no Antigo Testamento, porque Deus é Omnisciente, Ele sabe tudo. Se Deus sabe tudo, porque é que Ele pergunta ao homem “Onde estás?”. Então, esta seria talvez a única palavra da Bíblia desnecessária, redundante. Deus faz a pergunta mas já sabe a resposta. E se Deus faz a pergunta e não sabe a resposta, quer dizer que não é Omnisciente, e então esta pergunta também é uma pergunta que coloca problemas colossais em termos teológicos.

Eu acho que o que está aqui em causa não é o debate a saber se Deus faz a pergunta sabendo a resposta ou ignorando a resposta. O importante é que Deus faz a pergunta. Deus fez a pergunta e continua hoje, a cada um de nós, a fazer a pergunta: “Onde estás?”

Porque se Deus tem desejo de vir ao nosso encontro e tem esse desejo incondicional e eterno de tocar a mulher e o homem que nós somos, Deus faz-nos essa pergunta: “Onde estás?”

E “onde estás” não apenas no sentido geográfico, mas no sentido existencial, no sentido psicológico, no sentido biográfico, no sentido invisível: “Onde é que tu estás? O que é que estás a viver? O que é de ti?

E nós sabemos que é muito fácil enganar-se nesta resposta.

Aliás, o Evangelho de certa forma é uma expressão do engano, porque quando Jesus começou a sua atuação pública, a sua família ficou muito preocupada, pensou: “Esse lugar onde tu estás não é um bom lugar para ti, esse lugar é um lugar perigoso, esse lugar é um lugar do qual nós temos de retirar-te”… e então vão ter com Jesus precisamente para o retirar daquele lugar, porque não compreendiam ainda, até ao fundo e até ao fim, a missão de Jesus, a identidade de Jesus, o que é que Ele estava a fazer. E julgavam-no como ilegítimo, como um perigo.

Por isso o lugar onde nós estamos é um lugar que cada um de nós tem de responder. E na nossa oração é importante que nós possamos dizer a Deus onde estamos, dizer: “Senhor, eu estou aqui, eu estou neste lugar.”

Porque é desse reconhecimento do lugar onde estamos que nasce verdadeiramente a possibilidade de um encontro, e de um encontro que nos salve.

A vida espiritual não pode ser só um encontro de funções, um encontro de papéis, um encontro de fórmulas. Tem de ser um encontro de pessoas, porque a oração é um verdadeiro abraço de Deus à minha vida, à minha história.

Por isso o que eu transporto, o que eu vivo, o que eu sou, a intercessão das múltiplas variantes da minha existência não são coisas indiferentes. Não é: “Deus tanto me ama a mim como podia amar qualquer outra pessoa diferente do que eu sou….” Não, Deus ama-nos a nós, à nossa vida, Ele está interessado em vir ao encontro exato daquilo que nós somos. E para Ele não há obstáculo, não há limites.

Aqui, de facto, também o Antigo Testamento às vezes até parece blasfemo, está a “esticar a corda” para lá daquilo que é razoável, que põe em causa os próprios atributos de Deus. Porque, por exemplo, o Salmo 23, o Senhor é meu Pastor, vai dizer: “Se eu estiver no Inferno, Deus vai ao Inferno buscar-me, se eu estiver no vale da morte, Deus desce à morte, se eu estiver a atravessar a escuridão, Deus está na escuridão”.

Então Deus está em todo o lado, naqueles sítios em que pensamos “Bem, Deus não pode vir aqui porque esta é a minha miséria, esta é a minha confusão”. Deus vai aí arrancar-nos. Deus vai aí. Qualquer que seja o lugar onde nós estivermos, Deus vai aí ao nosso encontro. Vai para dar-nos uma palavra de esperança. Por isso não vale a pena escondermo-nos. Muitas vezes a nossa relação com Deus é um jogo de esconde-esconde, em que dizemos meias palavras, faz de conta, está e não está…como Adão que, por se sentir nu, esconde-se de Deus. E Deus pergunta: “Mas porque é que te escondes?’” E ele disse: “Porque eu estava nu.”

A nossa nudez, a nossa fragilidade, a nossa vulnerabilidade não é um impedimento. Estou convencido que não é o nosso pecado que nos afasta de Deus.

O que nos afasta de Deus é a descrença no Seu amor, a descrença na possibilidade que Deus tem de transformar a nossa vida. Porque Deus pode tudo. Dirá S. Paulo: “Onde abundou o pecado, superabundou a graça”. Por isso aquela coisa misteriosa que Jesus fala hoje no Evangelho de S. Marcos: “Tudo será perdoado aos filhos dos homens, há só um pecado que não é perdoado, é o pecado contra o Espírito Santo.”

Na história da teologia discutiu-se imenso sobre o que seria esse pecado contra o Espírito Santo que não tem perdão. Mas cada vez é mais claro que o pecado contra o Espírito Santo é não acreditar na força do Espírito Santo, é desarmadilhar, tirar o tapete ao próprio Deus, é dizer: “Não, Tu isto não podes salvar, esta parte de mim nem Deus consegue recuperar, isto é insalvável”… esse é o pecado contra o Espírito Santo. Porque Deus pode tudo, Deus é Deus, e não há nada em nós que Ele não possa salvar.

Por isso, não desesperemos da Salvação. Às vezes numa vida adulta o desespero expressa-se de muitas maneiras. E uma forma com que o desespero se expressa é o cinismo ou uma condescendência, que no fundo revelam o quê? Revelam esta dúvida que Deus possa fazer alguma coisa de mim: “Será que Deus pode de facto fazer alguma coisa de mim?” É importante que sintamos que Deus pode. Deus pode fazer destas pedras filhos de Abraão, Deus pode fazer do meu coração de pedra um coração de carne, Deus pode fazer da minha incerteza, da minha nudez um lugar de encontro, um lugar de reencontro. Deus pode.

O facto de Deus poder enche a nossa vida também de possibilidade, enche a nossa vida de projeto, enche a nossa vida de destino.

Queridos irmãos, esta coisa tão bela que S. Paulo nos diz hoje na Segunda Carta aos Coríntios: “Nós não olhamos só para as coisas visíveis, nós olhamos para as coisas invisíveis.

Nós estamos aqui não apenas pelas coisas visíveis. E muitas vezes as coisas visíveis da nossa vida é a “espuma dos dias”, é esta coisa incerta, inacabada, impreparada, imperfeita, é este rame-rame, é esta rotina. Muitas vezes as coisas visíveis são o aspeto menos interessante da nossa realidade.

Mas nós estamos aqui não apenas para fixarmos os olhos nas coisas visíveis, nós estamos aqui para olhar para as coisas invisíveis.

E o que é para nós, neste momento das nossas vidas, olharmos para as coisas invisíveis? S. Paulo dá-nos uma ajuda: “As coisas visíveis são passageiras, as coisas invisíveis são eternas.

Então, a grande sabedoria hoje para a nossa vida é colocar os olhos mais naquilo que é eterno do que naquilo que é passageiro. E isto implica de nós uma conversão, implica de nós uma transformação, mas nós não estamos sós.

Hoje um dos dramas trágicos da cultura contemporânea é que coloca o custo da existência apenas sobre cada um de nós. Nós só podemos contar connosco… ou acertamos ou erramos, mas a culpa é nossa ou o mérito é nosso. E estamos sozinhos perante uma aventura ontológica, uma aventura de ser que claramente é maior do que nós, claramente nos supera, porque nenhum de nós é uma ilha, para bem e para mal. Há coisas que nós herdamos, há coisas que vieram de longe, há coisas que nós não conseguimos mudar, não conseguimos fazer diferente e há coisas de bem que nos excedem, que são maiores do que nós. Mas a cultura contemporânea diz: “Não, é o indivíduo, és tu que tens a responsabilidade. És tu e és só tu!”

A visão cristã e católica da vida não diz isto, diz: “Nós somos responsáveis, nós somos sujeitos da nossa história, mas nós não estamos sós, nem no bem nem no mal. Por isso nós temos este diálogo interessante do jardim: Deus vem perguntar a Adão “Onde estás?” e ele reponde “Escondi-me porque estava nu”, “Mas quem te disse que estás nu?”, “Foi a Eva”, e Deus vai falar com Eva “ Mas então o que é que aconteceu?”, “Olha, foi a serpente”, e Deus no fim dá o castigo à serpente e diz “Olha, tu é que estiveste a enganar estes dois”…

Então, há um pecado social, há uma influência em nós, há um condicionamento da nossa vida que não depende de nós. E saber isto também nos liberta, porque às vezes carregamos o peso todo do mundo, esmagados por aquilo que não conseguimos nem vamos conseguir, porque nós não estamos sós e estamos numa luta que em grande medida é maior do que nós e nos ultrapassa, que é uma luta entre o mal absoluto e o bem absoluto. Por isso é que há a figura de Deus como a figura do bem e há a figura de demónio como a figura do mal, que também nos condiciona, também nos tenta, também nos limita, também nos empurra para a desesperança, também nos tira o chão debaixo dos pés.

O Papa Francisco fala muito desta figura que tenta diminuir a nossa vida.

Às vezes, nós cantamos um cântico de Taizé com uma letra do Irmão Roger que dizia: “Senhor, não deixes que a noite fale ao meu coração”. E às vezes a noite pesada, a noite escura, a escuridão fala ao nosso coração e condiciona o nosso coração. A culpa é nossa? É! Mas a culpa é também de existir noite, e não fomos nós que a inventámos. A culpa também é de tanta coisa má que já existia antes de nós e que nos enreda, que é uma armadilha para nós e nos rouba a nossa liberdade, nos seduz e nos engana.

Por isso a culpa não pode ser só do homem, individualmente, por isso dizemos: ”Não, é o Demónio que te tenta, é o Demónio que te quer vencer”. E Deus vira-se para a serpente e diz: “Tu fizeste isto às minhas criaturas”.

E a mesma coisa em relação ao bem. Há um bem que sentimos que é um dom, não teve mérito, não dependeu de nós, foi-nos dado… e o que nós podemos fazer é agarrar e agradecer, dizer “Obrigado”!

Com esta representação da vida, do bem e do mal, de Deus e do demónio, o que é que nós temos? Temos o Amor de Deus, a Misericórdia de Deus para com o ser humano, frágil no meio disto tudo, tantas vezes incapaz, tantas vezes condicionado.

Isto é para dizer-nos que nós não estamos sós nesta aventura, neste caminho que nós estamos a percorrer e que é no fundo a história da nossa vida. Nós não estamos sozinhos, Deus vem ao nosso encontro, Deus compreende-nos. Ele até compreende que nós falhamos, que nós nos estendamos ao comprido, Ele até entende como entendeu os primeiros pais no jardim.

Mas Ele não deixa de vir ao nosso encontro, Ele não deixa de perguntar “Onde estás?”, e não por uma curiosidade académica, mas por uma curiosidade de Amor. De vir recomprar-nos, redimir-nos, recuperar-nos, reintegrar-nos na dinâmica da Sua Graça, da Sua Ternura, da Sua Esperança.

Sintamo-nos por isso apoiados. Um cristão não está só, nós não estamos sós no meio da nossa noite. Ele está connosco, Ele entende-nos, Ele dá-nos a capacidade de ser, aquela capacidade, aquele reforço de que exatamente nós precisamos.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo X do Tempo Comum

PAUSA ESTIVAL

A Capela do Rato encontra-se em pausa estival, reabrindo a 15 de setembro, com a Eucaristia às 11h30.

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