Queridos irmãs e irmãos,
Celebramos hoje a Solenidade da Santíssima Trindade, o mistério de Deus. Deus é mistério, é inefável, está para lá das nossas palavras. Nós só conseguimos tatear a orla deste grande enigma que é Deus, desta grande Luz, mas Jesus veio revelar-nos coisas importantes sobre o mistério de Deus sem o desfazer.
Porque Deus é mistério e nós temos, no fundo, de preparar sempre o nosso coração para o contacto com o mistério. Deus é transcendente, Deus não cabe nos nossos raciocínios, e por isso é natural que nos faltem palavras, conhecimentos, que tudo pareça escasso perante Deus.
Contudo, Jesus veio iluminar-nos o mistério de Deus e dizer-nos que esse mistério é um mistério de comunhão de pessoas. Deus não é uma solidão para lá do nosso universo e sistema, Deus é comunhão que nos integra, que nos inclui.
Deus é essa diversidade e unidade de pessoas. Deus que é o Pai – e chamar a Deus Pai é já alguma coisa que o próprio Jesus colocou no centro da sua Revelação, isto é, nós não nos relacionamos com Deus como se Deus fosse o motor imóvel de que fala Aristóteles, ou um Arché, um Princípio de que falavam os pitagóricos, mas Deus é uma Pessoa, Deus é um Tu, e é um Tu que nos ama, um Tu que está na origem daquilo que nós somos, porque Ele é o Pai.
Olhar para Deus como Pai tornou-se para nós cristãos a forma da nossa relação com o próprio Deus, mas sabemos que este Deus, sendo o Pai é também o Filho, está também no Filho, repousa também no Filho – e é o Filho que o dá a conhecer, porque Ele participa da própria divindade do Pai.
Esse Filho para nós é Jesus, a imagem por excelência do Filho – e dizer que Jesus, o Crucificado, o Ressuscitado, é o Filho, necessariamente faz-nos atravessar o paradoxo, a contradição: porque como é que se pode ser o Filho de Deus, como é que se pode ser Deus e ser o Crucificado?
Mas é este paradoxo que a Cruz ostenta e expõe diante dos nossos olhos que dá sentido também à nossa fé.
A verdade de Deus é uma verdade crucificada, é uma verdade de Amor levada até ao seu extremo, levada até ao paroxismo: que é amar tão radicalmente que aceita a sua própria autodestruição, que aceita passar pelo suplício da própria Cruz, que aceita ficar com os braços amarrados para poder abraçar verdadeiramente a todos.
Então a divindade de Deus é uma divindade que se manifesta pelo Amor radical, que se manifesta pelo despojamento, aquilo que no Hino aos Filipenses nós vamos dizer: “Jesus não se valeu da sua igualdade com Deus, mas tornou-se semelhante ao homem, e ainda mais se rebaixou, tornando-se igual a um escravo”.
Então nós adoramos um Deus que se faz escravo de cada um de nós, que é capaz de dar a sua vida – e é uma vida que nós não sabemos descrever, porque é não só uma vida humana mas também a vida de Deus, a origem de toda a vida. Deus é capaz de dar essa vida para a salvação e para a vida de cada um de nós.
Então este Deus não é só acreditar que existe alguma coisa, mas é acreditar num Deus pessoal e num Deus com um amor assim em relação à mulher e ao homem que nós somos, em relação à nossa própria vida.
Deus brilha neste Filho, neste Filho que se faz o irmão mais velho e o primeiro irmão de cada um de nós, que dá a sua vida por nós.
E Deus é Espírito Santo.
No Domingo passado celebrámos a grande Solenidade do Pentecostes, o Espírito Santo é o grande Artesão. Jesus estando à direita do Pai, o Espírito Santo é o Deus connosco, é Aquele que está todos os dias connosco, é o Artesão da nossa comunhão, é Aquele que faz arder o nosso coração, é Aquele que nos dá a sede, que nos dá a fome de Deus. É Aquele que nos coloca à procura, mas também é Ele o Consolador, é Ele o Explicador, o Hermeneuta de Deus, é Ele que vai defender a fé dentro do nosso coração, é Ele que nos vai aproximar uns dos outros, é Ele que nos torna criativos, que nos torna cristãos originais, é Ele que nos torna uma Igreja em saída. É o Espírito Santo que nos dá a capacidade de cumprir este mandato de Jesus: “Ide e fazei discípulos em todo o mundo.”
Nós somos capazes disso porque o Espírito Santo está em nós. O Espírito é ânimo, o Espírito é vento, o Espírito é sopro, o Espírito é dynamis, o Espírito é força, o Espírito dá-nos a capacidade de ser, o Espírito não nos deixa de braços cansados, o Espírito é o Artífice e é também essa força de uma fé criativa.
Ao mesmo tempo o Espírito Santo representa o terceiro, o “três”. E o “três” na estrutura da relação é alguma coisa muito importante.
Porque o “um” todos nós percebemos, porque somos um eu, eu sou um e cada um de nós é um…há dimensões da nossa vida em que estamos radicalmente nós próprios, e gostávamos de ser outra coisa, mas somos nós … então, o “um” cada um de nós sabe o que é: para bem e para mal, somos um.
Sabemos também o que é o “dois”, porque o “dois” é o encontro do outro. No amor nós encontramos o “dois”, esse “dois” que complementa, esse “dois” com o qual aspiramos a uma fusão, esse “dois” que nos amplia, esse “dois” que nos conforta, esse “dois” que é tão semelhante a nós na sua diferença, esse “dois” que é a realização do “um”. O “dois” nós sabemos o que é, o “dois” é aquele que está ao nosso lado, o “dois” é a nossa família, os nossos amigos, a nossa tribo, a nossa comunidade, esse é o “dois”.
Mas há o “três”. E o “três” é aquele que rompe muitas vezes essa coisa tão fácil que é o diálogo entre os dois. Esse terceiro obriga-nos a viver uma comunhão muito mais ampla, que não é apenas a comunhão numa reciprocidade, numa semelhança, num diálogo de fusão – mas o “três” obriga-nos a incluir o outro, o estrangeiro, o diferente, aquele que olha o mundo com outros olhos, com outro humor, com outra forma de ser… o terceiro é o outro mais radical, o outro que não nasce da comunhão ou do desejo de comunhão, mas nasce do desejo de uma integração, do desejo de comunhão para lá do desejo imediato de expansão de si. O “três” obriga-nos a acolher o outro enquanto outro.
E Deus é Três – e o modelo de construção da nossa vida também tem que ser trinitário. Isto é, temos de ser nós, temos que ter capacidade de escolher o outro e sentir-se acolhido pelo “dois” e sentir que o “dois” amplia a nossa vida no reconhecimento, na reciprocidade – mas temos de ser trinitários no sentido de criarmos formas de comunhão, formas de abraço, formas de diálogo, formas de encontro com o outro que é mais outro, com o outro que é estranho a mim, que é alheio à minha história e às minhas perspetivas… e essa é a forma trinitária de relação.
Celebramos assim a Festa de Deus, e na Festa de Deus celebramos a festa da nossa inclusão em Deus. É isso que nos diz a Carta aos Romanos: ”todos os que são movidos pelo Espírito de Deus são tornados filhos de Deus.”
De facto, nós não somos estranhos a Deus. Nós estamos colocados no mistério de Deus. Nós somos divinos. Cada um de nós que está aqui é divino, cada ser humano é divino, porque está incluído em Deus, é a expressão do próprio Deus. E isso obriga-nos a olhar uns para os outros de outra forma: não só transportamos uma história sagrada, nós somos filhos de Deus, somos parcela, somos presença do próprio Deus. E isto faz-nos ler a nossa humanidade, a nossa própria e a dos outros, com outros olhos.
No Evangelho de S. Mateus, que hoje nós lemos, há um aspeto curioso: no final mesmo (porque nós lemos as últimas frases do Evangelho, a última palavra é esta de Jesus: “e Eu estarei todos os dias convosco até ao fim do mundo”, estamos perto do ponto final) diz “e contudo quando O viram, adoraram-n’O, mas alguns ainda duvidaram”.
Isto é, chega-se ao fim, ao fim mesmo, e ainda há: “alguns ainda duvidaram”. Então a dúvida faz parte do nosso caminho, a dúvida faz parte da nossa comunidade, isto é, nós nunca vamos conseguir erradicar a dúvida.
Pensemos na dúvida como um dom. Às vezes pensamos na dúvida como um mal, como alguma coisa que enfraquece e que temos de nos libertar dela. E Jesus diz-nos: “Não, a dúvida vai continuar”. Então a dúvida é um dom. Na Igreja, a dúvida é um dom, é um carisma, a dúvida tem de estar presente.
Nós temos de abraçar e amar aqueles que têm esse dom da dúvida. Temos de amá-los, porque eles trazem alguma coisa que nos complementa, alguma coisa que é fundamental. Temos também de ir ao encontro, temos também de consolar aqueles que transportam a dúvida – porque não é fácil… é muito mais fácil ser conformista, é muito mais fácil dizer: “sim, também eu acredito” mesmo o coração não estando inteiro, do que aqueles que se mantém como sentinelas na linha da dúvida. É um caminho muito mais exigente, muito mais solitário, mas é importante dizer que esse caminho é um caminho necessário – e é um caminho em Deus, é um caminho no Espírito.
Por isso vamos hoje pedir também por aqueles que duvidam e que se integram em nós através desse caminho que é a própria dúvida, que é a própria interrogação, porque esse é também um caminho para chegar a Deus. A dúvida não exclui Deus, a dúvida é um caminho positivo para chegar a Deus.
É interessante que Jesus dá a Missão de “irem por todo o Mundo a fazer discípulos” não só àqueles que acreditaram, dá a todos, mesmo aqueles que duvidam recebem esta Missão…
Então há aqui um sentido diferente daquilo que é a dúvida, a dúvida não me põe fora, eu posso caminhar, eu posso estar dentro com a minha dúvida. E a dúvida é também uma forma de interlocução com a fé, muito importante e muito vital para a própria fé.
É mistério? É! A existência crente, a existência cristã é um mistério? É! E teria de ser, porque Deus é um mistério, e então a nossa existência tem de ser um espelho, mesmo que fosco, mesmo que impreciso, do rosto e do sorriso confiante de Deus.
Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade da Santíssima Trindade
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