Espinosa e Etty Hillesum

Rijnsburg 2017

 

 I

Espinosa  a partir de um poema *

 

As translúcidas mãos desse judeu

na penumbra cinzelam os cristais,

e a tarde que se esvai é medo e frio.

(As tardes sempre às tardes são iguais).

As mãos, bem como o espaço de jacinto

que empalidece nos confins do Gueto,

quase inexistem para o homem quieto

que está sonhando um claro labirinto.

Não o perturba a fama, esse reflexo

de sonhos no sonho de outro espelho,

nem o amor temeroso das donzelas.

Liberto da metáfora e do mito,

Lavra um árduo cristal: o infinito

mapa daquele que é Suas estrelas.

Jorge Luís Borges[1]

 

Costumo iniciar os meus cursos sobre Espinosa com este poema de Jorge Luís Borges por me parecer criar um clima propício a um posterior estudo sobre o autor. Como  sabemos, não é função da poesia ensinar, informar ou fazer demonstrações. No  registo poético a imaginação tem primazia,  a sugestão domina,  a metáfora e o símbolo lideram o discurso. Algumas pinceladas bastam  para nos comover e motivar, transportando-nos para universos a que outros meios dificilmente nos fariam aceder, criando climas que despertam   o nosso interesse.

Borges traça-nos em poucas linhas um retrato de Baruch/Bento/Benedito de Espinosa e provoca em nós o desejo de melhor o conhecer. Apresenta-o numa aura de mistério, como personagem  que deliberadamente se oculta e  disfarça, temeroso de tudo o que o possa afastar do seu projeto de vida.  Será correta esta visão?  Por bela que seja – e sem dúvida que este poema  é belíssimo – nem tudo aquilo  que é dito se adequa totalmente à vida e ao pensamento de Espinosa. As informações  dadas sobre o autor da Ética, veiculam simultaneamente  alguns dos preconceitos que habitualmente se lhe associam. Aproveitemos então este poema para, pela mão de Borges, refletir um pouco sobre este filósofo que fez da Holanda a sua pátria.

 

esse judeu

 

Há quem se entranhe no pensamento de um autor sem se preocupar em o inserir   num determinado tempo e lugar, como se tais factos fossem de somenos importância. Contesto essas hermenêuticas  desenraizadas por contribuírem perigosamente para um dos preconceitos maiores no estudo da  filosofia – a despersonalização  dos pensadores, abordados como  seres exclusivamente racionais, libertos do  corpo, despojados de uma cultura, destituídos de  família e de amigos, alheios aos  afetos. Encarados deste modo,  transformam-se realmente naquilo  que  Paul Nizan censura, escrevendo:

“os filósofos são mais ligeiros que os anjos, não têm aquele peso dos vivos que amamos, nunca experimentam a necessidade de caminhar entre os homens.”

Paul Nizan Les chiens de garde[2]

 

Não é indiferente em Espinosa, o chão  que pisa, relativamente ao qual tem um olhar crítico mas que  lhe trouxe o suporte imprescindível para  edificar  a sua obra. Nascido em Amsterdão em 1632, teve como  pais  judeus portugueses forçados a deixar a pátria  para escapar às perseguições da Inquisição.[3] Como todos os “marranos”,  praticaram um criptojudaísmo para poderem manter viva a sua fé. Só quando definitivamente instalados na Holanda se integraram nas crenças e preceitos da Nação, o que nem sempre  foi pacífico. O caso Uriel da Costa é exemplar. O seu destino trágico  não pode deixar de ter impressionado Espinosa embora seja discutível a influência  direta que sobre ele possa ter exercido.[4]

A educação de  Espinosa fez-se no interior da comunidade   portuguesa  de Amsterdão, um grupo com características particulares dentro do judaísmo,  adquirindo na época um prestígio imenso pela sua prosperidade.[5] Os judeus portugueses participaram no surto económico das Províncias Unidas, transferindo os seus capitais para este país. A tolerância relativamente às diferentes confissões  religiosas fez dele uma terra prometida para os perseguidos, difundindo-se mesmo entre os judeus do Norte de África que o esperado Messias nasceria na Holanda. O filósofo foi sensível a esta atmosfera de liberdade, e presta-lhe homenagem no prefácio que escreve ao Tratado Teológico-Político:

 

“ E já que nos coube em sorte esta rara felicidade de viver numa República, onde se concede a cada um inteira liberdade de pensar e de honrar a Deus como lhe aprouver e onde não há nada mais estimado nem mais agradável do que a liberdade, pareceu-me que não seria tarefa ingrata ou inútil mostrar que esta liberdade não só é compatível com a piedade e a paz social, como, inclusivamente, não pode ser abolida sem se abolir, ao mesmo tempo, a paz social e a piedade.”

Espinosa, Tratado Teológico-Político[6]

 

Podemos pensar que estas considerações sobre a paz e a liberdade na Holanda são  uma estratégia para conquistar  os políticos e os filósofos a quem esta obra se destina. Posto que fale muito dos judeus e do judaísmo, o Tratado insere-se num outro contexto e visa objetivos alheios à mundividência da comunidade hebraica de Amsterdão. Esta, embora agindo  no interior de um país constituído por diferentes confissões religiosas, rege-se por leis próprias que zelosamente cumpre. É uma sociedade fechada, exemplar no acatamento da lei geral, com a qual os seus dirigentes  procuram estar de acordo; daí ser intransigente no  judaísmo que internamente  defende e impõe aos seus membros.

O tradicionalismo  e rigorismo dominantes percebem-se  se atendermos às vicissitudes que sofreram os seus  fundadores. Ameaçados nos seus países de origem pela fé que professavam, viveram largo tempo na prática do catolicismo, por vezes desempenhando  cargos ligados à Igreja (é o caso de Uriel da Costa). A comunidade só poderia sobreviver se respeitasse um conformismo absoluto, reaprendendo um judaísmo depurado e sem  desvios. Há escolas que se constituem para tal fim. Espinosa terá estudado nelas pois a sua educação foi a que habitualmente se ministra a um jovem com a sua origem e estatuto.  Cedo no entanto começa a ter dúvidas,  a levantar problemas e a pôr em causa crenças e ritos. O seu percurso hebraico  teve como desfecho a  expulsão da Sinagoga, numa condenação  duríssima pela qual é banido e proibido de quaisquer contatos com os seus pares. Eis algumas passagens do texto do herem (excomunhão), curiosamente redigido em português da época pois era essa a língua  que estes judeus falavam e na qual escreviam :

 

“Com sentença dos Anjos, com ditto dos Santós, nos henhermamos, apartamos e maldisoamos e praguejamos a Baruch de Espinoza (…) com todas as maldisõis que estão escrittas na Ley. Maldito seja de dia e malditto seja de noite, maldito seja em seu deytar e malditto seja em seu levantar, maldito ele em seu sayr e malditto ele em seu entrar; não querera Adonai perdoar a elle (…). Advirtindo que ninguem lhe pode fallar bocalmente nem por escrito, nem dar-lhe nenhum favor, nem debaixo de techo estar com elle, nem junto de quatro covados, nem leer papel algum feito ou escrito por ele.”

Texto da Excomunhão de  Espinosa[7]

 

Afastado aos vinte e quatro anos da sua gente, fica sem chão, sem amigos, sem língua. Recusado por  judeus e olhado com desconfiança por cristãos, é no entanto na cultura europeia que procura inserir-se, aprendendo latim e familiarizando-se com os filósofos coevos. Mais do que judeu,  é alguém que se situa numa confluência de tradições, delas colhendo elementos para a sua obra. Mas não é um homem só.

 

nos confins do Gueto

 

A ideia do isolamento de Espinosa é outro mito que se cria mas que não corresponde  à verdade, pois nem antes nem depois da sua excomunhão  levou vida de segregado ou de eremita. A família onde nasceu era, segundo o seu biógrafo Colerus, uma família abastada que lhe proporcionou meios quer intelectuais quer económicos para se tornar autónomo:

 

“ Embora comummente se escreva que foi pobre, e de baixa condição, certo é foram os seus pais pessoas de distinção e abastadas, judeus portugueses, que habitavam uma bela casa, junto do antigo templo português, no sítio chamado Burgwal, onde também tinham negócio. Além disso os seus costumes, maneiras, amigos e parentes, e por fim a herança dos pais, tudo prova  que foi de boa criação e educado com esmero acima do vulgar.”

Colerus, Vida de Bento de Espinosa[8]

 

A expulsão da Sinagoga afasta-o de uma cultura mas a sua curiosidade insaciável fá-lo adquirir os instrumentos que lhe permitem entrar noutra. Assim, aprende latim  com o ex-jesuíta,  Van den Ende, retratado na prosa de Colerus como um desencaminhador da juventude:

 

“ (…) foi confiada a sua instrução ao célebre professor e médico Francisco Van den Ende, que nesse tempo ensinava em Amsterdão, com grande reputação, os filhos dos principais negociantes; isto enquanto não veio a saber-se que ele, mais que o latim, cuidava de incutir nos discípulos os primeiros germes e fundamentos do ateísmo.”

Colerus, Vida de Bento de Espinosa[9]

 

Através de Van den Ende ou “de motu proprio”  conhece o pensamento de Descartes, um filósofo com o qual sustenta uma relação ambivalente. A primeira obra de Espinosa e a única que durante a   vida foi publicada como de sua autoria, foi precisamente um curso sobre Descartes –  Renati Descartes principiorum philosophiae. Por este escrito  percebemos que o pensamento cartesiano foi importante para a formação filosófica do autor, funcionando quer como guia quer como parceiro  do qual cedo se começa a demarcar. O que imediatamente é visível no comentário apenso à obra – Cogitata Metaphysica.

No decorrer do seu percurso intelectual contactou e correspondeu-se com a “intelligentsia”. Atendendo às suas inúmeras cartas  dificilmente poderemos dizer que vivia nos “confins do Gueto”. Hobbes, Leibniz, Oldenburg, Tschirnhaus, Schuller  são seus interlocutores. E a aura de grande filósofo  que paulatinamente vai ganhando explica o  convite que lhe foi endereçado pelo Eleitor Palatino,  para ensinar na Universidade de Heidelberg. O texto da carta não deixa dúvidas quanto ao prestígio de Espinosa.  Fabritius, através de quem o convite é feito,  mostra-o claramente em passagens como esta :

 

“Não encontrarás em sítio nenhum um Príncipe mais favorável aos génios insignes, no número dos quais ele te coloca,”

Fabritius a Espinosa[10]

 

Também pelas epístolas  a Simon de Vries, sabemos que era habitual os seus discípulos reunirem-se para discutir partes da Ética, sendo esclarecidos nas suas dificuldades maiores  pelo próprio Espinosa. Se na realidade vivia retirado, o afastamento apenas diz respeito a uma vida social e às honrarias a ela associadas. Intelectualmente os contactos fervilham.

 

… não o perturba a fama

 

É verdade que há um distanciamento relativamente àquilo que o homem comum valoriza como um bem e, consequentemente, ao “modus vivendi” que para a maioria traz a felicidade. Logo no início do Tratado da Reforma do Entendimento, uma das suas primeiras obras, Espinosa propõe-se como tarefa alcançar o supremo bem (“summum bonum”), procurando algo que lhe permita gozar para sempre de uma suprema alegria. Tem consciência de que não é tarefa fácil  nem segura. Quem nela se empenhe deverá trocar o certo pelo incerto, renunciando ao que  a maioria considera o bem supremo e que o filósofo circunsreve a três valores (ou antivalores): a riqueza, as honras e o prazer [11]. Na resposta que dá ao convite do Eleitor Palatino, diz prezar acima de tudo a sua tranquilidade:

 

“(…) nunca tendo sido tentado pelo ensino público, não pude resolver-me, embora tenha longamente refletido, a aproveitar esta magnífica ocasião. Penso em primeiro lugar que se me dedicasse ao ensino da juventude teria de renunciar à prossecução dos meus trabalhos filosóficos. Por outro lado, ignoro em que limites a minha liberdade filosófica deveria ser contida para que não parecesse querer perturbar a religião oficialmente estabelecida (…)  Já o experimentei na minha vida solitária de simples particular e temê-lo-ia muito mais se me elevasse a esse grau de dignidade. Compreendes, Eminente Senhor, que o que me impele não é de modo algum a esperança de uma maior fortuna, mas sim o amor pela tranquilidade, que penso poder preservar, de qualquer modo, abstendo-me de lições públicas.”

Espinosa a Fabritius[12]

 

A tranquilidade passa pelo desprendimento das honrarias,  bem como das riquezas a elas inerentes. Interessa ao filósofo continuar a pensar livremente, o que não conseguiria caso tivesse que se dedicar “ao ensino da juventude”.

 

nem o amor temeroso das donzelas

 

A atitude de Espinosa para com as mulheres não se demarca daquela que a maior parte dos filósofos da sua época demonstrou. E por sua vez, a perspetiva dos filósofos sobre este tema não difere grandemente do pensamento do homem  comum.[13] É curioso que o filósofo que se apresenta  como  demolidor de preconceitos (“prejudiciae”) considerando que tem por  missão denunciá-los e abatê-los, foi  pouco sensível  ao modo como as mulheres eram encaradas no seu tempo. Se atendermos ao que explicitamente escreveu sobre elas verificamos que  é pouco lisonjeiro, chegando a defender que deverão ser afastadas da participação num governo democrático, pela fraqueza que lhes é natural e  lhes interdita o estatuto de iguais aos homens em direitos.[14] Relativamente  à vida amorosa do filósofo judeu, Colerus dá-nos informações que  podem ajudar-nos a perceber a reserva  deste quanto  às mulheres. No mesmo capítulo em que nos fala do professor van den Ende, Colerus relata o seguinte episódio:

 

“ O mesmo Ende tinha uma filha única, tão experta no latim que também o ensinava aos amigos do pai, assim como a arte do canto. Acerca dela muitas vezes contava Espinosa haver-lhe inspirado tão forte inclinação que a quisera tomar por mulher, embora fosse um tanto coxa e pouco airosa de corpo; estimulado por sua aguda inteligência e raro saber. Mas um seu condiscípulo, de nome Kerkring, natural de Hamburgo, reparou no caso e tomou-se de ciúmes, acabando por ganhar o favor da jovem (para o que bastante contribuiu o presente que lhe fez de um colar de pérolas, do valor de uns poucos de mil florins) a qual o escolheu por marido, deixando ele para isso a sua fé, que era a da confissão de Augsburg, e passando à romana.”

Colerus, Vida de Bento de Espinosa[15]

 

A ser verdade este episódio, poderíamos nele encontrar alguma explicação para alguns extratos da Ética  nos quais, “en passant”, Espinosa se refere às mulheres, sendo evidente neles  a  pouca consideração que lhes demonstra. Assim acontece na parte III, dedicada aos afetos. Depois de definir o amor como uma alegria que acompanha a ideia de uma causa exterior (Et.III, prop. XXIII, scol), há uma série de proposições, demonstrações e escólios que procuram explicar os mecanismos do processo  amoroso, com uma acuidade, uma perspicácia e simultaneamente um desencanto de quem também os experimentou na pele. A proposição XXXI fala-nos da emulação ou rivalidade e do modo como esta paixão pode espicaçar o nosso amor :

 

“ Se imaginamos que alguém ama, ou deseja ou tem ódio a algo que nós próprios amamos, desejamos ou ao qual temos ódio, o nosso amor, etc. tornar-se-á mais constante.”

Ética,  III, prop. XXXI[16]

 

Segue-se uma série de considerações sobre a necessidade de obter a aprovação dos outros quanto ao objeto amado; apresenta-se um conceito que a psicanálise mais tarde irá explorar, a de “fluctuatio animi”, a divisão ou ambivalência que experimentamos quando simultaneamente em nós atuam paixões de atração e de repulsa por uma mesma coisa. Mas essa sintonia experimentada por quem valoriza um mesmo objeto, não se mantém quando sobre ele há um desejo de posse. E assim:

 

“Quando imaginamos que alguém se alegra com uma coisa que só um pode possuir, esforçamo-nos por fazer com que ele não a possua.”

Ética,  III, prop. XXXI[17]

 

O filósofo acentua que  a natureza humana  nos fez misericordiosos e compassivos. No entanto,  é também ela  que transforma o nosso amor em ódio e desagrado quando se trata da posse de um objeto cobiçado. Esse objeto de amor, é neste caso concreto a mulher.  Espinosa  não o diz  expressamente mas percebemos que é dela que fala quando nas proposições seguintes se refere à  “coisa amada” (“res amata”) ou à “coisa semelhante a nós” (“res nobis simil”). O amor exige reciprocidade. Daí o esforço que despendemos para que a coisa amada nos ame também (prop. XXXIII), congratulando-nos com o seu amor (prop. XXXIV). Mas as paixões são frágeis e instáveis, correndo  o perigo de se transformarem de alegres em tristes. Quando o amor não é correspondido, rapidamente se muda em ódio, suscitando para com o rival, quando o há, uma outra paixão –  a de inveja (prop. XXXV).

É interessante o papel que a imaginação desempenha neste trabalho sobre as paixões, colocando-se como elemento catalisador  das mesmas, conseguindo provocar mais alegria ou mais tristeza consoante as imagens que seleciona e  destaca. O drama maior é quando imaginamos  a coisa amada na posse de um outro, que também a ama e por ela é correspondido. É um  caso que o filósofo  concretiza do seguinte modo:

 

“ (…) Esta última razão [unirmos a imagem da coisa amada com a daquele que odiamos] encontra-se no Amor que temos para com uma mulher; efetivamente, quem imagina a mulher que ama prostituindo-se com outro, ficará triste, não só porque o seu próprio apetite se  reduz, mas também porque é obrigado a relacionar a imagem da coisa amada com as partes vergonhosas e com as excreções do outro, e lhe tem aversão…”

Ética,  III, prop. XXXV, scol[18]

 

As vicissitudes da frustração amorosa são fonte de perturbação, até porque o que era amado facilmente se torna objeto de ódio, tanto maior quanto mais forte tivesse sido o amor primitivo (prop. XXXVIII). Essa metamorfose da coisa  amada em coisa  odiada, é complexa e provoca em quem a experimenta uma diminuição do ser próprio. Por isso a necessidade de evitar tal tipo de paixões, transformando-as noutras que possam mais eficazmente contribuir para a salvação, ou seja,  a obtenção da suprema alegria que o filósofo se propunha alcançar no início do Tratado da Reforma do Entendimento.  A volúpia (“libido”),  tal como o dinheiro e as honrarias,  constituem fatores de  desestabilização e inquietude.

Se aceitarmos como verdadeiro o episódio relatado por Colerus, do qual os passos citados poderiam ser uma teorização,  percebemos as razões que levaram o filósofo a não querer ser perturbado pelo “amor temeroso das donzelas.”

 

… um claro labirinto

 

No prefácio do livro III da  Ética, o filósofo propõe-se  falar de todas as coisas de  um modo objetivo e rigoroso, tratando dos afetos, de  Deus e da mente como  se fossem linhas, superfícies e corpos. Inegavelmente que se impõe o ideal de clarificação. Mas mais do que labiríntica  a Ética  é circular [19]. Composta por cinco livros,  neles se vai progressivamente revelando o pensamento do autor, num dizer que acompanha o ser. A construção do edifício é paralela à expressão ou explicitação do tema  fundante que o atravessa – a Substância. Os diferentes livros mostram o desenrolar  da Substância e o trajecto que descrevem é simultaneamente linear e circular, claro e labiríntico. A linearidade apresenta-se na sucessão das várias partes, cada uma delas se debruçando sobre uma temática específica e bem delimitada. O livro I, “De Deo”, tem um cariz eminentemente metafísico e, como o nome diz, trata de Deus, que no âmbito do pensamento espinosano é identificado com a Substância e com a Natureza. O livro II, “De natura et origine mentis”, debruça-se sobre a mente [20] e consequentemente sobre os corpo, dado que  a mente em Espinosa é a ideia do corpo. É um livro que elege como temáticas relevantes a física e a psicologia. O livro III, “De origine et natura affectuum”, é aquele onde a antropologia espinosana é mais trabalhada. Os afetos continuam a ser objecto de estudo no livro IV, “De servitude humana seu de affectuum viribus”, mas há um peso grande das dimensões ética e política. O cruzamento das  temáticas ética e gnosiológica surge com todo o seu esplendor no livro V, “De potentia intellectus seu de libertate humana”.  Esta sequência de partes e de temas tem uma meta que é  colocada no final da obra  de um modo incisivo:  a conquista da salvação, esse processo que nos ensina a conhecer  as paixões e a tirar delas o melhor partido, gerindo-as de modo a que nos sejam úteis.

Convivendo com a  leitura linear é possível detetar uma circularidade. Esta depara-se no entrecruzar dos temas com o tema central da salvação ao qual todos podem conduzir. Mas está sobretudo presente no desejo  de revisitar o livro I, quando acabamos a obra. De facto, só depois de conhecido o livro V se poderá dissipar a estranheza que sentimos ao abordar as definições iniciais do livro I. Neste,  parte-se de Deus e procura-se através da dedução dos atributos e dos modos, estabelecer pontes entre o infinito e o finito.  No livro V parte-se do homem e tenta-se construir os elos  que  lhe permitirão  chegar a Deus. É então que percebemos que pensamos em Deus e, consequentemente, como Deus. As definições iniciais do livro I que para o leitor desprevenido aparecem como uma espécie de peças arbitrariamente construídas para possibilitar o desenrolar de um jogo, passam a ser entendidas como pontos de chegada e não de partida.

É diferente o trajeto do autor e do leitor.  O primeiro inicia  o livro com a apresentação de conceitos longamente meditados. O segundo recebe-os sem qualquer preparação e só no fim compreende o caminho que os poderá legitimar. As primeiras definições foram alcançadas por alguém cujo pensamento se identifica com o pensamento divino, alguém que conhece as coisas “em Deus”. É por isso que a fórmula de apresentação se repete: “per causam sui intelligo….”; “per substantiam intelligo….”; “per attributum intelligo….”; “per modum intelligo…”; “per Deum intelligo…..”  O filósofo  sente-se autorizado a colocar estas definições fundadoras porque as atingiu  no final de um percurso intelectualmente penoso – a “via perardua” de que nos fala o último escólio da Ética. Mas é grande o hiato entre o filósofo e o leitor, sobretudo para aquele que, como é habitual, pretende começar pelo início da obra, onde, de um modo abrupto e numa linguagem difícil lhe é imposto  o horizonte da mesma. Talvez por isso Borges lhe chame labiríntica.

 

… liberto da metáfora e do mito

 

Metáforas, mitos, símbolos, signos, imagens,  colocam-se como imperfeições do processo cognitivo que   Espinosa enaltece – o encadeamento discursivo dos geómetras. O título pouco comum da  Ética –   Ethica ordine geometrico demonstrata – mostra-nos a intenção  de aplicar  o método dos matemáticos num texto de grande fôlego. A Ética realiza o sonho cartesiano do “mos geometricus.”[21] O seu método confunde-se com a própria atividade do entendimento, correspondendo ao seu funcionamento.

Apresentado o método no Tratado do Entendimento Humano, ele é posto em prática na Ética onde o ritmo discursivo é dado pelo desenrolar das noções essenciais. As coisas são intuídas em função  do Todo, num processo que não prescinde da dedução.

O método geométrico foi a escolha de Espinosa para falar do real. Terá sido uma estratégia? Hegel é um dos que pensa deste modo, considerando o caráter conjuntural do “mos geometricus”, vendo nele a possibilidade de pensar livremente, o que nessa época só poderia realizar-se pela utilização de um discurso matemático. É verdade que  Espinosa, no apêndice do livro I da Ética,   fala da busca de um método que anule uma perspetiva teleológica, um método que se apresente com a infalibilidade das matemáticas e que se imponha pelo seu rigor. O discurso geométrico, deliberadamente escolhido pelo filósofo, pretende mostrar-nos uma realidade sem fissuras nem hiatos, realidade essa que, como vimos acima, ele não pretende circunscrever à física mas estender ao estudo de Deus e dos homens. Os afetos, as paixões, numa palavra, aquilo a que hoje chamamos o  psiquismo humano, obedece às leis gerais da Natureza, como parte dela que é.

O ponto de arranque  é a causa ou razão (“causa sive ratio”) e dela se deduzem os efeitos. A carta LX a Tschirnhaus ajuda-nos a perceber melhor a dinâmica narrativa da Ética.  Diz-nos esse texto que o ideal é  partir de uma definição de onde tudo se possa deduzir. Assim, coloca  como modelo exemplificativo as definições genéticas visto que estas  nos mostram como os conceitos se formam  pelo recurso à sua “ratio”. A Ética concretiza esta pretensão pois começa com  um conceito primordial que é a Substância ou Deus e dele deduz tudo quanto existe. Deus é a causa primeira, a “ratio” de todas as coisas.

A passagem do infinito ao finito implica a descoberta de mediações que nos permitam percebê-la. É um método sintético pois coloca em primeiro lugar o Todo, procurando mostrar como ele é constituído, revelando a sua estrutura íntima. A Ética é o desvelamento do Todo/Substância. Mas, como nos diz Deleuze, a sua escrita  não é uniforme, como não são de igual importância os diferentes livros que a compõem:

 

“A Ética das definições, axiomas e postulados, demonstrações e corolários é um livro – rio que desenvolve o seu curso. Mas a Ética dos escólios é um livro de fogo, subterrâneo. A Ética do livro V é um livro aéreo, de luz, que procede por clarões. Uma lógica do signo, uma lógica do conceito, uma lógica da essência: a sombra, a cor, a luz. Cada uma das três Éticas coexiste com as outras e continua-se nas outras, apesar das suas diferenças de natureza. É um só e mesmo mundo. Cada uma estende passadiços para transpor o vazio que as separa.”

Gilles Deleuze, “Espinosa e as Três Éticas”[22]

Mesmo nos escólios,  onde a prosa de Espinosa é mais solta, não há recurso a metáforas nem a mitos.

 

… o infinito mapa daquele que é Suas estrelas

 

A Ética  fala-nos de um Deus que corresponde à totalidade de tudo quanto existe. A expressão “Deus sive Natura”  tornou-se a imagem de marca da filosofia espinosana, uma espécie de palavra passe que nos dá acesso ao seu sistema, tal como o “cogito ergo sum” de imediato nos lembra  Descartes.

A identificação de  Deus com a Natureza constituiu uma  das teses mais criticadas pelos  contemporâneos do filósofo, que o acusavam de panteísta e consequentemente de ateu. O panteísmo espinosano foi agitado como bandeira  herética. Ao terminar deste modo o seu poema, Jorge Luís Borges insere-se no rol daqueles que, na sequência de Bayle, sublinharam quer a divindade de todos os existentes quer a dessacralização do divino pela sua mistura com o terreno. Se Deus “é suas estrelas”, como admitir a transcendência do sagrado? Seremos todos deuses? É esse absurdo –  no século XVII considerado como máxima blasfémia – que Bayle denuncia na obra do filósofo judeu. E a interpretação de Bayle fez carreira, mantendo-se até aos nossos dias, como podemos ver pelo poema de Borges.

O artigo de Pierre Bayle sobre  Espinosa  no seu Dictionnaire Historique et Critique determinou a maior parte das leituras que se fizeram do filósofo nos séculos XVII e XVIII. À semelhança de outras entradas do Dicionário  é um texto curto, constantemente entrecortado por longuíssimas notas. A frase inical é o seu  “leitmotiv”: “Il a été un Athée de Système.”[23]

Uma outra linha de força do artigo é o destaque dado ao monismo e imanentismo espinosanos. Como acontece nas leituras coevas do autor da Ética, este é interpretado como um   panteísta grosseiro, para quem Deus e as coisas se confundem. É nisto que consiste a  principal acusação. A diferença estabelecida por Espinosa entre a “Substantia sive Deus sive Natura” e os seus diferentes modos, infinitos e finitos, é algo  que Bayle não considera. Para ele o modo é uma modificação e esta consiste em “estar no sujeito da mesma maneira que o movimento está no corpo e o pensamento na alma do homem e a forma de escudela no vaso a que chamamos escudela.”[24] Contudo,  o autor da Ética  consagra a primeira parte desta obra à análise cuidadosa da Substância, dos atributos e dos modos, realçando a sua especificidade.

É inegável que o monismo e o imanentismo são teses fundamentais em Espinosa. O seu Deus nada tem a ver com o Deus providência dos judeus e dos cristãos, o que nos leva a perguntar:  ao aceitar a necessidade da Natureza e de todas as coisas que a constituem não estaremos a negar ao homem a possibilidade de ser livre? Ao admitir a imanência divina não estaremos a divinizar o real? Será que podemos continuar a falar de Deus quando nos referimos a Espinosa?

O filósofo defrontou-se com  todas estas questões. Fê-lo de um modo mais solto e acessível ao longo da  correspondência. Mas também encontramos  respostas desenvolvidas na Ética. Logo no livro I  vemos um texto que nos possibilita resolver a acusação de panteísta – o escólio da proposição XXIX. Nele o filósofo  apresenta duas noções diferentes: a “Natura Naturans” (Natureza Naturante) e a “Natura Naturata” (Natureza Naturada)[25]. Com elas percebemos que embora as coisas (modos) tenham o seu ser em Deus, elas não são divinas pois Ele não faz parte da sua natureza ou essência. Há uma fronteira nítida entre a Natureza Naturante – Deus enquanto potência que necessariamente se manifesta –  e a Natureza Naturada –  Deus como  manifestação ou concretização nos modos  existentes. No primeiro caso temos uma  Natureza  infinita que, não podendo deixar de produzir efeitos, não está no entanto dependente deles. A Substância e os seus infinitos atributos são Natureza Naturante. Os modos, sejam eles finitos ou infinitos são Natureza Naturada. Todo o modo é um “Deus quatenus”, é a Natureza expressa de um modo circunscrito. A Natureza Naturante é causa de si mesma (“causa sui”) e como tal é livre. A natureza Naturada é  resultado da necessidade divina, tendo nesta o seu fundamento dinâmico e criativo. Se no caso do homem podemos falar de liberdade, ela é algo que se conquista, realizando-se no seio do determinismo estrito em que se desenrola. A ordem presente na realidade modal é o reflexo da ordem existente na Substância. Esta revela-se pelo estabelecimento de relações de causa e de efeito que constituem o tecido do real. Deus suporta cada modo com o seu poder (potência). Os modos são parcelas da potência divina, potência essa presente em cada ser, de um modo determinado. Como que a assinalar a diferença ontológica entre Deus e os modos, o filósofo reserva o termo “potentia” para o primeiro, enquanto que os segundos são definidos como “conatus”. O “conatus” é a essência comum de todas as coisas. No que respeita ao homem o termo próprio que designa esse dinamismo é “desejo” (“cupiditas”).

Se a conclusão do poema de Borges não nos permite aceder ao dinamismo que perpassa na Ética, nele é nítida  uma tese  determinante para a compreensão da mesma – a de que somos parte de um Todo mais vasto, no qual nos inserimos e do qual precisamos para a nossa realização.

Mau grado algumas imprecisões que uma aceitação literal do poema possa conter, continuamos a considerá-lo como uma entrada motivadora no pensamento de Espinosa.

 

II

Espinosa e Etty Hillesum – alguns tópicos

 

  1. O Porquê de uma comparação

Trata-se de dois pensadores com conceitos muito próprios sobre Deus pois cada um deles nos apresenta uma visão original, contrastando com o que nos é habitual pensar sobre este tema. São também dois pensadores que viveram em tempos diferentes pois há entre eles um período de três séculos, com as consequências óbvias nas suas mundividências, nos seus interesses e nas suas preocupações.

Cada um deles percorreu um caminho original para chegar a Deus. Etty descobriu-O no quotidiano, aprendendo a vê-lo em situações e em locais  insólitos. Podemos dizer que ela sente Deus e que vive em permanente união e diálogo com Ele.

Para Espinosa Deus não se sente, conhece-se, através do estudo e da compreensão quer do mundo quer de nós mesmos.

Espinosa é um filósofo.

Etty é essencialmente uma cuidadora.

Espinosa desmonta a teologia vigente (cristã e judaica)  mostrando as suas falsidades e incongruências.

Etty constrói uma teologia nova, ligada ao quotidiano e enfatizando  a dimensão transcendente do qual este se pode revestir.

Espinosa escreveu uma Ética.

Etty praticou uma ética.

 

  1. Duas diferentes mundividências

Tomando o termo “paradigma” à maneira Kuhniana, ou seja, entendendo-o como  moldura ou padrão que organiza e estrutura as nossas concepções científicas, as crenças, os valores básicos, os interesses, etc., etc., percebemos como as mundividências de Espinosa e de Etty são inevitavelmente divergentes. O filósofo  insere-se no paradigma cartesiano das ideias claras e distintas, tomando as verdades matemáticas e o método geométrico como referência. É um paradigma que se consolidará com Newton, provocando um imenso desenvolvimento na ciência e na tecnologia. Não podemos esquecer que é nesta altura que surgem instrumentos de observação e de medição permitindo  à  investigação científica um salto qualitativo no que respeita à aproximação do real. É também uma época de grandes conquistas éticas e políticas, de contacto com novas civilizações e de afirmação triunfalista de um determinado conceito de humanidade. O optimismo racionalista é a ideologia dominante, com  a sua pretensão de que é possível conhecer o mundo tal como ele é. E como tal, de o dominar.

Etty Hillesum integra-se no paradigma einsteiniano no qual assistimos ao abalar da ciência de Newton bem como das grandes certezas quanto a um tempo e a um espaço absolutos. A segurança de um mundo cognoscível é posta em causa com o indeterminismo provocado pelas descobertas na microfísica. Einstein, Bohr, Heisenberg, são grandes nomes que provocaram profundas mutações na comunidade científica, obrigando-a a repensar-se, revendo teorias, conceitos, leis e expectativas. De igual modo foram disruptivas as novas ciências da mente – psicanálise, psiquiatria, etc. que evidenciaram a importância de um continente até então ignorado – o inconsciente.

Etty é testemunha de um tempo no qual ruíram conquistas éticas que pareciam irreversíveis. Ela sentiu na pele a destruição do Estado de Direito, arduamente conquistado ao longo de séculos. Com a ascensão dos fascismos e do nazismo ele foi substituído pela força, calando a diferença de vozes, perseguindo etnias e religiões  e impondo um ideal único a que a todos se deveriam subordinar.

 

  1. Contrastes e semelhanças entre Espinosa e Etty

Espinosa é um ausente nos escritos de Etty. Ao lê-los  verificamos que apenas uma vez  o menciona no seu Diário e por uma razão que nada tem a ver com a sua filosofia.

No início do seu Tratado da Reforma do Entendimento o filósofo analisa criticamente aquilo que chama os prazeres enganadores e que para ele são o poder, o sexo e o dinheiro. Etty preza o prazer sexual e não se coíbe de falar dele ao longo dos seus Diários.  Espinosa analisa minuciosamente as paixões mas ao fazê-lo usa sempre a terceira pessoa do singular, enquanto Etty se assume como protagonista dos seus romances. O autor da Ética tem como objectivo da sua vida chegar à sintonia com o Todo, designando este como Deus ou Natureza (Deus sive Natura). Propõe-nos um caminho terapêutico relativamente às paixões, cultivando as paixões alegres pois a tristeza é sempre negativa. Etty estabelece uma relação personalizada com as coisas – o céu, a beleza da paisagem, o vazo de flores sobre a secretária, etc.

Espinosa preza o método geométrico, usando uma prosa contida, utilizando definições, explicações, corolários e escólios para apresentar as suas teses.

A prosa de Etty é viva e poética, servindo-se frequentemente de metáforas. Ela não tem a pretensão de construir um sistema e mistura pensamentos profundos com reflexões quotidianas. Depois de se embrenhar em meditações profundas, é capaz de as interromper dizendo: “agora tenho de ir almoçar.” De facto Etty  não cultiva a metafísica, considerando que não nos devemos perder nas grandes questões. Quando acede a elas é através dos acidentes da vida quotidiana. O seu objectivo principal é ajudar os outros. A virtude que mais preza e cultiva é a compaixão: Por isso escreve:

“toda a força, todo o amor, toda a confiança em Deus que temos (e que crescem  espantosamente em mim nestes últimos tempos), temos de os guardar como reserva para todos aqueles com quem nos cruzamos no caminho e que deles tiveram necessidade (Diário, 7/7/1942). E: “o amor pelo nosso semelhante é como uma oração elementar que nos ajuda a viver.” (Carta 56, 1943).

 

No livro III da Ética Espinosa fala da compaixão, usando para ela dois termos:  commiseratio e misericordia. (Et. III def. XVIII e props. XXI,.XXII e XXVII). Para ele trata-se de paixões tristes que devemos ultrapassar pois não aumentam a nossa potência de vida. Trata-se de uma solidariedade afectiva que não nos traz alegria.

Note-se que para além destes contrastes óbvios podemos detectar semelhanças. A primeira é o facto de ambos terem  vivido em tempos sombrios; ambos morreram novos; ambos amaram a vida; ambos tinham uma experiência pouco ortodoxa do judaísmo embora fossem judeus.

Tanto Espinosa como Etty  procuraram ultrapassar os seus interesses particulares. O primeiro estuda-se a si próprio e  ao real para melhor conhecer Deus, do qual tudo é manifestação (somos modos de Deus). A segunda pratica uma auto-análise que lhe permite conhecer-se melhor e colocar esse conhecimento ao serviço dos outros. Tal como o filósofo, Etty considera que somos uma parte de um Todo, interessando-lhe sobretudo a comunidade humana a que pertencemos e não o mundo físico. Um e outra  interessaram-se pelas emoções, concedendo uma importância primordial à alegria – lembremos o encantamento de Etty ao deparar com uma flor no meio da lama de Westerbork.  Ambos falaram da sintonia entre corpo e mente – Etty relevando a sua harmonia, Espinosa considerando-os como o verso e o reverso da nossa essência desejante. Ambos nortearam a sua vida pela frugalidade e pelo despojamento – lembremos a mochila de Etty e os parcos bens que Espinosa deixou depois de morrer.

Ambos procuraram primeiro do que tudo compreender, e só depois julgar, e só depois agir. No Prefácio do livro III da Ética, bem como no capítulo I do Tratado Político o filósofo diz-nos que o seu intuito não é censurar  os  homens  mas sim compreendê-los. Daí a análise minuciosa dos afectos humanos, tentando explicá-los.

No seu Diário Etty escreve:

“Se um homem dos SS pudesse matar-me a pontapé, eu ainda levantaria os olhos para olhá-lo no rosto e interrogar-me-ia, com uma expressão de surpresa e de medo, e por puro interesse pela humanidade: Meu Deus, rapaz, o que te terá sucedido de tão terrível na vida para te fazer praticar semelhantes acções?”(Diário, in Frei MichaelDavide, Etty Hillesum. Humanidade enraizada em Deus, p. 55).

 

  1. Uma vivência original do judaísmo. Um Deus diferente

Nem Espinosa nem Etty tiveram uma relação harmoniosa com o judaísmo. Depois da sua expulsão da Sinagoga o filósofo fez sempre duras críticas ao rigorismo hebraico, criticando os seus preceitos, denunciando a ignorância dos profetas, desmitificando os milagres e as profecias. O Tratado Teológico Político é ilustrativo deste distanciamento. Nele se denuncia o estatuto especial de Israel como povo eleito, questionando-se a escolha do mesmo.   Certas práticas como a circuncisão são ridicularizadas. A lei mosaica é desprovida do seu carácter sobrenatural, sendo reduzida a um conjunto de práticas conducentes a uma estabilidade social. O aparato das leis e dos ritos ajudaria à manutenção do Estado revestindo-se de um carácter exclusivamente social. Note-se que há no entanto uma valorização de certos personagens bíblicos. É o caso de  Moisés e de Salomão  que são aproveitados para uma melhor explicitação das teses do filósofo quanto  ao estatuto eminentemente  político da religião. Espinosa  aplica ao texto bíblico um método exegético procurando separar o que possa ser admitido como verdade e as fantasias da imaginação. O texto bíblico perde o seu estatuto de palavra revelada, despindo-se de todo o elemento sobrenatural. Do triplo amor que os judeus consagram a Deus, à Torah e a Israel, o filósofo apenas acata o primeiro.

Não podemos dizer que Etty seja crítica relativamente à cultura do povo a que pertence.  De facto ela é  judia mas sempre viveu como se o não fosse. Se tivéssemos que estabelecer uma relação entre ela e o judaísmo falaríamos da sua ignorância face a este – a sua educação passou ao lado da cultura hebraica,  os seus valores são valores laicos. Contudo sente-se solidária com a sua comunidade que não abandona, mesmo em risco da  própria vida. Depois de um percurso como cuidadora em Westerbork Etty  acompanha os seus no seu destino, rumo a Auschwitz.

Tanto Etty como Espinosa nos apresentam um Deus diferente do usual, questionando  a transcendência do mesmo. No final dos seus Cadernos, quando Deus se torna uma presença constante no seu pensamento, Etty escreve: “O céu vive em mim. Tudo vive em mim (Diário, p. 515). Para ela Deus não está na Natureza mas no coração de cada um, por isso devemos procurá-Lo dentro de nós e não fora. Deus é o amigo com quem permanentemente dialogamos. Mas não lhe pedimos coisas pois Ele é um Deus frágil, que precisa da nossa colaboração: “Se Deus não me ajuda tenho que ser eu a ajudá-lo.” E ajudamo-Lo quando ajudamos os outros. A criação está incompleta e os homens terão que colaborar com Deus para a completar.

Etty fala com Deus e considera que  colabora com Ele: “Penso que trabalho bem contigo meu Deus, penso que trabalhamos bem um com o outro.” (Diário, p. 223). E na Carta 60 escreve: “Deus Meu, fizeste-me tão rica, deixa-me por favor partilhar essa riqueza. A minha vida tornou-se um diálogo ininterrupto Contigo, Meu Deus, um grande diálogo.”

Etty é uma mística e ela própria se situa na linha de  S. Francisco de Assis, de Mestre Eckhart e de Thomas de Kempis, declarando pertencer à sua linhagem. Dela podemos dizer que “vive uma mística de olhos abertos.” À semelhança de Santa Teresa de Ávila que declarava ter encontrado Deus nas caçarolas da cozinha, Etty chega a Deus no tapete da sua casa de banho:

“Esta tarde dei comigo ajoelhada, de repente, no tapete de fibra de coco castanho da casa de banho, com a cabeça oculta no meu roupão.” (Diário, 15-09-41). Há um sentimento da presença de Deus que acompanha todas as suas tarefas quotidianas: “Às vezes, quando menos o espero, alguém se ajoelha num recanto do meu ser. Esse alguém que se ajoelha sou eu”. Dá-se em Etty uma fusão com Deus através do contacto com aqueles que a rodeiam e que sofrem. Por isso, numa carta a Henry Tideman, em Agosto de 1943, ela escreve: “A minha vida é um longo diálogo contigo, meu Deus, um longo diálogo.” Dela podemos dizer que encontrou Deus na banalidade do seu quotidiano e que  partir das suas vivências conseguiu traçar o seu caminho para Ele.

Diferente foi o caminho de Espinosa, considerado pelos seus contemporâneos como ateu, nomeadamente pela sua negação de um Deus pessoal, criador e livre. Note-se que o ateísmo espinosano não é uma tese consensual. É uma interpretação que resulta da sua desmitificação de um Deus/Pessoa e de um Deus/Pai, teses que manifestariam uma visão antropomórfica, por ele combatida. É verdade que ele critica as Igrejas instituídas e que foi interpretado como precursor de Marx, Nietzsche e Freud na denúncia às representações culturais humanas, frutos do desejo e do medo. Não me parece no entanto que este desejo de desmitologização  justifique o rótulo de ateu que muitas vezes lhe é atribuído. De facto não há nele um desejo da morte de Deus pois ele não abdica da categoria do divino, antes a transferindo para a Natureza. E nos

seus escritos há afirmações que nenhum ateu subscreveria, como por exemplo “Sentimos e experimentamos que somos eternos” (Et. V, prop. XIII, esc.). Espinosa não se coíbe de utilizar o termo Glória para falar dessa consciência de eternidade. O Amor Intelectual a Deus (amor Dei intellectualis) resulta do nosso conhecimento das coisas em Deus, do conhecimento de nós próprios em Deus. O que tem como consequência a Beatitude.

Tanto Etty como Espinosa propõem-nos um Deus diferente mas sem dúvida que ambos defendem que é nEle que nos realizamos e que é por Ele que a  vida vale a pena ser vivida. Um e outro buscaram Deus.

E estou segura de que  O encontraram.

 

Maria Luísa Ribeiro Ferreira

Lisboa, 23 de Julho de 2017

 

* O  texto I corresponde ao  primeiro capítulo de um livro que escrevi sobre Espinosa, intitulado Uma Meditação de Vida. Em Diálogo com Espinosa, Lisboa, Esfera do Caos, 2013. Nele está contida a informação dada na visita à Casa de Espinosa. Acrescentei em II  alguns tópicos relacionando Espinosa   e Etty Hillesum. Como se tornará óbvio para os leitores a parte I tem o rigor de um texto académico e a parte II tem a ligeireza de um texto falado sendo a mera transcrição do que foi dito em Rijnsburg.

[1] Jorge Luís Borges, “Spinoza”, Nova Antologia Pessoal, trad. António Alçada Baptista, Lisboa, Difel, 1983, p. 37.

[2] “Les philosophes sont plus légers que les anges, ils n’ont pas cette pesanteur  des vivants que nous aimons, ils n’ éprouvent jamais le besoin de marcher parmi les hommes.”

Paul Nizan Les chiens de garde, Paris, F. Maspéro, 1974, p. 30.

[3] Para aprofundar as origens portuguesas de Espinosa veja-se António Borges Coelho, A Inquisição de Évora, Lisboa, Caminho, 1987, vol. I, “Os antepassados de Bento Espinosa”, pp. 438 e segs.

[4] Há muita literatura sobre este tema. Destaco duas obras particularmente interessantes: I.S. Révah, Des Marranes à Spinoza, Paris, Vrin, 1995 e Yirmiyahu Yovel, Spinoza and Other  Heretics, Princeton University Press, 1989, trad. port. Espinosa e Outros Herejes, Lisboa, INCM, 1993.

[5] O nº 3 dos Cahiers Spinoza é todo ele dedicado à comunidade judaica de Amsterdão no século XVII. Vj. AAV, Spinoza et les Juifs d’Amsterdam, Marranes et Post-Marranes, Paris, Éditions Réplique, 1980.

[6] Tratado Teológico-Político, trad. port. Diogo Pires Aurélio, Lisboa, INCM, 1988,  p. 114.

“Cum itaque nobis haec rara foelicitas contingeret, ut in Republica vivamus, ubi unicuique judicandi libertas integra, & Deum ex suo ingenio colere conceditur, & ubi nihil libertate clarius, nec dulcius habetur, me rem non ingratam, neque inutilem facturum credibi, si ostenderem hanc libertatem non tantum salva pietate, & Reipublicae pace concedi, sed insuper eadem, non nisi cum ipsa pace Reipublicae, ac pietate tolli posse.”

Spinoza Opera, hersg. von Karl Gebhardt, Heidelberg, Carl Winters, 1972, 5 vols (doravante G.), G. III, p. 7.

[7] João Colerus, Vida de Bento de Espinosa, Edição da Câmara Municipal da Vidigueira, 2000, p. 15, nota 1. Podemos encontrar  parte do texto da excomunhão  em Yirmihahu Yovel, Espinosa e Outros Herejes, trad. do inglês por Maria Ramos e Elisabete Costa, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1993, p. 13.

[8] Ob. cit., p. 1.

Há  outras fontes de contemporâneas de Espinosa, das quais podemos colher informação sobre a sua vida, nomeadamente o célebre artigo de Pierre Bayle no Dictionnaire Historique et Critique e a biografia de Lucas. Embora a biografia de Colerus não possa ser considerada totalmente fidedigna, pensamos,  como Joaquim de Carvalho que ela reconstitui bem o personagem Espinosa. Daí a termos privilegiado neste  comentário ao poema de Borges.

[9] Ob. cit., p. 3.

[10] “Non alibi invenias Principem faventiorem eximiis ingeniis, inter quae te aestimat.”

Ep. XLVII de Fabritius a Espinosa, G. IV, pp. 234-5.

[11] “(…) et apud homines (…) summum bonum aestimantur : divitias scilicet, honorem, atque libidinem. »

TIE, G. II, p. 5.

[12] “Sed quoniam nunquam publice docere animus fuit, induci non possum, ut praeclaram hanc occasionem amplectar, tametsi rem diu mecum agitaverim. Nam cogito primo, me a promovenda Philosophia cessare, si instituendae juventuti vacare velim. Cogito deinde, me nescire, quibus limitibus libertas ista Philosophandi intercludi debeat, ne videar publice stabilitam Religionem perturbare velle (…). Atque haec cum jam expertus sim, dum vitam privatam & solitariam ago, multo magis timenda erunt, postquam ad hunc dignitatis gradum ascendero. Vides itaque, Vir Amplissime me non spe melioris fortunae paerere, sed prae tranquilitatis amore, quam aliqua ratione me obtinere posse credo, modo a publicis lectionibus abstineam.”

Ep. XLVIII de  Espinosa a Fabritius, G. IV, p. 236.

[13] Para quem se interessa pelo tema das mulheres na filosofia vj. Maria Luísa Ribeiro Ferreira (org.), O que os filósofos pensaram sobre as mulheres, Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 1998, republicado no Brasil, S. Leopoldo, Unisinos, 2010.

[14] Espinosa, Tratado Político, cap. XI, § 4. É um tema que por várias vezes abordei noutros artigos. Vj. “Descartes, Espinosa e os ecofeminismos” e “Haverá uma salvação para as Mulheres?”,  Maria Luísa Ribeiro Ferreira, Uma Suprema Alegria: escritos sobre Espinosa, Coimbra, Quarteto, 2003, pp. 73-90 e 251-267.

[15] Colerus, ob. cit., pp. 3-4.

[16] “Si aliquem, imaginamur amare, vel cupere, vel odio habere aliquid, quod ipsi amamus, cupimus, vel odio habemus, eo ipso rem constantius amabimus, etc.”

Et. III, prop. XXXI, G. II, p. 164.

[17] “Si aliquem re aliqua, qua unus solus potiri potest, gaudere imaginamur conabimur efficere, ne illa re potiatur.”

Et. III, prop. XXXII, G. II, p. 165.

[18] “ (…) Quae ratio plerumque locum habet in Amore erga feminam; qui enim imaginatur mulierem, quam amat, alteri sese prostituere, non solum ex eo, quos ipsius appetitus coercetur, contristabitur, sed etiam, quia rei amatae imaginem pudendis et excrementis alterius jungere cogitur, eadem aversatur; (…) »

Et. III, prop. XXXV, schol., G. II, p. 167.

[19] Este tópico recupera partes do capítulo 4 do meu livro Diálogo e Controvérsia na modernidade pré-crítica, Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2005.

[20] Dado que Espinosa pouco utiliza o vocábulo “anima” usando frequentemente o termo “mens”, optamos pelo tradução mente, contrariando o habitual nas edições  portuguesas, francesas e castelhanas. Visto que  em português  é possível  escolher entre  mente e alma, optamos (tal como os ingleses) pelo primeiro termo, numa  fidelidade literal ao texto do filósofo que deliberadamente dele quer afastar quaisquer conotações religiosas.

[21] Descartes usara este tipo de escrita no apêndice às Respostas às Segundas ObjecçõesRaisons qui prouvent l’ existence de Dieu et la distinction qui est entre l’ esprit et le corps humain disposées d’ une façon géométrique, um texto de poucas  páginas  que se constitui como uma espécie de léxico.

[22] Gilles Deleuze, “Espinosa e as Três Éticas” em G. DELEUZE,  Crítica e Clínica, trad. Pedro Eloy Duarte, Lisboa,  Século XXI, 2000, pp. 202-203.

[23] Pierre, Bayle, “Spinoza”, Dictionnaire Historique et Critique, Amesterdão, 1740, 5ª ed., t.  IV, pp.  253-271 ( p. 253).

[24] “ (…) ce que c’ est que le caractère propre de la modification. C’ est d’ être dans un sujet de la maniére que le   mouvement est dans le corps, & la pensée dans l’ âme de l’ homme, & la forme d’ écuelle dans le vase que nous appellons une écuelle. »

Bayle, artº cit,  p. 269.

[25] Et.I, prop. XXIX, schol, G. II, p. 71.