Queridos irmãs e irmãos,

A nossa situação no mundo, na vida, é marcada pela violência e uma violência que não está apenas fora de nós. Nós reconhecemos esse sinal do tumulto, da turbulência, da asfixia do amor dentro de nós próprios. S. Paulo há de dizer na Carta aos Romanos, de que hoje nós lemos um parágrafo, que o seu próprio corpo está em luta, está em guerra.

Nós sentimos essa luta dentro de nós e muitas vezes sentimo-nos cúmplices, sentimos que há uma cedência da nossa parte em relação à ordem do mal. Olhando para fora de nós, olhando para as notícias que nos cercam, olhando para a situação do mundo “vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”. Não podemos ignorar o sofrimento do justo, não podemos ignorar a solidão da vítima, não podemos ignorar a perseguição que é feita a tantos. Uma perseguição que é ativa, no sentido se pensarmos nos cristãos, se pensarmos em todas as vítimas da história. Por exemplo, hoje em tantas paragens do mundo são perseguidos pela sua fé, pela sua raça, pelas suas opções de vida, pela sua condição. Mas há outras formas de violência instaladas, são formas sistémicas de violência. Pensemos na pobreza como uma violência, pensemos no desemprego como uma violência, pensemos na falta de habitação como uma forma terrível de violência, pensemos naqueles que vivem sem abrigo como uma forma tremenda de violência. É o próprio sistema que tem dificuldades e assumidamente não quer integrar, não se quer mudar.

Esta violência está-nos no sangue, nós somos herdeiros, vivemos num mundo feito assim. Por muito que nos habituemos, por muito que nos conformemos com este mundo, a verdade é que no coração de um cristão não pode deixar de constituir um escândalo o sofrimento, a dor, a pobreza, a humilhação, a perseguição de qualquer ser humano. Mas é neste mundo que nós estamos e precisamos de ganhar uma consciência profunda do mal que atravessa a própria história. Nós não vivemos no melhor dos mundos, vivemos num mundo tocado profundamente pelo pecado, tocado profundamente por estruturas de pecado e isso nós não podemos ignorar. Precisamos crescer no conhecimento, na denúncia profética, na oposição e na procura de modelos alternativos de vida que nos coloquem a fazer outras coisas, a tentar. Por muito pequenino, por muito seminal que seja a nossa atitude nós temos de tentar outros caminhos. Porque não podemos simplesmente compactuar, não podemos dizer: foi este o mundo que nós herdámos, não podemos fazer nada. Não, nós podemos fazer alguma coisa. E, nesse sentido, são as leituras que hoje nós ouvimos.

  1. Paulo, na Carta aos Romanos, vai falar de duas realidades, vai falar do pecado original e vai falar da graça original. Muitas vezes nós falamos do pecado original na tradição católica e esquecemo-nos de falar da graça original. Sim, há um pecado original, no sentido de que a nossa humanidade, como a humanidade de todas as mulheres e de todos os homens, é marcada pela imperfeição. Nós vivemos num mundo onde nem damos conta da quantidade de injustiças, de como vivemos situações de puro privilégio em relação a milhões e milhões de seres humanos. E o que é que nós fazemos por isso? E como é que acordamos para essa realidade? Vivemos num mundo onde o pecado se transmite de uma forma completamente acelerada que nós nem nos damos conta. E aquilo que muitas vezes nos parece um bem, uma coisa adquirida, alguma coisa a que temos direito se vamos ver, no fundo, é uma situação que provoca, lá na outra ponta da relação, uma situação de humilhação, de escravidão, de exclusão de tantos seres humanos.

Por isso nós, mesmo vivendo como inocentes, a verdade é que este contágio com o mal sistémico, com as estruturas de pecado da nossa realidade não poupam ninguém. Por isso, no batismo, mesmo no batismo das crianças, o rito do exorcismo – e hoje vamos ter a grande alegria de fazê-lo com a nossa catecúmena, a Ana – é o rito da vitória. A linguagem da oração diz “desta mancha original”, que acaba por ser uma espécie de insuficiência ou de débito nosso em relação a este caráter persecutório que a vida e que o sistema do mundo têm em relação a milhões de seres humanos, e em relação mesmo às outras criaturas. Porque muitas vezes nós vivemos sobre a terra como se estivéssemos sós, como se fossemos o dono e tudo estivesse em função da nossa existência e do nosso prazer, e não pensamos na dor, no sofrimento das outras criaturas que partilham o espaço do planeta connosco. Há de facto uma consciência de pecado que nós precisamos de adquirir.

É interessante que um grande cineasta contemporâneo, ArseneyTarkovski, quando lhe perguntaram “Para si, qual é o drama maior do nosso tempo?”, ele diz: “ O drama maior do nosso tempo é a ausência de consciência do pecado.” E, de facto, muitas vezes nós vivemos demasiado superficialmente, esquecendo a raiz profunda de mal, a raiz de pecado que muitas vezes funda os nossos hábitos, as nossas relações, o nosso consumo, os nossos desejos. Isso tudo acaba por estar, sem darmos conta, fundado numa raiz profunda de pecado.

Mas se existe o pecado, e ele existe, nós não podemos esquecer que a nossa existência não está fundada no pecado original. O filósofo Paul Ricoeur lembrava-nos muito isso: antes de falarmos de pecado original nós temos de falar de uma graça original. Porque, como diz S. Paulo na Carta aos Romanos, “Se, pelo pecado de um só, do primeiro Adão- Adão foi a prova de que a nossa humanidade, na sua liberdade, tanto pode fazer o bem como tantas vezes faz o mal – o pecado entrou no mundo, com muito mais razão pela graça de um só que é Cristo entrou a graça no mundo.”

Por isso, aquele imperativo de Jesus no Evangelho é um imperativo que nos deve mobilizar. “Não temeis, não temeis.” Não devemos temer a aventura de liberdade que é a nossa vida, não devemos temer o muito que há para fazer, não devemos temer a grande transformação, a grande reviravolta, a grande viragem em que nos temos de empenhar. Não temeis. E de onde é que nos vem essa força? De onde é que nos vem esse caráter destemido no afrontar o mundo? Vem-nos da certeza de que em Cristo começa uma nova história, uma nova criação, que Cristo é capaz de inverter a raiz sistémica do mal e é capaz de colocar o triunfo do bem como possibilidade a efetuar-se em cada um de nós.

“Não temais pequenino rebanho.” Aquilo que o Senhor nos diz: “Os cabelos da vossa cabeça estão todos contados, valeis mais do que muitos passarinhos.” A nossa vida está nas mãos de Deus. Está nas mãos de Deus que cada um de nós se sinta como filho e filha amada de Deus, sinta que o nosso nome está tatuado nas paredes do Seu coração, está gravado como selo no coração de Deus. Nós estamos dentro Dele, dentro do Seu amor, afundados aí na certeza desse amor. Isso dá-nos força, dá-nos garra, dá-nos genica, dá-nos capacidade de sonhar, dá-nos vontade de insatisfação, dá-nos inquietude, dá-nos uma leitura crítica da própria realidade, a começar por aquela que nos está mais próxima, aquela que está dentro de nós. Somos capazes de sondar alternativas e isso vem de facto de sermos uma nova criatura e de estarmos radicados no coração de Deus.

Mas, o final deste passo do Evangelho de S. Mateus, é um final que nos enche de uma certa perplexidade, porque Jesus estabelece uma espécie de paralelismo e diz: “A todo aquele que se tiver declarado por Mim diante dos homens também eu me declararei por ele diante do Meu Pai que está nos céus, mas àquele que Me negar diante dos homens também Eu o negarei diante do Meu Pai que está nos céus.” O que é isto? Porque é que Jesus estabelece este paralelo? Porque quando comparamos as nossas forças, as nossas capacidades, com a força de Deus é uma desproporção. Que o Senhor nos defenda junto de Deus nós entendemos e precisamos disso, precisamos que Ele nos apresente e nos defenda diante do Pai do Céu. Mas Jesus diz mais: “Aquele que Me negar diante dos Homens, também eu o negarei diante de Meu Pai que está nos céus.” Isto não é uma ameaça, não devemos interpretar como uma ameaça, mas como uma chamada, como um chamamento a levarmos a nossa vida a sério.

Jesus toma a nossa vida a sério. Se eu só posso fazer 0,1 então que eu faça aquele 0,1. Que eu faça o que posso fazer, o que tenho a fazer. Deus toma a nossa vida terrivelmente a sério. A nossa vida tem um caráter terrivelmente sério. Por pequenina, frágil, escassa, tonta que ela seja a nossa vida tem uma seriedade absoluta, trágica. Porque ou ganhamos ou perdemos. Não precisamos ser o que não somos. Não, é sendo exatamente o que somos, com os nossos limites, os nossos defeitos, as nossas capacidades. Mas sendo o que somos, temos de sentir que a nossa vida é o palco da salvação e da perdição. Na nossa vida joga-se o máximo e a perda total no sentido pascaliano da aposta, eu tenho de sentir que aposto e posso ganhar e posso perder.

Por isso, o Cristianismo olha para a nossa vida com um sentido trágico no sentido de dizer: não vamos pôr paninhos quentes. “Ah, no fim tudo se salva.” No fim tudo se salva mas tu perdeste a tua vida. Se a tua vida não serviu para nada, se tu não tiveste a capacidade de te desenterrar e de te dar, alguma coisa se perdeu. Porque a vida não é uma ilusão que atravessa o mundo, a nossa vida é uma realidade concreta, uma página única na história da salvação e essa página tem de vingar. Nós todos vamos morrer de alguma coisa, todos, mulheres e homens morrermos de alguma coisa. Mas essa não é a novidade, morrermos de alguma coisa não é novidade nenhuma. Já contamos com isso, mais tarde, mais cedo. Isso é o banal da história, aquilo que nos é pedido é que morramos por alguma coisa, isto é, tenhamos a capacidade de dar a vida por alguma coisa, de dar a vida por Alguém. Sabendo que é de facto a nossa vida que colocamos como dádiva, como dom, como oferta e nisso jogamos tudo aquilo que temos, as nossas entranhas, a nossa ferida profunda, a nossa dor, o nosso sangue, o nosso sonho, o nosso eros, o nosso amor, a nossa amizade. Jogamos tudo em cima e acreditamos que de facto a nossa vida está a ser dada. Não estamos simplesmente a morrer, estamos a oferecer a nossa vida por alguma coisa.

Por isso, esta chamada muito grande de Jesus de levar a nossa vida a sério. Às vezes acho que nós, cristãos, tomamos uns calmantes, ou tomamos uns oblivious, vamos diminuindo a dor da existência, pensando que no fim Deus vai salvar-me. Sim, no fim seremos salvos. Mas não é essa a questão, a questão é: Para que é que a tua vida serviu? Onde é que foste? Onde é que tu a levaste? Morreste por quê? O que é que te fez viver? Porque razão deste a tua vida? Por quem deste a tua vida? E, no fundo, é esta a lição de Jesus quando nós olhamos para a cruz. É esta a lição de Jesus.

Eu esta semana estive em peregrinação na Terra Santa. Foram uns dias, inesperadamente até para mim, inesquecíveis. Sabem, às vezes os padres andamos e estamos e fazemos mas às vezes também as expetativas são baixas. É mais uma vez, eu já tinha ido nove vezes, era a nona vez. E, de facto, cair de joelhos perante a cruz na Igreja do Santo Sepulcro, tocar com a mão no lugar da pedra onde se diz que a cruz esteve, rezar junto do túmulo de Adão e Eva. Tocar, deixar-se tocar por aquelas pedras, por aquela memória, caminhar por aquelas ruas, fazer a peregrinação nos mercados, andar com uma cruz aos ombros. Ao mesmo tempo, parece patético, mas para quem tem fé é um cair, é um esvaziar-se. E só as lágrimas são capazes de rezar por nós aquilo que nós não sabemos, as orações mais fundas do nosso ser. Eu acho que precisamos de olhar para a cruz e que a cruz fale a cada um de nós. E a primeira coisa que a cruz nos diz: nós não estamos perante alguém para quem a vida não tinha valor. Não, para Jesus a Sua vida e cada vida tem o máximo valor, por isso é que Ele fez aquilo. Aquele esvaziamento não é de quem diz: a vida não vale nada, tanto faz isto como aquilo. Não, é dizer a vida é um momento único e por isso eu tenho de fazê-lo a obra-prima, tenho de fazê-lo o dom maior, tenho de fazê-lo aquele momento culminante onde o extremo da graça se pode afirmar.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XII do Tempo Comum

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