Os retiros quaresmais, conduzidos pelo Padre Tolentino Mendonça para a comunidade da Capela do Rato, deixam sempre marcas profundas em todos os participantes. Este ano não foi excepção, pelo contrário. Ao escolher falar- nós de Etty Hillesum, uma rapariga holandesa, judia, plurilíngue , irreverente e independente, que morreu em Auschwitz aos 29 anos, colocou- nos, palpavelmente, perante o grande mistério de Deus e dos Seus, não menos misteriosos, desígnios e meios de nos abraçar.
1 – Lidos por muitos mas ainda desconhecido dum público mais vasto, o seu Diário assim como as cartas que escreveu do campo de trânsito de Westerbrok, a antecâmara holandesa de Auschwitz, são o testemunho dum longo, árduo mas perseverante caminho interior, à procura da presença de Deus, em si, e no mundo que a rodeia. No período mais negro dos anos 40, do século XX, em plena Shoah, Etty vai conseguir crescer espiritualmente até culminar a sua vocação de dom que a quer “um bálsamo para muitas feridas” (que é a derradeira frase do seu Diário). Ao dedicar- se, inteiramente, aos seus companheiros de infortúnio Etty consegue, simultaneamente, viver e saborear cada instante da vida que lhe é dado viver, ” porque a vida é bela e cheia de significado”, até ao fim. No postal que consegue atirar do comboio, que a conduz á morte, e que, miraculosamente, chegou ao seu destino, escreve: “deixámos o campo a cantar”. Já a 26 de Agosto de 1941, na sua casa de Amsterdam, escreve esta frase extraordinária: “Dentro de mim existe uma nascente muito profunda. E nessa nascente está Deus. Por vezes consigo alcançá-la, porém, quando fica coberta de pedras e de areia, Deus fica soterrado. Então tenho de O desenterrar de novo”. Tal comoTeresa d’Avila, que encontrava a presença de Deus entre as panelas e os tachos, assim Etty O reconhece nas mínimas coisas: na pequena nuvem entrevista através das grades duma janela, num jasmim florido, na terra húmida de Westerbrok onde fincava os pés, ou no tapete áspero onde se ajoelhava, para melhor se recolher, ela, “a rapariga que não se sabia ajoelhar” como se designou nalgumas páginas do seu diário. Era assim que Etty encontrava Deus no mais profundo de si própria, para O encontrar em todo o lado, e em todas as vicissitudes da vida corrente, para seu grande conforto e alegria. Era de complexão e saúde frágeis, condição que enfrentava como podia, abusando da aspirina ( conta, talvez exagerando, que tomava meio quilo de aspirina por mês e sabe-se como o ácido salícilico não é meigo para o estômago) o que lhe terá provocado uma úlcera gástrica que a manteve de cama durante semanas. Durante esse período, que foi o último que passou em Amsterdam, não deixou nunca de escrever, de meditar, de crescer espiritualmente e de, impacientemente, querer regressar a Westerbrok, de onde só tinha saído para se tratar. Westerbrok era o lugar onde se tinha sentido ser “o coração pensante da barraca” só que agora queria mais ainda, queria ser o “coração pensante de todo o campo de concentração”.
2 – O facto de me ter deparado com o Diário de Etty Hillesum, no final dos anos oitenta, deve-se a circunstâncias pessoais que me levaram cedo a ler (quase) tudo o que, nessa altura, havido sido escrito sobre a Shoah, o substantivo hebraico que significa catástrofe mas que se escreve assim, com maiúscula, por ser a catástrofe por antonomásia do povo judeu. O título que me chegou às mãos, na tradução francesa, era “Une vie bouleversée” o que indicia, a meu ver, a perplexidade do tradutor (e do editor) perante a complexidade e o inusitado conteúdo do texto. Noutras edições o titulo era “Uma vida interrompida” que deixava igualmente escapar o essencial. Também eu, não possuindo as “ferramentas” necessárias para verdadeiramente me aproximar e apropriar do texto, o que retive, então, da sua leitura foi apenas, ou pouco mais, do que uma pungente e trágica história da Catástrofe, mais uma de entre tantas, tantas, outras.
3 – O grande biblista e teólogo italiano Sérgio Quinzio escreve: “se Etty insiste em repetir que tudo é belo é porque nela age aquela profunda, hebraica, força de vontade de viver plenamente. Uma patine ideal, poética, reveste a sua sólida, irredutível, força hebraica.” Com efeito ao longo de todo o seu Diário, sobretudo durante os derradeiros meses, no meio da miséria e sofrimento, em Westerbrok, Etty vai insistentemente repetir que a vida é bela malgrado a violência e as privações quotidianas. Isto apesar de ter uma clara e realística percepção da iminência do fim já a partir do princípio de Julho de 42, muito antes da maioria dos seus correligionários. No dia 3 escreve uma das mais pungentes, belas e longas páginas do seu Diário. Cito aqui apenas um parágrafo : “É verdade que trazemos tudo, mesmo tudo, dentro de nós: Deus, o céu e o inferno, a terra e a vida, a morte e os séculos, tantos séculos. Um cenário, uma representação mutável das circunstâncias exteriores. Como possuímos tudo em nós, estas circunstâncias não podem ser assim tão determinantes dado que, circunstâncias, boas e más, existirão sempre e como tal devem ser aceites. O que não nos deve impedir de nos dedicarmos a melhorar as circunstâncias más. Sabendo, porém, por que motivos se luta e recomeçando, connosco mesmos, dia após dia. Numa belíssima afirmação, a 26 de Junho de 42, já tinha escrito: “Acho a vida bela e sinto-me livre. O céu espraia-se dentro e fora de mim. Creio em Deus e nos homens e ouso dizê-lo sem falso pudor. A vida é difícil mas não é grave”. E poucos dias antes, a 19 de Junho, escrevera, convicta: ” o misticismo deve fundar- se numa honestidade cristalina o que implica reduzir primeiro as coisas á sua realidade nua e crua”. Passados alguns dias, a 7 de Julho, numa longa e detalhada descrição de tudo o que tinha acontecido nesse dia, destaco o que escreve ao fim da tarde: “Estou pronta para tudo, em qualquer lugar para onde Deus me mandar, estou pronta, em qualquer situação e na morte, a testemunhar que a vida é bela e cheia de significado. E que a culpa não é de Deus mas nossa se as coisas estão como estão.” E será esta profunda, espantosa convicção, de que são os homens, de que é ela, que tem de ajudar Deus a manter-se vivo no mais profundo de si mesma que a irá, seguramente, acompanhar até ao seu último instante. Porque sabia, porque tinha a certeza que “é no mais profundo de mim mesma, ali onde me reencontro e que por comodidade chamo Deus “, que Essa presença jamais a abandonaria.
4 – No princípio dos anos 70, em Milão, tive o ensejo e o privilégio de conhecer a Dra. Luciana Nissim, pediatra e psicanalista que, juntamente com um grupo de amigos de Turim, foi deportada para Auschwitz a 22 de faveiro de 1944. O transporte partiu do campo de trânsito de Fossoli, próximo da cidade de Modena, ou seja, do Westerbrok italiano, com 600 pessoas a bordo das quais apenas 10 sobreviveram. Luciana Nissim e o seu amigo Primo Levi faziam parte desse restritíssimo grupo. A sobrevivência de ambos deveu-se ao facto de Nissim ser médica e Levi engenheiro químico, profissões essas que os pouparam, logo à descida do comboio, das câmaras de gás ou dos trabalhos forçados, mas também graças a todo um conjunto de circunstâncias menos desfavoráveis que os foram acompanhado, dia após dia, até á libertação. Não conheci Primo Levi pessoalmente mas sei que, tal como a sua amiga Luciana fazia com os seus vestidos, sempre usou camisas de manga curta, verão e inverno, para não esconderem o número e o triângulo, tatuado no antebraço esquerdo, numa partilha continuada da experiência comum. E ambos escreveram, um muito mais do que o outro, sobre a indizível experiência de Auschwitz que os marcou de forma ainda mais indelével do que essa tatuagem que era, simultaneamente, a primeira etapa da descida aos infernos e o seu símbolo, através do qual continuavam a ostentar, cada qual a seu modo, a tal irredutível força íntima hebraica de que fala Sérgio Quinzio. Caso tivesse sobrevivido, a Etty teria certamente feito o mesmo, escrito e testemunhado, com a rigorosa autenticidade do seu grande ânimo. Chegada à década de oitenta, sempre em Itália, tive ocasião de conhecer um estreito familiar de Primo Levi que me contou como esse, muito deprimido, tivesse deixado de conseguir escrever. O seu suicídio foi um enorme choque, a sua morte uma perda irreparável mas, de certo modo, não foi uma surpresa. Tal como escreveu um outro sobrevivente de Auschwitz / Birkenau e prémio Nobel da Paz, Elie Wiesel, “Primo Levi já tinha morrido em Auschwitz”. Perguntas sem resposta: e a Etty também se teria suicidado se tivesse deixado de conseguir escrever? Ou a sua fibra interior ter-se-ia mantido, alimentada como era pela sua “nascente profunda”, mesmo depois da indelével experiência de Auschwitz? Ou teria Etty acabado por se converter ao cristianismo, chamada como se sentia, cada vez mais intensamente, pela dádiva de si mesma, pelo dom cristico?
5 – Mais recentemente, em 2009, outro grande privilégio. O de participar numa peregrinação a Auschwitz / Birkenau (o verdadeiro campo de extermínio de onde velhos, doentes, crianças seguiam, directamente, do comboio para as câmaras de gás e os considerados válidos, selecionados para as mais de 10 horas diárias de trabalhos forçados). Peregrinação ecumica, essa, organizada pela Comunidade de Santo Egidio e pela Arquidiocese de Cracóvia, no espírito de Assis. Assim rezámos juntos e em várias línguas, judeus, roma, sinti, protestantes e católicos, com grande participação e emoção, numa cerimónia inesquecível, unidos na memória e na determinação do “nunca mais”. Por muito que se tenha lido e ouvido falar de Auschwitz / Birkenau esse lugar, sinónimo de infâmia e da maior desumanidade, o choque com aquela realidade física é tremendo. Do percurso de mais de mil metros, ao longo dos carris, por onde transitavam os comboios dos deportados, que do arco de entrada do campo levava á rampa que conduzia ás câmaras de gás, desse trajecto não se sai impune, não se regressa o mesmo. Não querendo deixar rastos, perante a avançada das forças soviéticas, os SS evacuaram o campo e fizeram implodir todas as construções. Nada resta, portanto, das câmaras de gás e dos 4 fornos crematórios ( o existente é uma reconstrução) e o monumento erigido em seu lugar relativamente recente. Mas a desolada extensão do campo, 2,5 km por 2, constitui, de per se, um enorme monumento ao martírio de todos aqueles que, de uma forma ou outra, ali foram assinados. Tal como Etty e a sua família: cinco pessoas entre os cinco milhões de vítimas da Shoah, que só em Auschwitz / Birkenau foram aproximadamente um milhão e cem mil pessoas. E ainda a propósito de monumentos: dois livros , “A noite”, de Elie Wiesel, e “Se isto é um homem” , de Primo Levi, que são dois verdadeiros monumentos ad memoriam. Ambos relatam as experiências, vividas em condições extremas, físicas e psicológicas, de cada um deles e dos seus companheiros, verdadeiras epopeias da capacidade de resistência humanas. Mas há outros livros que fazem parte desse mesmo grupo de grandes monumentos à memória das vítimas, anónimas ou não, recentes ou pertencentes ao passado. Refiro-me, só para dar três exemplos, aos livros de Imre Kertész, sobrevivente de Auschwitz e prémio Nobel da literatura, de Jorge Seprun, sobrevivente de Buchenwald, ou ao extraordinário romance de André Schwarz-Bart, “O último dos justos”, prémio Goncourt de 1959, cujo pai e os dois irmãos morreram em campos de concentração. Mas há muitos outros livros, de outros tantos sobreviventes, que também deram uma valiosa ajuda ao acesso a uma lenta e alargada elaboração dum “antes” , dum “durante” e de um complexo, doloroso processo de aquisição dum ” depois”.
6 – A todas estas circunstâncias, que me foram dadas viver, somam-se outras experiências, longínquas memórias da infância, mas que me são, porventura, mais próximas pelo sangue. Refiro- me á tragédia vivida pela família alargada do meu pai que viu desaparecer, sempre em Auschwitz / Birkenau, cinco dos seus membros. Tal como os Hillesum, todos deportados a partir de Westerbrok. Por isso não me é muito difícil imaginar que a minha jovem, recém-casada, prima Trudie ( Gertrud) e o marido, se possam ter cruzado com ou, eventualmente, mesmo conhecido a Etty, dado que estiveram no campo durante o mesmo período de tempo. Dos meus familiares sei que os mais velhos, o pai da Trudie e os sogros do irmão do meu pai, morreram nas câmaras de gás, mal chegaram a Birkenau . Quanto ao jovem casal, ao que se sabe, morreu das privações e de doenças tal como, muito provavelmente, aconteceu com a Etty e o irmão Mischa, também no final de 1944. Foi da mesma plataforma da ignomínia que era Westerbrok, que já a 7 de Agosto de 1942, partiram as irmãs Edith e Rosa Stein, arrancadas ao seu Carmelo de Echt, para irem morrer, nas câmaras de Birkenau, assim que lá chegaram, 2 dias depois. Tal como Etty, a Carmelita descalça também se sentia preparada para esta eventualidade e disse-o ás suas Irmãs , com palavras quase idênticas às de Etty, nas vésperas da deportação: “Aconteça o que acontecer estou preparada. Jesus está connosco”. E assim o dia 9 de Agosto, o dia da sua morte, passou a ser o dia de Santa Teresa Benetina da Cruz, co-padroeira da Europa. Quem também passou por Westerbrok foi Anne Frank, família e os restantes ocupantes do esconderijo da Achterhuis. Como punição, por se terem escondidos, estiveram presos, na barraca 47, que servia de prisão do campo de Westerbrok, barraca essa que foi reconstruída e que seguramente iremos visitar. A família Frank acabou por ser deportada com o penúltimo comboio que, a 2 de setembro de 1944, seguiu para Auschwitz. Daí Anne e a irmã Margot foram deslocadas para o campo de concentração de Bergen- Belsen, situado perto de Hannover, onde viriam a morrer de tifo, em data incerta, em fevereiro ou março de 1945 , ou seja, poucos meses antes da libertação do campo, pelas forças inglesas, em abril do mesmo ano. O pai Otto, único sobrevivente da família, tornou-se no paladino do Diário da filha, encontrado pela fiel amiga Mies Gieps, e que conseguiu publicar logo em 1947. A primeira tradução, em inglês, é de 1952. O Diário de Etty, esse teve, como sabemos, de esperar mais de 30 anos para ser publicado. Quanto ao futuro santo Maximiliano Kolbe, que era polaco, foi preso em Varsóvia devido ás suas posições anti- nazistas e dai directamente deportado para Auschwitz onde, depois da sua heróica decisão, foi barbaramente assassinado a 7 de agosto de 1941. Curiosamente, foi nesse mesmo dia, mas do ano ano sucessivo, que as irmãs Stein viriam a ser deportadas.
7 – Com o advento do regime nazi na Alemanha, em 1933, e as consequentes, crescentes e ferozes medidas anti-semíticas, de que a Kristallnacht foi um prólogo eloquente,muitos judeus alemães optaram por se refugiarem, ilegalmente, nos Países Baixos. Para esses refugiados, o governo dos Países Baixos, construiu um campo de acolhimento em Westerbrok. Porém, com a invasão da Holanda em maio de 1940, as coisas mudam, radicalmente, e Westerbrok passa a ser, primeiro, um campo de internamento e, a partir de 1942, um campo de transito para os destinos da morte. Para Auschwitz, como sabemos, mas também para Bergen-Belsen, Sobibor e Therensienstadt. Todas as terças-feiras, semana após semana. A vida quotidiana do campo era regida por este ritmo terrivelmente angustiante. E a pergunta, com que todos se confrontavam era: será esta a minha vez? A insegurança era constante, o medo permanente. Semana após semana, comboio após comboio, foram deportadas cerca de 107.000 entre homens, mulheres e crianças, muitas crianças. Aquando da libertação de Westerbrok, pelas tropas canadianas, a 12 de abril de 45, já só lá permaneciam 876 pessoas. O campo acabou por ser desmantelado no imediato pós-guerra e só posteriormente foi recuperado, na forma como hoje o iremos encontrar, como testemunho e homenagem á memória das vítimas.
8 – Interpelados e implicados no trajecto de Etty, através do sofrido e luminoso testemunho que, tão generosamente, nos quis deixar, estamos todos. Graças á sua “sólida, irredutível força hebraica“ Etty acabou por se transformar, para nós cristãos, num guia, num farol. Uma luz que precede e ilumina o longo, tortuoso, personalíssimo, caminho de cada um de nós, dentro de cada um de nós. Para, tal como ela, aprendermos a “desenterrar” Deus e aceder “à nascente profunda” que existe em nós. O “bálsamo para muitas feridas” que Etty queria ser, que ela sentia poder ser, era essa nascente profunda, revelada e derramada sobre os outros. O dom de si mesma. Quanto a nós, amparados, e estimulados, nesta viagem “por mares nunca dantes navegados” , pela mão, atenta e dedicada, do nosso Capelão regressaremos renovados e “temperados” ( o que não é sinónimo de “endurecidos”, como justamente observou Etty.) Temperados, renovados e agradecidos pelo privilégio que tivemos de ter conhecido o caminho espiritual de Etty Hillesum e de termos podido seguir alguns dos seus passos. Tudo o mais fica em aberto: dependerá do que cada um de nós fizer, ou melhor, daquilo que conseguirá fazer, dento de si, desta experiência. Tal como Etty diz, repetidamente, teremos de ser nós a ajudar Deus.
Nota – as citações de Etty foram por mim traduzidas, a partir da edição italiana do Diário, publicado pela Adelphi em 1996.
Carmo Sennfelt