Queridos irmãs e irmãos,

Ao celebrar o mistério da Páscoa de Jesus, que nestes 50 dias de uma forma muito especial nós estamos a celebrar, a viver, a refletir, podemos pensar que a grande questão é: presença/ausência. Perceber se Jesus está ou não presente, se nós O vemos presente na vida, O entendemos assim ou se somos devorados, destabilizados pelo terrível peso de uma ausência a que nós não conseguimos dar significado, a que não conseguimos dar sentido.

Presença/ausência: Onde é que está Jesus? Onde é que O encontraremos? Onde é que O veremos? No fundo, qual é que é o núcleo da fé pascal?

Este texto memorável do Evangelho de S. Lucas funciona como uma espécie de pequeno Evangelho, de resumo, de síntese do próprio Evangelho de Lucas. Diz-nos que o importante para nós não é ficarmos capturados pelo debate entre a presença e a ausência de Jesus, que presença ou que sentido dar à ausência. A grande questão do modo como nós, discípulos e discípulas do Senhor, somos chamados a viver a Páscoa e esta Páscoa é a questão de quando é que os nossos olhos se vão abrir? Quando é que vamos ver verdadeiramente? E uma das coisas que faz este texto, uma das operações mais importantes, é desligar a presença e ausência do ver ou do não ver. Porque, Jesus estava com os discípulos e eles não O viam.

Então, o importante não é saber se Ele está mesmo ou não está, se é a presença, se é o vazio, mas é o drama do ver, a dramática do ver. O ver tem a ver com a forma como nós compreendemos a Páscoa. Porque, depois, no final do Evangelho, quando ao partir do pão Jesus Se ausenta, a ausência de Jesus deixa de ser um problema. Então, o problema para nós não é se Jesus está presente ou se o sepulcro está vazio, o problema não é esse. O problema é: onde é que nós vemos Jesus? Onde é que nós O vemos? Onde é que nós O encontramos? Como é que nós compreendemos? Que visão nós temos da Páscoa do Senhor?

O Evangelho de Lucas apresenta-nos três lugares que são, ao mesmo tempo, três lugares existenciais e teológicos, são lugares da nossa vida: apresenta-nos o caminho, apresenta-nos a Palavra e apresenta-nos a mesa. O caminho, a Palavra, e a mesa. Todos nós fazemos caminho, somos caminhantes, o nosso dia a dia é um somatório de passos para lá e para cá que nós damos e nesses passos está Jesus, está a conversa sobre Jesus. Os dois discípulos iam numa fuga envergonhada, iam numa fuga desiludida, deixavam Jerusalém e iam para a periferia a 60 estádios para esta povoação chamada Emaús. E neste caminho, que é o caminho da sua desilusão, da sua ferida, do absurdo a que eles não conseguiam dar resposta, de uma coisa mais pesada do que eles podiam carregar e eles dizem: “Desistimos, vamos embora.” Neste caminho Jesus vem ao encontro deles.

Então, é importante nós descobrirmos que o caminho da nossa vida é um caminho teológico, que o caminho que nós estamos a fazer é um caminho onde Jesus vem ao nosso encontro. O caminho torna-se uma espécie de sacramento ou uma espécie de sacramental. Porque, qualquer que seja o nosso caminho (mais solitário, mais acompanhado, mais esperançoso, mais desiludido, mais luminoso, mais ferido, mais com fé, mais cravado de dúvidas), esse caminho é precioso. O nosso caminho é precioso porque é no caminho que Ele se vem colocar ao nosso lado, mesmo que os nossos olhos estejam impedidos de O ver. E tantas vezes nós sabemos que é assim. Parece que estamos a caminhar sozinhos com o nosso peso e com a nossa dificuldade, depois, mais tarde, nós vamos perceber que não estivemos sozinhos e que o caminho foi, de uma forma misteriosa, um lugar de encontro, um lugar de audição. Muitas vezes estes momentos de crise, estes caminhos palmilhados nas horas de crise são momentos de auscultação profunda, necessária na nossa própria vida. Os apóstolos tinham de chorar a morte de Jesus, tinham de chorar não compreender aquilo, tinham de chorar as esperanças quebradas a meio. “Nós esperávamos isto, nós esperávamos aquilo e nada disso aconteceu.” Eles tinham de explicitar a sua desilusão, e é muito importante dizer isso, e o caminho é o espaço para isso. De maneira que aprendamos também a dar valor ao nosso caminho, mesmo que ele pareça uma coisa sem sentido, mesmo que ele pareça só uma fuga, um fracasso. Aprendamos a valorizar o nosso caminho como lugar de construção da fé, e da fé pascal, porque o caminho é esse lugar, é esse lugar onde o Ressuscitado vem caminhar connosco.

Depois, nós temos a Palavra. E a Palavra é um lugar fundamental. Jesus começou por Moisés e pelos profetas a explicar em todas as Escrituras o que lhes dizia respeito. Nós precisamos iluminar o nosso sentimento, a nossa vida, a nossa experiência existencial pela luz de uma Palavra e isso liga-se àquilo que nós vemos nos Atos dos Apóstolos, Pedro e a comunidade primitiva, fazerem. O que é que os cristãos começam a fazer à luz da Páscoa? Começam a fazer uma releitura das Escrituras à luz do acontecimento pascal. No caso, S. Pedro pega num salmo do rei David, escrito tantos séculos antes e diz: Este salmo ilumina o que nós vemos acontecer com Jesus, o que nós acreditamos que está a acontecer com Jesus.

Então, a Palavra é muito importante. Às vezes o que nos dói é o silêncio. Porque, aquilo que nos desorganiza é a falta de uma Palavra. No fundo, o tempo pascal é também o tempo que nos dá uma Palavra que serve como de fio de Ariadne no meio do labirinto e organiza as nossas dúvidas, as nossas perplexidades, o absurdo daquela morte, do sofrimento, as nossas lágrimas. Tudo tem a possibilidade de se organizar pela Palavra. E é interessante que Jesus dá uma longa aula de Bíblia, de Escritura aos Seus discípulos. Nós também precisamos de Palavra. Não há fé pascal que não esteja sustentada numa Palavra, numa revelação e numa releitura. O Cristianismo, em grande medida, é uma releitura do Antigo Testamento, é uma releitura do Judaísmo e não só, é uma releitura da história da Humanidade, como depois S. Paulo fará. E nós precisamos reler, precisamos meditar.

Este é o tempo da Palavra, este é o tempo da Palavra. Porque a Palavra é aquilo que pode curar o nosso coração, pode colocar uma luz no nosso coração, e se estamos às escuras e se não descobrimos o sentido a Palavra é luz para os nossos passos. Por isso, nós precisamos ouvir, este é o tempo para escutar a Palavra, para reler, para reinterpretar a Palavra à luz de Jesus e aí encontrar um sentido.

Temos o caminho e temos a Palavra, e temos o terceiro momento. No meio daquela viagem, a viagem daquele dia, começa a escurecer, o dia cai. E os discípulos dizem a Jesus: “Senhor, fica connosco porque o dia vai cair.” E Jesus entra e senta-Se à mesa com eles.

Os primeiros cristãos (por exemplo estes dois homens: Cléofas e o outro anónimo de que nem sabemos o nome, não sabiam nada do que ia ser o futuro, mas eles tinham aprendido uma coisa com Jesus. O que é que eles aprenderam com Jesus? Aprenderam a hospitalidade, aprenderam que a fé é hospitalidade, a fé é responsabilização pelo outro, a fé é a capacidade de acolher o outro na nossa vida, na nossa casa e na nossa mesa. Porque Jesus, neste momento, para eles era um perfeito desconhecido, era apenas um outro viajante que caminhava com eles no caminho, sem identidade. Quando eles fazem este gesto de hospitalidade, de acolhimento, finalmente aquilo que eles eram incapazes de ver agora compreendem. Compreendem que é o próprio Jesus que parte o pão, isto é, o próprio Jesus que garante a hospitalidade, que faz a condivisão. E quando Jesus desaparece dos olhos deles, tudo deixa de ser um problema porque eles perceberam que aquele momento de encontro é um momento de descoberta de que Jesus está vivo, mas não só: é o momento de descoberta da grande transmissão de vida, do grande ensinamento que Jesus nos faz.

Queridos irmãos, no centro desta casa que é nossa está uma mesa, está uma mesa e estão as portas abertas e esta mesa está aberta para todos. Onde é que nós vamos reconhecer Jesus? Onde é que nós O vamos encontrar? Ele vai estar nos nossos caminhos mesmo que nós não O vejamos, ele vai estar na Palavra mesmo que nós ainda não consigamos ver que é Ele que nos fala nas palavras. Mas, quando nos responsabilizarmos pelo outro e dissermos “Não, tu não vais andar para aí sozinho no escuro. Não, fica connosco.”, quando nós sentirmos a responsabilidade do irmão e fizermos da hospitalidade também o sentido natural das nossas vidas, dos nossos trabalhos (E o amor o que é se não uma radical hospitalidade?), quando amarmos verdadeiramente e dissermos “Não, fica connosco” e convidarmos o outro a sentar à nossa mesa, então vamos descobrir que aquele misterioso companheiro, aquele silencioso, aquele que nos explicou, aquele que nos fez arder o coração é o próprio Jesus. Então, os discípulos saem a correr de Emaús e regressam a Jerusalém e regressam à comunidade.

Queridos irmãos, este evangelho de Emaús é uma catequese, é uma catequese sobre o que é a fé, sobre o que é a fé. A fé é o caminho, e o caminho em grande medida é a nossa biografia, é a nossa história, é a nossa trajetória, são os nossos encontros e desencontros. A fé é a Palavra, é o encontro com a Palavra, é o encontro com uma Palavra que organiza, que cura, que dá sentido, que relê, que ajuda a reler a própria história. Mas a fé, a fé cristã, fica sem possibilidade de ver Jesus se ela não é hospitalidade, se ela não é franquear de portas, se ela não é abertura de uma mesa universal, se ela não é convite para dizer “fica connosco porque o dia vem cair” – é aí que o Ressuscitado Se revela. Então, os discípulos já não estão tão sós mas sentem a força e a beleza da comunidade quando chegam a Jerusalém.

Queridos irmãs e irmãos, Páscoa de 2017. Nós temos de encontrar sentido para isto. O que é que nós estamos a viver? Que itinerário, que trajetória? Não é apenas a Páscoa do ano passado ou de há 50 anos, é a mesma e é outra. Porque eu sou outro, porque eu sou diferente. O que é que é para mim a Páscoa? É a ausência? É a presença? Ou é transformar a minha visão, a minha compreensão das coisas? No centro da minha nova compreensão das coisas, sei que há um elemento fundamental. Onde é que Jesus se encontra? No caminho, na Palavra, mas Jesus encontra-Se na hospitalidade e no encontro.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo III da Páscoa

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