Queridos irmãs e irmãos,

Nós acabámos de ler a grande narrativa da Paixão de Jesus. Hoje nós sabemos que a primeira parte dos Evangelhos a ser escrita foi a Paixão de Jesus. Quando olhamos para os quatro evangelhos juntos (Mateus, Marcos, Lucas e João) nós percebemos que aquilo que eles têm de mais próximo, aquilo que é mais comum entre eles é a narrativa da Paixão. Quer dizer que a primeira coisa a ser escrita, aquilo que foi conservado na palavra, no relato, no testemunho, na conversa dos cristãos, aquilo que foi segredado ao ouvido, aquilo que iniciou cada cristão fazendo-o discípulo e discípula de Jesus foi o contacto com esta narrativa da Paixão.

Nós hoje entramos na Semana Maior, na mais santa das semanas do ano. É uma semana para nós muito significativa porque temos oportunidade na liturgia de reviver o mistério pascal do Senhor, sentindo que este relato é a nossa coluna dorsal, que este relato é a nossa arquitetura íntima, que nós somos moldados por este relato, que ele é confiado a cada um de nós como se Jesus viesse bater à nossa porta.

É muito interessante que logo no início do relato aparece-nos uma figura anónima. Os discípulos vêm perguntar a Jesus “Senhor, onde é que queres celebrar a Páscoa este ano?” e Jesus diz “Ide dizer a casa de tal pessoa: o Senhor mandou dizer «Este ano é em tua casa que Eu quero celebrar a Páscoa.»” Nós não sabemos que pessoa é essa, é um anónimo. Seria com certeza conhecido de Jesus e dos outros discípulos. Mas o facto de na narrativa permanecer anónimo permite hoje que cada um de nós, leitores auscultadores desta narrativa, sintamos, porque é mesmo assim, que o Senhor diz ”Olha, este ano é em tua casa que Eu quero celebrar a Páscoa.”

Cada um de nós sinta esta Palavra como uma palavra a si dirigida e, por isso, procuremos viver o mistério desta semana em intimidade com Jesus, em união espiritual com Ele. Tentando perceber o que é esta narrativa, tentando perceber como é que ela pode ser nossa, que mistério extraordinário é este da solidariedade de Jesus que desce ao fundo do abismo, da solidão, do silêncio de Deus, do abandono, do sofrimento de uma vítima, de um justo inocente. Ele desce até aos fundos abissais do sofrimento humano para me abraçar, para me resgatar, para dizer a cada momento da nossa vida: “Tu não estás só. Eu já estive aí, eu já estive aí.” No lugar da nossa dor, do nosso dilema, do nosso impasse, da nossa miséria, do nosso sofrimento, do que nós não conseguimos aceitar nem compreender. Jesus pode dizer com verdade ao nosso coração: “Eu já estive aí, Eu já estive aí.” Ele esteve em todos os lugares onde o homem é vítima, onde a nossa humanidade é crucificada. “Eu já estive aí. Por isso, eu posso estar contigo a cada momento da tua vida.” Sintamos que este relato hoje nos é confiado, confiado a cada um de nós. E o que vamos fazer com isto? O que vamos fazer com esta história?

Dois mil anos depois, num ponto do Ocidente distante da Palestina mas marcado de uma forma indelével por esta história, são os nossos ouvidos que escutam esta história, são os nossos ouvidos que ouvem esta notícia, somos nós que recebemos este apelo e somos nós que temos de sair destas portas e anunciar ao mundo que há um homem crucificado que diz que é o Salvador.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo de Ramos

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