Há um ensaísta japonês, Hiroshi Osada que escreveu um livro com um título sugestivo: Começar a partir da leitura. Ele define o livro como amigo, mas refere que antes da invenção da escrita já existia o livro, o livro da boca ao ouvido. Naturalmente isto tem a ver com a narração e com a dinâmica do processo narrativo onde há uma história e um contador de histórias. Ocorre-me a bela misteriosa atmosfera das histórias contadas numa tenda de seminómades no Tibete – houve palavras que eu não entendia mas de certo modo intuía – ou à volta de uma fogueira africana.

Os apóstolos são os ouvintes que transmitem as histórias que eles mesmos escutaram. Assim, o Cristianismo é uma comunidade narradora de histórias. Existe uma linha ininterrupta e as histórias não terminam em qualquer tipo de resultado concreto e acabado. O ouvinte envolve-se de tal forma que se transforma em narrador, o ouvinte transforma-se em ator da narração e segue as suas ações. É neste sentido que podemos imaginar o Cristianismo como que uma cadeia infinita de narrações ou talvez uma infinita narração. Essas narrações ou essa narração que se prolonga ou se prolongam de geração em geração.

Fala-se muito do filme Silêncio, de Scorsese. Tal como sabeis o filme é baseado no romance Silêncio do escritor japonês Shusaku Endo e tem lugar no Japão durante as perseguições ao Cristianismo, na primeira metade do século XVII. O protagonista, Padre Rodrigo, é um missionário jesuíta português que entra no Japão em segredo, é capturado, passa por uma terrível provação psicológica e acaba por apostatar por compaixão para com os cristãos japoneses que estavam a ser torturados, uma vez que as autoridades lhe tinham garantido que libertariam os cristãos japoneses se ele pisasse a imagem de Cristo. Ora aqui está uma narrativa de grande densidade teológica, onde o protagonista trava uma luta terrível com a fé no seu coração.

Começar a partir da leitura, Silêncio, ora que tem isto a ver com o tema da Eucaristia de hoje? Tudo. Vejamos, na narrativa do Evangelho temos aquela passagem do Sermão da Montanha, aquele monumento ao Cristianismo que Mahatma Gandhi não sendo cristão tanto amava. “Bem-aventurados os pobres em espírito, os humildes, os que choram, os que têm fome e sede de justiça”, estes já vivem a lógica do Reino, aquela lógica que é ilógica.

A mesma leitura recomenda a misericórdia, a pureza de coração, a promoção da paz, a perseverança diante das perseguições. Perseverança diante das perseguições, aqui parece que se fala dos mártires, dos fortes. Ora, Silêncio fala-nos dos fracos, dos débeis que não aguentam o sofrimento, seja ele o próprio ou o alheio, o do outro. Digamos que se trata de uma apologia do débil e do direito à sua existência, o direito à existência do débil, do fraco, do cobarde.

Rodrigo, o protagonista de Silêncio, passa por um processo muito doloroso de conversão que é simbolizado na transformação da imagem que ele tem de Cristo. Tal transformação na aparência da imagem de Cristo nasceu a partir do árduo esforço por cruzar as barreiras culturais do Oriente e do Ocidente. A transformação da face de Jesus na imaginação de Rodrigo acontece lenta e gradualmente como parte de um doloroso processo de conversão. Quando partiu de Macau a imagem que ele via era aquela que ele trouxera da Europa, ainda sem qualquer transformação. Isto é, não inculturada, um rosto cheio de vigor e força. Na prisão de Nagasaki o Cristo que Rodrigo imagina é um Cristo sofredor. Finalmente, no capítulo 9 do livro o rosto que Rodrigo vê tem um olhar triste. A segunda e terceira imagens são aquelas que ele vê depois de cair num abismo do desespero, o que nos sugere a necessidade da crise – a crise nunca nos deve assustar. Sugere a necessidade da crise para que possamos voltar a germinar espiritualmente.

Como afirma o teólogo irlandês Michael Paul Gallagher, falecido há menos de um ano: “Perante os desafios da vida ou a pessoa passa por um processo de conversão ou permanece atolada em respostas herdadas.” Em face dos terríveis desafios colocados a Rodrigo ele escolheu o caminho do difícil processo de conversão. Oh, sim! Muito difícil! Quem viu o filme entenderá, mas quem leu o livro entenderá de uma forma muito mais intensa.

No filme Silêncio chegamos à conclusão de que Cristo é aquele se torna vivo connosco, que é nosso companheiro nos pântanos da nossa vida. Um Cristo vulnerável, compassivo, um Cristo que Se ajoelha diante de nós e que nos é exemplo para que nos ajoelhemos diante do outro, do pobre, do desesperado, do buscador de vida, do buscador de vida. Um Cristo que Se comove connosco e Se alegra connosco, um Cristo universal que está mergulhado no lodo de qualquer cultura e na profundidade do olhar de qualquer irmão. Um Cristo que é fraco com o fraco.

É bom que tenhamos em mente o verdadeiro Cristo, não aquele que tantas vezes – falo por mim –  transformamos na situação ou na pessoa que nos agrada. Assim, deixaríamos de seguir Cristo, seguiríamos um ídolo criado à nossa imagem ou criado à imagem daquele que veneramos.

Começar a partir da leitura, eu acrescentaria: continuar a partir do encontro. E o encontro com o Evangelho de hoje é precisamente esse caminho descendente. Caminho do desnudarmo-nos do nosso orgulho, da nossa autorreferencialidade, tal como fez Rodrigo, da nossa vaidade, tal como fez Rodrigo, da nossa prepotência, tal como fez Rodrigo. O “cairmos de nós abaixo”, uma expressão que eu escutei uma vez a um dos nossos bispos, “cairmos de nós abaixo”. A primeira leitura também apela à humildade. E como diz Paulo de forma contundente na segunda leitura: “Deus escolheu o que é louco aos olhos do mundo para confundir os sábios.” A lógica do Evangelho deixa-nos muitas vezes desconcertados, também o filme Silêncio, ou o livro Silêncio nos deixa desconcertados. E isso é bom. Tanto o Evangelho de hoje como o romance ou o filme Silêncio devem forçar-nos a refletirmos. Não esqueçamos: a fé é uma luta entre a dúvida e a esperança. É sempre uma luta entre a dúvida e a esperança, é nesta luta que vamos rasgando caminhos de luz.

Que esta seja, para cada um de vós, uma semana iluminada.

Pe. Adelino Ascenso, Domingo IV do Tempo Comum

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