Queridos irmãs e irmãos,

Ontem fui ao barbeiro e no final despedi-me dos que estavam lá a desejar bom ano, e foi interessante a reação de uma pessoa que me disse: “Olhe, eu do alto dos meus trinta e poucos anos há uma coisa que aprendi: se nós não tornamos os anos bons nunca teremos bom ano.” Eu parei, comecei a falar, claro não podia fazer um sermão ali na barbearia, mas comecei a tentar dizer: “Bem não somos só nós, não estamos sozinhos, há coisas que são a gratuidade da vida que vem ao nosso encontro, temos abrir um pouco o nosso coração.” Tentei dizer isto mas a pessoa estava muito fechada na sua lógica: “Não, se nós queremos pêras temos de subir à pereira, não há hipótese senão o trabalho que nós formos capazes de investir e fazer.”

Eu fiquei a pensar naquela conversa porque, por um lado, ele tem muita razão. É muito fácil nós fazermos votos de bom ano, nós descansarmos a bondade dos nossos anos sobre as costas de um incógnito ou sobre o poder de Deus como se nós não tivéssemos de fazer nada, tivéssemos só de respirar e depois tudo vai acontecer. Nós sabemos que não é assim. Evidentemente os anos tornam-se bons ou tornam-se melhores quando nós temos um projeto, quando nós estabelecemos um compromisso, quando nós como dizia a pessoa da barbearia damos o litro, isto é, quando nós damos tudo o que temos, quando nos tornamos dons, artesãos, fazedores. Mas, ao mesmo tempo, nós precisamos ou não de uma bênção? Nós precisamos ou não de Alguém que está para lá de nós? Nós precisamos ou não de uma experiência de graça? Nós precisamos ou não de Alguém que nos salve? Ou a vida, de uma forma muito prática e comezinha, como se pode falar dentro de uma barbearia, é apenas aquilo que nós conseguirmos fazer, senão estamos fritos, ninguém virá em nosso socorro?

E aqui é que se joga de facto o mistério da fé que é, no fundo, esta compreensão de que há uma missão reservada a cada um de nós. Cada um de nós tem de investir, tem de dar, tem de se entregar, tem de modificar, tem de sacudir as sandálias, tem de se pôr de pé, tem de se entregar à luta; mas, ao mesmo tempo, tudo é graça, tudo é dado, tudo é dom. A vida é conquista – certo, claro que sim e é importante dizê-lo. Mas a vida também é dádiva, a vida também é um mistério que nos visita, a vida também é a graça que se vem sentar a nosso lado, a vida também é aquilo que nós não sabemos explicar mas que acontece e que muitas vezes é a experiência decisiva, muitas vezes é a epifania e o milagre na nossa vida. A nossa vida avança numa linha reta, a nossa vida é uma linha, é. Mas também é feita de ruturas, também é feita de saltos, também é feita disso que só o exercício profundo da confiança nos pode fazer tocar.

Por isso, neste primeiro dia do ano, nós sabemos isto: numa mão temos a força da conquista que temos de fazer, dia a dia, hora a hora, plasmando o tempo, sendo nós os oleiros do tempo; mas a outra mão é a mão que recebe, é a mão que a vida vai encher, onde Deus vai colocar caminhos para vivermos – essa mão que é o milagre, essa mão que nos vai encher o coração de gratidão, essa mão que é o mistério de Deus que vem ao nosso encontro, essa mão que é o amor com que Deus em cada dia de uma forma incondicional nos abençoa.

Por isso, neste primeiro dia do ano nós lemos sempre essa maravilhosa bênção do Livro dos Números, com que muitas vezes terminamos a nossa celebração aqui dominicalmente: “Que o Senhor te abençoe e te proteja, que o Senhor te olhe com compaixão, desça sobre ti o Seu olhar com toda a compaixão e que o Senhor te encha de paz.” Nós precisamos disto, nós precisamos desta salvação, nós precisamos de um Salvador porque nós não somos a chave, a única chave da nossa vida. A vida não se resume àquilo que nós podemos fazer, nós precisamos de ser redimidos nesse encontro com o Outro e com todo o outro. Nós não nos demos a vida e não nos damos a vida, a verdade é essa. É na conjugação, é na rede, é na roda, é na dança que a vida surge, que as coisas mais importantes rebentam, nascem, florescem. E por isso, temos de abrir o nosso coração e precisamos sentirmo-nos abençoados.

É claro que quando uma pessoa me diz “Olhe, eu só conto com o meu esforço, não conto com mais nada.”, eu já tenho poucos cabelos e por isso sei também o que essa frase significa. Não é apenas uma tomada de posição ideológica, é uma ferida evidentemente. Uma pessoa que só conta com o seu esforço é uma pessoa que não está completamente feliz, que se sente só, que sente a ferida da solidão, sente o peso das coisas que não aconteceram, deseja mais mas não quer dizê-lo, não quer confessá-lo. E muitas vezes é essa a nossa situação, endurecemos, enrijecemos numa determinada posição porque alguma coisa nos dói ou porque muita coisa nos dói. E então, preferimos desacreditar. Mas nós precisamos de uma bênção, e a maior bênção é aquela que Jesus nos traz, aquela que Jesus é.

Jesus é o Filho de Deus que nasce homem, que toma a nossa condição, toma a vida de qualquer um de nós com uma missão, dizer-nos isto que S. Paulo diz tão bem na Carta aos Gálatas que hoje proclamamos: “Jesus faz-Se homem, para dizer que o homem é filho de Deus.” Para dizer que cada um de nós não é escravo, é filho. Isto é, sobre cada um de nós repousa a vida de Deus, o sonho de Deus, o projeto de Deus, a misericórdia de Deus, o amor de Deus de uma forma incondicional. E, como diz Paulo: “Se eu sou filho, também sou herdeiro.” Então, eu vou olhar para a vida não como uma madrasta que me rouba tudo, que me rouba os sonhos, que não me deixa ir mais longe, mas eu vou olhar para a vida como herdeiro. Vou sentir que o mundo é também construído pelas minhas mãos, mas o que eu recebo do mundo é incalculável, o que nós recebemos da vida é incalculável de bom, de alegre, de maravilhoso, de inexplicável. Nós somos herdeiros fundamentalmente. Claro que somos inventores, descobridores, mas verdadeiramente somos herdeiros porque quando nos sentamos à soleira, no fim das nossas conquistas importantes, nós percebemos que as coisas mais importantes – o ar que respiramos, o vento que sopra, o sentido do universo, estarmos aqui – não são coisas que verdadeiramente dependem de nós. Por isso sentimo-nos abençoados e é importante que esta verdade também nos cure porque nós precisamos de ser reconciliados. Apanhamos pancada aqui, cacetada ali, ferida acolá e depois a vida parece uma coisa cada vez mais estreita que ou fazemos ou nada acontece. Não, há coisas que não fazemos, há coisas que recebemos, há coisas que nos são dadas e a mais bela coisa que nos é dada é esta certeza de que somos filhos e que somos filhos amados de Deus.

Os pastores, quando olharam para o Menino da manjedoura, saíram a contar aquilo que viram e ouviram, Maria guardava tudo isto no seu coração e meditava em cada uma das palavras dos factos que ela assistiu. Nós também no Natal, que agora já vai caminhando para o fim como tempo litúrgico, o que é que levamos daqui para contar? O que é que nós vivemos, o que é que nós vimos, o que é que nós tocamos acerca do mistério da vida que nós vamos conservar no nosso coração e meditar nisso ao longo do ano? O que é que nós vamos contar, partilhar uns com os outros daquilo que vimos? Um Menino deitado numa manjedoura o que é que é para nós? O que é que isso significa?

Nós estamos a celebrar a Jornada Mundial de Oração pela Paz. São já 50 jornadas e, quando elas começaram, o Papa Francisco cita-o na sua mensagem, o Papa Paulo VI disse: “Agora para a nossa geração é muito claro: só há um caminho para o progresso, só há um caminho para o bem-estar na terra, esse caminho é a paz.” Aquilo que parecia claro há 50 anos hoje também para nós é claro. Mas, não é claro para nós todos ou não é claro sempre. A verdade é que a paz continua por cumprir, continua por realizar. Não só no nosso mundo com toda as convulsões, as aberrações, o mal, o mistério do mal perfeitamente injustificado à solta, a fazer vítimas, as atrocidades de que nós somos testemunhas e “vemos, ouvimos e lemos e não podemos ignorar”.

Mas ao mesmo tempo também a responsabilidade de cada um de nós. Dostoievski dizia: “Nós somos responsáveis por tudo diante de todos.” Deste clima de guerra, de medo também nós somos cúmplices, somos responsáveis. E como é que invertemos esta lógica? Transformando o nosso coração. Por isso, a mensagem do Santo Padre sobre a cultura da não-violência, sobre a atitude da não-violência é um desafio muito grande. Ele dá como modelos a Madre Teresa de Calcutá, o Gandhi, o Luther King, todos aqueles que fizeram grandes transformações pelas vias da paz, usando as armas do diálogo, a força que a paz, que parece frágil, é capaz de ter.

Às vezes também nós resolvemos a nossa vida de uma forma violenta, fechando a porta, dizendo a palavra, rompendo. E se calhar aquilo que seria mais fecundo, mais evangélico é de facto a cultura da não-violência. Nós precisamos erradicar do nosso coração a violência, trabalhar isso, porque violentos somos todos. Esse trabalho interior, essa pacificação, essa transformação dos maus sentimentos, da agressividade, do rancor, do ressentimento, mesmo da violência física isso tem de ser vencido dentro de nós, temos de fazer um trabalho interior para que a paz venha aos nossos corações. A paz que Jesus nos ensinou, Ele que viveu até ao fim, que deu a sua vida, que teve aquela morte e sempre de uma forma pacífica: “Não são vocês que me tiram, sou eu que dou.” Esta atitude de Jesus é para nós uma semente, um modelo, um paradigma de uma vida a ser vivida.

Hoje celebramos a solenidade de Santa Maria Mãe de Deus. Maria é para nós um modelo de vida. Aquela rapariga da Galileia tem tanto a ensinar-nos nas atitudes fundamentais da sua vida, na capacidade de dizer “Sim”, um sim a uma história muito maior do que ela, que jamais ela poderia conquistar, que jamais ela poderia fazer e ela abre as portas do seu coração a isso, assumindo que isso tem um custo, que isso se paga também em sofrimento, em compreensão, em solidão – ela assumiu essa história. E depois, a fidelidade que Maria vive em cada momento a essa história. Ela deve muitas vezes ter olhado para Jesus e não ter entendido nada, mas guardava isso no seu coração, guardava imagens, guardava palavras, pedindo a Deus que desse um sentido àquilo que ela via e não entendia, sentindo que tinha ela própria também de fazer um caminho para descobrir Jesus. Maria não é aquela que entende tudo logo, não, ela terá de ter feito um caminho duríssimo de compreensão progressiva do mistério de Jesus.  É também esse caminho que nós fazemos, um caminho progressivo de compreensão do mistério que nos visita.

Que Maria Santíssima seja, neste ano de 2017 em que celebramos os 100 anos de Fátima,  também aquela que acompanha cada um de nós. Que celebrar os 100 anos de Fátima seja também para nós uma ocasião para redescobrirmos a figura de Maria e que no silêncio desta mulher nós aprendamos os caminhos da nossa alma, os caminhos interiores do nosso coração.

Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus

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