Queridos irmãs e irmãos,
Nesta Festa de Cristo Rei nós temos como Carta de Paulo esta página da Carta aos Colossenses. É um texto curioso. A comunidade de Colossos era uma comunidade fundamentalmente constituída por pagãos, por cristãos que vinham de outra cultura, de cultura helénica, e que no fundo achavam que a salvação acontecia de muitas maneiras e que havia muitos mediadores da salvação. E Paulo escreve esta Carta aos Colossenses, que é uma carta que arranca precisamente com o chamado Hino Cristológico que nós ouvimos hoje nesta festa. É um hino que começa por dar graças a Deus, criar um ambiente de louvor mas depois tem dois núcleos fundamentais. O primeiro, dizer aquilo que Cristo é: dizer que Ele é imagem de Deus invisível, que Nele nós podemos ver aquele Deus que os nossos olhos de carne não veem, que Ele é verdadeiramente o mediador da salvação que o nosso coração espera. E depois, na segunda parte específica, conta o papel de Jesus Cristo na História da Salvação: dizendo que é por Ele que obtemos a paz, que é por Ele que obtemos a reconciliação, que é por Ele que obtemos a consciência de que somos filhos amados e que somos verdadeiramente irmãos, capazes de construir um mundo substancialmente, qualitativamente melhor.
É interessante esta confissão de fé, este credo que S. Paulo assina na Carta aos Colossenses. Porque, quem é este Cristo? Quem é Jesus? Como é que Ele emerge na nossa vida? S. Paulo no Hino Cristológico usa a metáfora da realeza. Cristo é o Rei, Cristo é o rosto, Cristo é o Senhor, é o Kyrios. Mas, como é que nós O vimos, como é que nós O reconhecemos assim? E reconhecemo-Lo assim nesta página escandalosa do Evangelho de Mateus, em que nós assistimos ao escândalo dos judeus, ao escândalo dos romanos que olham para Aquele pretenso Messias, suspenso numa cruz, na mais completa impotência, na mais absoluta inanidade. Incapaz de tudo, incapaz de um gesto, porque tem os braços presos na cruz, Este Cristo amarrado àquela morte terrível. Eles olham para Ele e troçam, e dizem: “Mas como é que é? Salvaste os outros, salva-Te a Ti mesmo. Se és Tu o Messias desce da cruz para nós acreditarmos em Ti.”
Essa impossibilidade radical de descer da cruz, esse absoluto despojamento, essa pobreza radical, esse quase absurdo de vazio, de sofrimento, de não afirmação é o único lugar que nós temos para perceber como Ele é o Rei, como Ele é o Senhor. Isto é, temos de converter o nosso olhar, temos de converter a nossa visão, a nossa perspetiva sobre o que é um reino e sobre o que é uma realeza para chamar a Cristo, Rei. Porque Ele é Rei mas pela vulnerabilidade, Ele é Rei pela impotência, Ele é o Rei pelo dom radical de si, Ele é Rei porque não pode salvar-Se a Si mesmo. Porque caminhou de olhos abertos para aquele momento da Sua vida em que não podia salvar-Se a Si mesmo. Não podia porque não queria, porque a Sua decisão fundamental foi de viver em amor até ao fim.
E quem vive em amor perde o pé. Quem vive no amor radical, no amor verdadeiro tarde ou cedo acaba por não ser dono de si mesmo, tarde ou cedo acaba por viver com os braços atados a uma cruz, tarde ou cedo acaba por viver nessa pobreza de não impor a sua vontade, de não impor a sua força, de não manifestar o seu poder. Mas, pelo contrário, de calar, de calar, de calar, de morrer, de esvaziar-se, de dar espaço, de oferecer-se no silêncio absoluto com que Jesus ofereceu a Sua vida.
E é assim que nós O contemplamos, neste silêncio, neste esvaziamento de Si que continua a ser para nós o grande sinal, continua a ser para nós o grande caminho, a grande lição. Uma vida de amor, uma vida feliz é assim, e não é de outra maneira. Cristo é uma sabedoria, a Cruz é uma sabedoria, é uma forma de conhecimento, “é uma nova ciência” como escreveu Sta. Edith Stein. É uma nova ciência a ciência da Cruz, é uma nova filosofia, é uma nova proposta de vida que Jesus faz, e que passa exatamente por isso: levar o amor até ao seu extremo. Levar o amor até àquele ponto sem retorno, sem retorno. E nós só somos príncipes do amor se estivermos disponíveis para dar a vida pelo amor. É aí que o amor nos coroa como seus príncipes, como suas princesas, como seus reis, como suas rainhas, como seus apóstolos, como seus símbolos. O símbolo do amor é aquele que se deixa destruir pelo amor, habitar a um ponto tal que o amor torna-se o lugar da consumação, o lugar da chama, o lugar onde a vida inteira é ali colocada. E não dividimos, não calculamos, não pomos nada para o lado mas concentramos tudo no amor.
É interessante o que nós liamos na primeira leitura. Israel era um conjunto de tribos, eles eram os clãs, as famílias, depois aquelas doze tribos cada uma da sua parte com a sua história, as suas divisões, as suas guerras, os seus ódios. E, a um dado momento, eles dizem: “Não, nós temos de superar estas divisões e temos de fazer uma confederação de tribos.” E a confederação é um gesto político mas também um gesto religioso que acontece como nós ouvimos em Hébron: as doze tribos vão ter com David e dizem-lhe esta coisa muito bela: “Tu és ossos dos nossos ossos, és carne da nossa carne, representa-nos, sê para nós um rei.”
Queridos irmãs e irmãos, neste dia da Festa de Cristo Rei é isto que nós dizemos, olhamos para a cruz e dizemos: “Tu, Cristo, és ossos dos nossos ossos e carne da nossa carne, representa-nos, representa-nos. Sê para nós um Rei, sê para nós um farol, sê para nós uma estrela, sê para nós um guia, sê para nós um pastor, sê para nós Aquele que nos conduz.” Ele está sempre pronto a estabelecer esta aliança connosco.
É muito bela a história do ladrão arrependido que, no cimo da cruz, naquele instante derradeiro volta-se para Jesus com este pedido: “Senhor, quando vieres na Tua realeza lembra-Te de mim, lembra-Te de mim.” É uma das mais belas orações que o Novo Testamento tem. “Senhor, quando vieres na Tua realeza lembra-Te de mim.” E Cristo responde-lhe imediatamente: “Hoje mesmo estarás comigo.” A nossa súplica é uma súplica atendida – as nossas orações, os nossos desejos, nem que seja pedir ao Senhor assim de uma maneira vaga, pouco expressa: “Senhor recorda-Te de mim, lembra-Te de mim.” E Ele lembra-se e garante que se lembra, e diz-nos: “Hoje mesmo estarás comigo.”
Esta força de Se tornar próximo da vida daqueles que O procuram só acontece pelo amor, pela radicalidade de amor que levou Jesus à impotência, à dádiva radical, à impossibilidade de salvar-Se a Si próprio. Porque, acima de tudo, Ele queria salvar o outro, Ele queria salvar-nos a nós. Jesus viveu assim uma vida de entrega.
Hoje ouvi uma definição de esperança muito bela que diz: “A esperança é o milagre de uma vida sem milagres.” Na vida de Jesus não houve milagres, Ele não foi poupado a nada, não houve milagres, a vida Dele foi um não-milagre. Mas foi também o grande milagre da esperança, o grande milagre da confiança e o grande milagre do amor: acreditar que a vida pode ser dada, a vida pode ser entregue e multiplicada, como acontece em cada Eucaristia.
Cristo, Tu que és ossos dos nossos ossos e carne da nossa carne sê para nós um Rei.
Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo
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