Queridos irmãs e irmãos,

Já tínhamos saudades de estar uns com os outros e é com grande alegria que recomeçamos este nosso ano pastoral, aqui na nossa comunidade da Capela do Rato. Queria dar as boas vindas a todos, dizer o quanto cada um é precioso nesta comunidade. Mesmo que não saibamos o vosso nome, mesmo que saibamos muito pouco das razões que vos trazem até aqui. É muito importante que cada uma e cada um se sinta verdadeiramente precioso, necessário, sentindo que este é o seu lugar, sentindo que esta capela existe e que o mistério que aqui se celebra existe para que cada um de nós esteja aqui, para que cada um de nós esteja a saborear, esteja a viver, esteja a participar.

Hoje, as leituras têm uma exigência profética porque nos lembram que sobre a vida de cada um de nós cai uma hipoteca social. Nós não vivemos apenas em função de nós próprios, das nossas paixões, dos nossos desejos, das nossas ideias, nós somos chamados a fazer da vida uma coisa maior. E, nesse sentido, é importante recordar que uma das nossas grandes tentações, um dos nossos grandes pecados é a autorreferencialidade. Isto é, nós somos o centro do mundo. O mundo existe em função de nós próprios. É esta a nossa grande ilusão, o grande equívoco que tranca as portas do nosso coração num enorme egoísmo. Nós precisamos de sentir que a nossa vida é chamada a ser uma vida dada, uma vida distribuída, uma vida repartida. Uma vida que só é feliz verdadeiramente se ela se consumar no amor, se ela se consumar numa relação de oferta, de gratuidade, de serviço. E o mundo precisa que nós façamos da nossa vida dom.

O profeta Amós critica as pessoas do seu tempo, os ‘bens-estantes’ do seu tempo, porque se banqueteavam, porque cantavam as suas canções. Porque, no fundo, viviam no seu condomínio de felicidade e esqueciam a ruína de José, esqueciam o sofrimento do irmão mais próximo. Este esquecimento, esta indiferença é alguma coisa que pesa no tempo de Amós e continua a pesar hoje nas nossas vidas.

Ainda a semana passada, na conclusão do encontro de oração em Assis, o Papa Francisco, no discurso final, falava do grande pecado do nosso tempo e que ele diz que é o grande paganismo do nosso tempo. Isto é, o contrário da piedade, o contrário da religião, o contrário da fé. E ele dizia: “O grande paganismo do nosso tempo é a indiferença, é a indiferença. Nós vemos o sofrimento do nosso irmão e, em vez de nos sentirmos interpelados, implicados, nós passamos ao lado como quem muda de canal, como quem se desresponsabiliza completamente daquela situação”.

Queridos irmãos, o Evangelho de Jesus tem uma clareza muito grande: nós não nos salvamos sozinhos, nós não nos salvamos procurando os nossos prazeres, nós não nos salvamos construindo muros de indiferença em torno a nós. Mas nós salvamo-nos escutando a voz de sofrimento dos nossos irmãos e indo ao encontro dos nossos irmãos. Nós salvamo-nos tornando a nossa vida uma história de amor, uma história de dom, uma história de compaixão. E isto acontece num tempo em que nós não podemos ser indiferentes à pobreza que grassa à nossa volta.

Ainda estes dias saiu um estudo sobre a desigualdade em Portugal, patrocinado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, e são impressionantes os dados que lá aparecem. No fundo, dizendo que um em cada cinco portugueses tem de viver com menos de 422€ por mês. Se calhar, a maior parte de nós que está aqui não saberia viver com essa quantia. Mas muitas famílias em Portugal, um em cada cinco, vive nessa situação. E como é que isso nos interpela? Como é que isso nos enche de um zelo, de um desejo santo de transformar, de ir ao encontro?

Para nós, cristãos, a pobreza não é uma abstração. É muito importante que cada um de nós se sinta chamado a ir ao encontro dos pobres. Para nós, os pobres são uma página viva do Evangelho que fica por ler na nossa vida se nós não formos ao seu encontro.

Eu lembro-me muitas vezes de um amigo meu que foi um alto quadro em organizações internacionais, um economista muito respeitado em Portugal e que fez uma obra sem dúvida muito meritória. Mas, quando ele se reformou da universidade, almoçámos, e ele disse-me: “ Eu só tenho a agradecer porque a minha vida foi uma vida cheia, mas eu tenho a plena consciência de que me falta uma coisa: falta-me ir ao encontro dos pobres”. E os últimos anos da vida dele ele dedicou-os, de facto, a ir ao encontro dos pobres.

Para nós, cristãos, é muito importante a amizade com os pobres, a amizade com os pobres. Não é só ser contra a pobreza, não é só fazer tudo o que está ao nosso alcance para encontrarmos os modos, as decisões, as políticas, as planificações que ajudem a combater este flagelo da pobreza e da desigualdade. Mas para além disso, cada um de nós sabe que os pobres são nossos irmãos. E por isso, cada um de nós deveria ter na sua vida um amigo pobre, a quem vai ao encontro, a quem reconhece pelo nome, quem dá tempo. Não apenas dinheiro e ajuda, claro que isso é fundamental, mas dá o seu tempo, envolve-se, dá voz aos seus problemas, fica sensibilizado pela situação muitas vezes de doença, de solidão, de falta de esperança em que as pessoas vivem. E este encontro, este encontro com o pobre é um encontro que nos transforma.

Aquele muro que, na parábola, separava o rico opulento do pobre Lázaro é um muro que continua presente nas nossas vidas, e que só é vencido quando nós tomamos a decisão de dizer: “Não, eu tenho de estabelecer relação.” Porque a pobreza não é uma abstração, a pobreza tem rostos, tem nome, tem histórias e nós precisamos de conhecer, nós precisamos de nos envolver. Não naquele sentido da caridadezinha, em que cada um tinha o seu pobre e, no fundo, tratava o seu pobre como quem trata um animal doméstico. Isso é absolutamente horrível. Mas é ir ao encontro dos pobres e ser capaz de olhar nos olhos, de estar perante um seu semelhante, ser capaz de construir uma história de amizade, uma história de presença à vida do outro. E isso é que verdadeiramente transforma.

Perceber a teoria é muito importante, perceber as análises sociológicas é fundamental, porque elas representam uma palavra profética, mas perceber o olhar do outro, sentir a sua vida, escutá-lo, estabelecer com ele uma relação, isso sim é transformador para aquilo que vivemos.

O Santo João Paulo II falava da “fantasia da caridade” e dizia, no início do século XX, que o século XXI seria um tempo novo se cada um de nós, nós cristãos, tivéssemos a “fantasia da caridade”. Nós precisamos de criar novas formas de caridade, pelo acolhimento, pela relação, pelo encontro, pela vitória sobre a indiferença, e o aumento, o aprofundamento da nossa consciência social.

Há tantas pessoas, tantos cristãos, que no silêncio das suas vidas dão exemplos extraordinários. Eu lembro-me na primeira paróquia que tive, havia uma professora reformada, ela dava metade da sua reforma para os pobres. Eu lembro-me de uma outra pessoa que era administradora de uma grande empresa, ela era visitadora da Conferência Vicentina. Ela gastava os seus sábados, todos os sábados, para recolher na paróquia inteira a oferta que cada um dava para a Conferência Vicentina. Às vezes as pessoas davam um euro ou davam meio cêntimo, que era aquilo que podiam dar. E esta mulher que dizia: “Eu dava do meu bolso 50€ ou 100€ para ter um sábado livre”,  empenhava o seu sábado para recolher a cada porta o fundo para a Conferência Vicentina. Isto também é uma dádiva de amor, acreditar que, todos juntos, podemos fazer alguma coisa. E argamassar esta responsabilidade que a todos nos une é fazer alguma coisa.

Outras pessoas que conheço, por exemplo, se vão de férias a um lugar qualquer, oferecem aquilo que gastam nas férias a uma instituição social, a igual quantia. Porque sentem que não podem ficar fechados em si. Têm de repartir, têm de partilhar, isto é a “fantasia da caridade” a operar.

Queridos irmãos, que o Senhor toque o nosso coração. A Palavra de Jesus é uma Palavra muito clara. Às vezes nós esquecemo-nos de onde vimos, esquecemo-nos de onde vimos. Por exemplo, no Antigo Testamento, que é aquilo que está presente na cabeça de Jesus quando ele fala, os pobres têm direitos, os pobres têm direitos. E a esmola, em sentido judaico, quer dizer em sentido bíblico, não é um favor que estamos a fazer a alguém. A esmola é uma restituição daquilo que lhe pertence. Porque, na conceção bíblica, toda a propriedade é de Deus. Por isso, se há um irmão que não tem absolutamente nada a esmola é um ato de restituição. E toda a tradição cristã, a tradição medieval, S. Francisco de Assis, Santa Clara, o grande debate dos Padres da Igreja era, no fundo, afirmar os direitos dos pobres.

É claro, nós hoje vivemos numa sociedade onde isto é um tabu, é um interdito falar destas coisas. Mas é destas coisas que nós somos herdeiros, não podemos esquecer. É deste pensamento do que é a vida e do que é a relação entre os Homens, neste aspeto de pobreza e riqueza, é daqui que nós vimos, é desta tradição que nós vimos. Por isso, cada um de nós tem de sentir como a si dirigidas as palavras que S. Paulo diz a Timóteo dizendo: “Guarda este mandamento sem mancha, e acima de toda a censura até a aparição de Nosso Senhor Jesus Cristo.”

Como é que nós temos guardado o mandamento do amor? Como é que nós temos guardado o mandamento da com-divisão, como é que nós temos guardado a pergunta que Deus faz no livro do Génesis: “Onde está o teu irmão?”

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXVI do Tempo Comum

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