Queridos irmãos e irmãs,
Nesta parábola do Filho Pródigo nós encontramos sentimentos e vivências que refletem amplamente a nossa própria vida. Tudo o que nos passa pelo coração está aqui nesta parábola. E está, sobretudo, o drama que são as relações humanas. São as relações humanas numa família, são as relações humanas entre amigos, são as relações humanas que vamos criando uns com os outros.
Há aqui tudo: a necessidade de liberdade do filho mais novo, os seus sonhos às vezes sem muito chão por baixo, o seu idealismo, a sua fantasia. Depois, também , a incapacidade de os consomar de uma forma correta e a adversidade, porque no país onde ele está também é ferido por uma grande fome e ele vai na enxurrada. Ele primeiro teve tantos amigos e depois está completamente só. O drama que acontece nas famílias da desunião entre os irmãos, a falta de fraternidade.
Depois aquele filho mais velho que, estando com o pai, também tinha expetativas que nunca se realizavam: “Nunca me deste um cabrito para eu festejar com os meus amigos.” Aquele ressentimento do irmão mais velho, a dificuldade de perceber a lógica da misericórdia, da compaixão.
No fundo, nós vemos no trânsito destas personagens o nosso próprio trânsito. Nós somos isto, somos habitados por esta mistura muito grande de sentimentos, de razões, de desrazões, de emoções, de coisas que dizemos, de coisas que calamos. E é esta complexidade humana que nós vemos presente na parábola do Filho Pródigo. Cada uma destas personagens, dos dois irmãos, tem uma grande riqueza interior e têm os seus limites.
O filho mais novo tem uma vontade de autonomia muito grande, e isso é normal. Cada um de nós para crescer também teve de se afirmar e tem de se afirmar como pessoa, tomar conta da sua vida, tomar nas mãos o seu destino, ganhar espaço, e é no fundo isso que ele precisa. Mas, ao mesmo tempo, ele faz tudo isto não em diálogo mas em rutura, ele precisa de ir para longe. Depois nós percebemos que ele quer toda aquela autonomia mas não está, de modo nenhum, preparado para ela, e então, na primeira ocasião, espalha-se completamente ao comprido, com aqueles amigos que ele escolhe, com o tipo de vida que ele tem. No fundo, ele acaba por cair na voragem de si mesmo e sem instrumentos necessários para construir uma vida sólida, ele experimenta o dissabor, a solidão, a miséria, a miséria interior profunda. E também a própria fome, porque ele queria comer as alfarrobas e ninguém lhas dava.
O filho mais velho é aquele que fica junto do pai, tem a expetativa de sucedê-lo, de ser o herdeiro da casa. Mas, ao mesmo tempo, não consegue realizar a sua vida, os seus projetos. O ressentimento que há nele, a dificuldade de ser livre, de ser desprendido, é uma coisa que nós olhamos dentro deste personagem.
Queridos irmãos, o Ano Santo da Misericórdia é um ano para também nos olharmos, para também fazermos o balanço daquilo que está dentro de nós, daquilo que nos habita. E dentro de nós não existem só coisas belas, só coisas luminosas, só coisas resolvidas. Não, dentro de nós há muitos sentimentos sufocados, há muita coisa que é preciso esclarecer, há muitos fios que ainda estão por ligar, há ressentimentos, há coisas por reconciliar, há coisas por perdoar. “O ministério da reconciliação de Jesus foi-nos confiado”, como dizia S. Paulo. Mas eu não sei até que ponto nós próprios já experimentamos em nós a reconciliação que Jesus nos dá como dom, como oferta. Até que ponto nós nos deixamos reconciliar, reconciliar profundamente, no mais fundo de nós? Iluminando a vida, tirando-a de debaixo do tapete, esta vida sempre submersa, sempre negada, nós podemos iluminar esta vida pelo amor, pela confiança, pela reconciliação que Deus nos dá.
No meio destas personagens, que à sua maneira nos refletem, refletem aquilo que nós vivemos, nós temos o exemplo do pai. E, de facto, o ícone da misericórdia, o critério da misericórdia é este pai. Este pai que tem dois filhos e percebe que, tendo dois filhos, os tem de tratar de forma diferente, tem de olhar para cada um de formas diferentes, mantendo um sentido de justiça, mantendo um sentido de verdade.
O filho mais novo vem-lhe pedir a herança. É um pedido estranho porque as heranças supõem a morte dos progenitores, mas ele em vida do pai já quer a sua herança. E, contudo, o pai, sem dizer nada, dá-lhe a herança. É interessante porque Jesus não perde tempo a explicar as razões: porque é que o filho quer sair de casa, porque é que o pai aceita aquele pedido. Não é isso que é importante. Mas o pai aceita o espaço que o filho precisa, o pai aceita o risco da liberdade do filho, aceita. Aceita como Deus aceita o risco da nossa liberdade, aceita que nós peguemos no que Ele nos dá e partamos para o mais longe possível Dele. E aceita a nossa possibilidade de errar, aceita o nosso engano, aceita a nossa miséria, Deus aceita, aceita isso.
Mas, ao mesmo tempo, o filho, quando volta, volta dentro da sua lógica. Porque ele partiu para experimentar a vida e, quando volta, ele volta um bocadinho por calculismo, para salvar a sua pele. Ele diz: “Eu estou aqui a passar fome, em casa de meu pai como servo eu consigo pelo menos matar a fome. Então vou para lá. Já não serei filho, mas serei um servo.” E ele não percebe que isso é impossível, mas o pai é aquele que lhe vem dizer que isso é impossível.
Quando o filho volta, o pai toma a iniciativa de correr ao encontro dele. E, mais importante do que o filho ter ido embora, é ele ter voltado, mais importante do que a rutura, é o regresso. O filho ainda está ao longe e o pai já vai ao seu encontro. Diz-nos S. Lucas: “Cheio de compaixão, foi ao seu encontro e cobriu-o de beijos.” Isto é, cobriu aquela vida incerta, miserável, tornou-a completamente amável. Aos olhos do pai, aquele filho não era o que merecia o castigo mas era o filho, era o seu filho. E, cheio de compaixão, foi capaz de o abraçar, de o reintroduzir em casa. E, de uma maneira que o próprio filho nunca esperava, foi para lá de todas as medidas, foi para lá de todas as expetativas.
Nós podemos dizer: “Este pai excedeu-se. Este pai é um amor excessivo, ele não devia tratar o filho assim. Ele devia dar-lhe um corretivo dos antigos, ele devia pô-lo à prova, ele devia fazê-lo pensar, pô-lo de quarentena. Dizer: «Agora pensa no que fizeste».” O excesso de Deus, este excesso da misericórdia tem um sentido. Nós dentro de nós temos muitas lógicas e teríamos muitas formas de reagir. Mas o que Deus nos diz é: “A misericórdia é uma arte necessária para salvar a vida, a misericórdia é um caminho que todos precisamos de aprender.” E não há misericórdia sem excesso, não há misericórdia sem excesso.
A misericórdia não é dar ao outro o que o outro merece, a misericórdia é dar ao outro o que o outro não merece. Mas dar por cima, dar além, dar muito mais, ir mais longe. Reintroduzir na festa quando o filho merecia ficar a pão e água, mas reintroduzi-lo na festa com o vitelo gordo, o anel no dedo, as sandálias nos pés, a túnica mais bonita. Este excesso de amor é que é a compaixão. Neste Ano Santo da Misericórdia nós perguntam-nos muitas vezes o que é a misericórdia. O que é que é a misericórdia? E a misericórdia não cabe numa definição. Não é dizer: “A misericórdia é isto.” Misericórdia é compaixão, misericórdia é bondade, misericórdia é perdão, misericórdia é colocar-se no lugar do outro, misericórdia é levar o outro aos ombros, misericórdia é a reconciliação profunda. É isso tudo. Mas é isso tudo também feito com um determinado estilo, que é o estilo do pai da parábola de Jesus. Não há misericórdia sem dádiva, sem doação. Aquele filho precisava ser curado, trazia tantas feridas.
Porque às vezes a gente julga os outros: “Ah, fizeste isto, mereceste isto, mereceste aquilo.” Está bem, mas o filho regressa como quem vem de uma guerra, todo estilhaçado da sua própria liberdade, mas às vezes a nossa liberdade despedaça-nos, às vezes a nossa liberdade dá cabo de nós. E é assim que o filho chega, maltratado, ferido, junto daquele pai. E se não há um excesso de amor que ajude a curar as feridas, que dê um outro horizonte, que seja uma alavanca, que seja um trampolim, o filho não podia entrar em casa pelos seus pés, ele tinha de ser levado ao colo pelo amor do pai. A misericórdia é isso, a misericórdia não é esperar que o outro faça o caminho, a misericórdia é carregar com o outro ao colo, com as suas feridas, as suas fragilidades, as suas vulnerabilidades e reintroduzi-lo na esperança, reintroduzi-lo na festa.
Por isso, não há misericórdia sem excesso. Se nós queremos ser pessoas moderadas, se nós queremos ser pessoas apenas justas, se queremos fazer o que está certo, nós seremos até boas pessoas, mas não conheceremos o Evangelho da Misericórdia. Porque o Evangelho da Misericórdia pede de nós mais, pede de nós um excesso de amor: que a gente seja capaz de abraçar a vida ferida, que a gente perceba tudo. Porque o pai não é estúpido, o pai percebe que aquele filho gastou tudo da maneira mais errada, o pai sabe tudo. E contudo, abraça tudo e cobre tudo com o seu amor. E cobrir tudo com o seu amor não é desculpar. Eu acho que esta experiência de amor, esta experiência de misericórdia é a coisa mais exigente da vida.
Aquele filho mais novo é um filho transformado, transformado pelo amor. Muitas vezes, na nossa experiência de liberdade nós aprendemos com as pancadas, aprendemos com as quedas, aprendemos com as repreensões, aprendemos com os limites, aprendemos com os “nãos” que nos dão. Isso tudo é muito útil, e muito necessário e aprendemos muito. Mas se quisermos ser sinceros nós temos de dizer que a nossa vida mudou quando nós ouvimos o “sim”, quando alguém nos disse “sim” e nos abriu a porta e começou connosco uma nova história. Nós precisamos dos “nãos” e crescemos com eles, mas precisamos do ”sim“ para tocar o mistério da própria vida. E isso é a misericórdia, é dizer um “sim” quando a partir daquele momento aquele filho só tinha a expetativa de ouvir um “não” para o resto da vida. E o pai dá-lhe este “sim” inesperado, isso é a misericórdia.
O filho mais velho também precisa ser curado, também precisa de misericórdia. E o pai vem ao seu encontro. É interessante porque o pai não diz: “Olha, está calado.” O pai dá dignidade à indignação do irmão mais velho, dá dignidade. E vai ouvi-lo, vai escutá-lo, sai à rua, sai ao seu encontro. E isso também é misericórdia, ouvir os outros até ao fim, ouvir a sua queixa, o seu lamento, o que eles não compreendem. Isso também é misericórdia. E é misericórdia uma das declarações de amor filial mais belas, que o pai diz ao filho mais velho: “Filho, tu estás sempre comigo e tudo o que é meu é teu.”
Se calhar, o filho mais velho também precisava de ouvir aquilo. Era uma coisa implícita, era lógico, o filho mais velho ia herdar, ele estava em casa, ele era o suporte do pai. Era natural que ele viesse a herdar. Mas ele precisava de ouvir aquelas palavras e as palavras que o pai depois diz: “Mas tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos porque este teu irmão estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi reencontrado.”
Mas “tínhamos de fazer uma festa.” Eles não tinham de fazer festa nenhuma, não tinham. Mas há um dever que a misericórdia nos faz descobrir: “Nós tínhamos de fazer uma festa.” Isto é misericórdia. Este dever que ninguém nos obriga, mas que é um dever que nasce do fundo, que nasce da esperança, que nasce do desejo de relançar a vida, que nasce da vontade de afirmar que a vida é mais importante e tem de ser vitoriosa em relação a todas as mortes.
Queridos irmãs e irmãos, nós estamos a viver este Ano Santo da Misericórdia. É um desafio muito grande porque cada um de nós é chamado a reencontrar-se com a misericórdia, e não é um encontro fácil, não é um encontro fácil. Quem acha que a misericórdia é fácil é porque nunca a viveu e nunca a deu, e nunca a experimentou. A misericórdia é das coisas mais difíceis, é das coisas mais exigentes. Mas não há vida sem misericórdia. Aqueles de quem nunca nos esqueceremos são aqueles que derramam no nosso coração a semente da misericórdia, os gestos da misericórdia. Que este Evangelho seja um evangelho praticado por nós, isto que S. Paulo diz: “nós somos embaixadores de Cristo.” Então, cada um de nós se sinta embaixador, embaixadora da misericórdia. Olhando para a sua vida e dizendo: “Neste Ano Santo, o que é que eu posso fazer? Como é que posso tornar santo este ano da minha vida?” Que o Senhor nos inspire.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo IV da Quaresma
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