Queridos irmãs e irmãos,
O imperativo que hoje escutamos na voz do Senhor é o convite que este tempo da Quaresma nos faz: “Entra no teu quarto e ora a teu Pai que está no segredo.”
“Entra no teu quarto.” Isto é, entra dentro de ti, entra no teu coração. Muitas vezes vivemos só à superfície, vivemos no rame-rame da vida, vivemos à pele os acontecimentos. Mesmo a espiritualidade é alguma coisa sobretudo de fora, uma expressão de gestos, de atos, de coisas que fazemos. A verdade é que a nossa vida interior vai definhando, vai perdendo a capacidade de inspirar a vida, vai ficando para quando tivermos tempo que nunca temos. Vamos perdendo a coragem de entrar dentro de nós, vamos desacreditando de nós, desacreditando de que é possível, de que vale a pena, de que Deus nos ama realmente e nos transforma, e acabamos por viver uma vida apenas superficial.
“Entra no teu quarto.” O tempo da Quaresma é um desafio a vivermos com interioridade o próprio tempo entrando dentro de nós. Não é entrar no quarto ao lado, no quarto do outro, na vida do outro. É entrar na nossa própria vida, olharmos para nós próprios, para aquilo que somos, para aquilo que vivemos. É que acontece muitas vezes que temos olhos para tudo menos para a nossa própria vida, porque exatamente a nossa própria vida é aquilo que nos custa mais ver. Temos consciência dos pecados, das fragilidades, das dificuldades de toda a gente (“Já viste este. Já viste aquela. E mais isto e mais aquele outro”) e da nossa própria vida nós não tomamos consciência.
“Entra no teu quarto.” Quer dizer: “Toma consciência da tua vida, da qualidade da tua vida.” Da qualidade espiritual, da qualidade de amor, da qualidade de generosidade, da qualidade ou não de misericórdia que tu vives. “Entra no teu quarto.” Isto é, escuta o teu coração, entra. E entra com esperança, porque não é apenas para ficarmos perdidos no nosso caos interior mas é para olharmos o Pai, descobrirmos o Pai, dentro da nossa vida descobrirmos que Deus é Pai, que Deus nos ama. E se Deus nos ama, Deus estende-nos a mão. Quando Pedro se estava a afundar nas águas e pediu: “Senhor, salva-me.” O Senhor estende-lhe a mão e é esse gesto que Deus faz a cada um de nós.
“Entra no teu quarto e descobre, redescobre que Deus é teu Pai e que Deus é uma presença de amor.” E porque Deus é Pai Ele assiste ao nosso parto, Ele assiste à reinvenção de nós mesmos, Ele assiste à transformação interior da nossa vida.
Nós estamos aqui porque precisamos de conversão, eu antes de todos, mas cada um de nós está aqui porque precisa de conversão. Não é por outra coisa, é por isso, porque precisamos de conversão. Não é porque o outro é isto ou porque o outro é aquilo, é porque eu sou assim. Eu preciso de conversão, eu preciso de transformação, eu preciso que a Palavra de Deus se torne mais autêntica em mim, preciso de maior verdade, de maior generosidade, de maior misericórdia, preciso de transformação. No tempo da Quaresma os cristãos entram para obras, isto é, para reparações, como uma casa de vez em quando precisa de um teto novo, precisa de um soalho, de uma porta, de uma reparação qualquer. Nós também precisamos de reparação, nas nossas costas devia haver uma tabuleta a dizer: “Para obras. Este está em obras.” É isso que nós estamos, estamos em obras e para isso cada um de nós tem de ter consciência do seu pecado e da sua limitação.
Queridos irmãos, o pior que nos pode acontecer é ignorarmos o nosso pecado, ignorarmos a nossa fragilidade. Por isso este tempo também é um tempo para tomarmos consciência do egoísmo, do desamor, do peso com que sobrecarregamos os nossos irmãos, das nossas omissões que muitas vezes são o nosso maior pecado. Tomarmos consciência disso mas tomarmos com esperança de quem sabe que Aquele que nos vê, Aquele que nos olha não é um impiedoso juiz mas é um pai misericordioso que nos estende a mão e diz: “Confia, acredita, o Meu amor é possível.” E então, este amor que nós recebemos de Deus é uma força que transforma a nossa vida, que nos coloca de pé.
Como é que vai ser este trabalho de reparação interior em que todos entramos? Vai ser um trabalho pensado, um trabalho consciente. Isto é, não pode ser: “Comecei a Quaresma, pronto. O que acontecer aconteceu.” Não, eu tenho de programar, eu tenho de entrar dentro de mim. Se calhar já entrámos, e temos de entrar porque neste tempo a gente tem de ter os olhos bem abertos para si mesmo. Sem ficar colados aos sapatos mas olhando para longe. Mas temos de estar atentos a nós mesmos, mas temos de ter um programa. Isto é, eu que me conheço, que olho para mim, o que é que eu posso fazer com a ajuda de Deus para transformar a minha vida?
Aqui de facto os três “P” ajudam muito: o que eu tenho de fazer é uma coisa pequena, não é uma coisa grande; o que eu tenho de fazer é uma coisa pessoal, não é uma coisa para os outros; e o que eu tenho de fazer é uma coisa possível, Deus não me pede o impossível, Deus pede-me coisas possíveis. Então, neste tempo de Quaresma era muito importante que cada um de nós tivesse dois, no máximo três propósitos. Dois ou três, não é preciso mais. Que fossem pequenos, pequenas coisas que estão na nossa vida, que estão ao nosso alcance combater, lutar, transformar. Que sejam coisas nossas, não vou combinar com o outro, não, sou eu que tenho de mudar, sou eu. E uma coisa que seja possível, uma coisa que realmente eu veja que com a ajuda de Deus eu consigo mudar.
Então, cada um de nós tenha estes dois ou três propósitos e vá caminhado, vá caminhado. Estes propósitos podem ser em três linhas, há um tripé no tempo da Quaresma. O jejum: muita gente, por exemplo, no tempo da Quaresma diz “Não como doces durante o tempo da Quaresma.” É uma coisa boa, é uma coisa que está ao alcance de nós todos. Ou: “Não tomo álcool.” Ou: “Fumo menos.”Ou “Como menos.” E depois há todo o outro tipo de jejum: vejo menos imagens, passo menos tempo sozinho na Internet a fazer não sei o quê, a evadir-me, falo menos da vida dos outros, vou tentar dominar esta coisa que é a minha língua que muitas vezes não tem controle algum. São formas de jejum. Se cada um de nós se comprometer num jejum é uma coisa tão pequena, parece tão pequena, mas depois é uma coisa que nos dá liberdade. Porque aquilo que nos acontece é que nós não temos liberdade face a um tirano chamado ‘eu’. Aquele que me sequestra é o meu próprio eu, que me escraviza, que me leva a fazer e a achar que não há outro caminho quando há tantos. Então, o jejum ajuda-me a libertar-me, a libertar-me.
O outro caminho é a esmola. A esmola quer dizer caridade, quer dizer misericórdia. O Santo Padre Francisco, na mensagem para esta Quaresma de 2016 em contexto de Ano Santo Jubilar, Ano da Misericórdia, desafia cada um de nós a redescobrir as obras de misericórdia e a fazer deste tempo da Quaresma um tempo muito especial de misericórdia, para descobrir o que é a misericórdia, para praticar, para fazer gestos de misericórdia. E isso tudo é uma esmola, é uma partilha de amor, é um ato da caridade divina do qual nós somos canais na vida uns dos outros.
E por fim, nada disso é possível se não for acompanhado da oração. A oração, no tempo da Quaresma, se a gente quer mesmo mudar de vida, se a gente quer mesmo que alguma coisa aconteça, acreditem, não acontece nada sem oração. A oração é a força que nos transforma, a oração é que prepara o nosso coração para a confissão, a oração é que faz sentir que nós não estamos sós, a oração é que nos impede de desistir, a oração é que nos faz levantar depois de termos caído. Por isso, a oração deve acompanhar a nossa vida e neste tempo da Quaresma ela deve estar ainda mais presente que nos outros meses do ano.
Nós celebramos o tempo da Quaresma quando esperamos a primavera. Hoje está assim um dia de chuva, mas nós sabemos que a primavera não está longe. E há a primavera que as árvores vão mostrando mas há sobretudo uma primavera interior, um rejuvenescimento da alma, uma juventude de coração que cada um de nós pode ganhar. “Pode um homem sendo velho nascer de novo?” Sim, pode nascer de novo pelo espírito, por esta transformação interior.
Queridos irmãos, que nenhum de nós fique parado, que nenhum de nós fique desmobilizado. Este tempo é um tempo para estar mobilizado e contar com a ajuda de Deus. É o amor incondicional que Ele nos dá que é a nossa alavanca, que é o nosso trampolim. É claro, os mais pequenos podem fazer umas coisas, os grandes podem fazer outras. A nossa penitência é uma coisa pessoal, muitas vezes é uma coisa entre nós e Deus, mas que seja verdadeiramente e cada um à sua medida faça alguma coisa. Este não é um tempo de boas intenções, a Quaresma é um tempo prático, é um tempo prático. É pouco, é poucochinho, pronto, mas faz alguma coisa, faz. Porque a fé é também um fazer, um praticar.
Vamos agora benzer estas cinzas, que é um sinal austero, é dizer ao Homem: “Olha, lembra-te que um dia vais ser cinza, e que tudo aquilo que tu achaste que era o maior isso tudo vai passar. Então, lembra-te disso não para entristeceres mas lembra-te disso para fazeres as escolhas certas, aquelas que não passam.” Vamos ouvir, quando recebermos a cinza na nossa cabeça: ”Converte-te e acredita no Evangelho.”Que essa palavra a gente a guarde no coração e dê hoje o primeiro passo.
Pe. José Tolentino Mendonça, Quarta-feira de Cinzas
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