Queridos irmãs e irmãos,

É muito forte este oráculo de Isaías, que nos apresenta uma imagem topográfica, geográfica. É como se fosse um movimento das terras. É como se fosse um aplanar, retirar altura aos montes, aplanar o próprio vale. Isto é: mover a terra da forma como nós a conhecemos para que toda a carne possa ver a Salvação de Deus.

Por trás do oráculo há esta convicção de que a Salvação de Deus se pode ver, que todos a podem ver. E que, no fundo, a nossa própria topografia, os montes que fazemos, os vales, os abismos, as colinas muitas vezes são obstáculos para que a Salvação de Deus se possa ver, se possa provar, se possa experimentar. E então este imperativo profético: “Preparai, aplanai, endireitai.” Este imperativo é em nome dessa convicção adventícia de que é possível ver a Salvação de Deus, de que é possível.

Mas isso passa por um refazer, um reconfigurar da nossa vida, da vida que nós diariamente construímos. Há uma reconfiguração que o Natal nos pede. Isto é: a vida de cada um de nós é também chamada a reconfigurar-se, a ganhar uma nova forma. Sermos um novo território com aquilo que já somos, com aquilo que caminhamos, com aquilo que possuímos mas darmos uma volta, constituirmos uma alternativa – é o desafio que o Advento nos deixa.

O Advento não é para confirmar, é para alavancar, para reconfigurar, para transformar a nossa vida. É muito significativo o modo como o narrador de S. Lucas dá um salto. Começa por aquele endereço histórico no tempo de Tibério, no tempo de Pilatos, no tempo de Herodes, no tempo de Filipe, no tempo de Lisânias, apareceu João Batista no deserto. Isto é: no tempo dos reis, no tempo do mundo formatado com a autoridade de todos os tempos, Deus aparece como um anúncio que é feito no deserto. Isto é: como uma alternativa, como num lugar outro, num ponto de fuga em relação à nossa vida.

Também naquilo que vivemos há um deserto. Isto é: há uma outra possibilidade, há um outro lugar a partir do qual podemos reconstruir a nossa vida. É muito belo que as leituras de hoje falam todas disso mas partindo de duas experiências diferentes.

O Advento pode-se viver como um regresso, como um regresso. É isso que nos fala o profeta Baruc. Israel está no exílio e Israel vai ser trazido para a terra. Então, nós, em cada Natal, somos arrancados dos nossos exílios e somos feitos retornar, somos feitos voltar ao centro. Nós todos sabemos o que é a experiência do exílio, todos conhecemos porque todos vivemos no concreto, na vida, uma situação de exílio existencial, de exílio interior.

Há aquele poema de Sophia de Mello Breyner Andersen:

“Numa disciplina constante procuro a lei da liberdade
medindo o equilíbrio dos meus passos.

Mas as coisas têm máscaras e véus com que me enganam,
e, quando eu um momento detida me esqueço, a força
perversa das coisas ata-me os braços e atira-me,
prisioneira de ninguém mas só de laços, para o vazio
horror das voltas do caminho.”

Todos nós sabemos o que é estar prisioneiro de ninguém. Prisioneiro de ideias, prisioneiro de fantasmagorias, prisioneiros de coisas não cumpridas, prisioneiros não da verdade mas só de laços no vazio horror das voltas do caminho.

Pois o Senhor faz-nos voltar e este é também um tempo para sermos resgatados do exílio e sentirmos que Aquele que vem, Aquele que nasce na manjedoura, este Deus feito homem resgata a nossa vida dos seus exílios, das suas prisões, traz-nos colo com a alegria, com a consolação. Porque a palavra que Baruc diz a Jerusalém é: “Levanta-te, levanta-te dos teus escombros, das tuas ruínas, olha, vê a glória de Deus.” Então, de facto, um modelo é sentirmos que temos de voltar. E se calhar cada um de nós no seu coração sente: “Não, eu tenho de voltar, eu tenho de reavivar a chama, eu tenho de voltar a ser, eu tenho de voltar a sentir, tenho de voltar a dizer «sim» com mais convicção.” Então é como que um acordar, como que um regressar a casa, o próprio Natal. Não a casa de uma infância idealizada, mas a casa que é o coração de Deus. Temos de voltar.

Mas há um outro paradigma que é dado pela carta aos Filipenses. A comunidade de Filipos é um caso interessante na história de S. Paulo, porque se calhar é aquela comunidade à qual Paulo ficou afetivamente mais ligado. Há ali uma história de amizade muito bonita. Os Filipenses ajudaram imenso Paulo de todos os pontos de vista. Paulo estava preso e os Filipenses fizeram tudo para lhe garantir o sustento, a proteção. Há ali uma bela amizade que se vê explicitada quando Paulo agradece aos Filipenses na carta que lhes escreve.

Mas Paulo diz uma coisa: “A fé que eu semeei em vós e que já mostraste provas tão importantes, ela ainda é uma semente. Então é preciso crescer, é preciso continuar a crescer. Por isso, peço que a vossa caridade cresça cada vez mais em ciência, em discernimento para que vos torneis dignos do dia de Cristo.”

Então, se calhar, além da imagem do regresso há também esta imagem do crescimento, há uma semente no coração de cada um de nós. A nossa relação com Deus, o nosso desejo de Deus, o sim que já dissemos a Jesus é uma semente, mas este é o tempo para crescer, este é o tempo para sentir: “Eu posso fazer mais, eu posso comprometer-me mais, eu posso conhecer melhor, eu posso crescer em ciência, em discernimento, em oração.” Este é o tempo do grande apelo a uma maturação da fé, porque Deus faz-se pequenino para que cada um de nós possa crescer e possa verdadeiramente acolhê-lo.

Mas estas duas imagens são imagens para aqueles que já estão dentro, para aqueles que já foram tocados pelo mistério da fé. Quer os que regressam dos seus exílios, quer aqueles que são chamados a desenvolver aquilo que já lhes foi dado. Já estão dentro, já foram tocados, já conhecem a Salvação de Deus, têm é de despertar, têm é de fazer mais, mas já estão dentro.
Mas há um outro modelo que o Advento não deixa de fora: são aqueles que ainda não foram tocados pelo mistério da fé e que guardam no seu coração a fome de Deus. É importante rezar por aquilo que Deus pode fazer no coração de cada homem, no seu mistério, acreditando nesta palavra que vem no oráculo do profeta Isaías e que se torna uma chave no Evangelho de S. Lucas: “Toda a carne verá a Salvação de Deus.”

Esta universalidade da Salvação é alguma coisa pela qual nós somos responsáveis, pela qual nós temos de rezar. Temos de sentir no nosso coração o desejo muito grande de que Deus possa, do modo como Ele quer, da maneira que só Ele sabe, da forma como só Ele pode, possa iluminar cada coração, cada vida. E rezar pelo mistério da fé que existe em nós e existe nos outros de forma sempre diferente, de forma sempre única, para que Deus possa, como diz S. Paulo: “Ser tudo em todos.”

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo II do Advento

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