Queridos irmãs e irmãos,

Esta manhã, em Roma, o Papa Francisco celebra a missa de abertura do Sínodo sobre a Família, que vai reunir 270 bispos do mundo inteiro, representando as igrejas do mundo, e vários peritos, especialistas, que vão assessorar os bispos, entre os quais dezoito casais.

Nós sabemos como este Sínodo é uma segunda etapa deste acontecimento que o Papa Francisco quis promover para aprofundar a teologia da família, o significado da família no mundo contemporâneo, e para pensar no interior da Igreja o que é a beleza da missão da própria família, ao mesmo tempo meditando sobre o modo como a Igreja há de exercer o seu ministério da misericórdia sobre as feridas, as vulnerabilidades, as fragilidades da própria família.

Ainda ontem o Santo Padre, na vigília na Praça de S. Pedro, dizia precisamente isso: “Este Sínodo é, por um lado, para todos termos mais claro a beleza da família. O que significa a família, a sua importância na história de cada um de nós, no futuro da Humanidade. A família é um laboratório do nosso futuro. Por isso a família tem de ser redescoberta, a família tem de ser celebrada na sua vocação e na sua missão. E ao mesmo tempo, termos uma atenção misericordiosa para com as fragilidades da família, as vulnerabilidades da família.”

E não há família que não seja atravessada pelo mistério da fragilidade humana. O Santo Padre dava como exemplo precisamente a família de Nazaré. José e Maria e Jesus, eles são o modelo da família. E é um modelo de uma família difícil, uma família com muitos problemas. Mas eles encontraram, na capacidade de estar uns com os outros, de se amarem, de se reconhecerem, de se descobrirem mesmo naquilo que não compreendiam uns dos outros, um caminho. Os Evangelhos dizem-nos, por exemplo, continuamente, que Maria e José não compreendiam o que Jesus estava a fazer. Mas aquilo que não se consegue compreender também é património da própria família, e é preciso amar e saber integrar isso.

De maneira que é uma etapa muito importante este mês de outubro, e nós somos todos chamados a rezar pelo Sínodo dos Bispos, a pedir o dom do Espírito Santo. Porque sabemos ao mesmo tempo como há as divisões e as dificuldades em encontrar um caminho comum que seja um caminho verdadeiro de comunhão.

E aí, de facto, a Palavra de Deus é uma palavra inspiradora para nós, porque Jesus tem uma palavra que coloca as coisas na sua verdade essencial. Reparem, segundo a Lei de Moisés, o homem, e só o homem, podia passar um certificado de divórcio para separar-se da mulher. Só o homem podia fazer isso. E não havia, no interior da relação conjugal, nenhuma paridade. Era uma sociedade patriarcal, quem mandava verdadeiramente era o homem. E quando fazem a pergunta a Jesus, Jesus estabelece uma paridade. Diz que o homem a mulher estão ao mesmo nível, estão numa equivalência no interior da relação conjugal.

E faz mais, retira o matrimónio da Lei. Não é a Lei de Moisés que decide sobre o matrimónio, mas Jesus vai à criação: Pergunta ao teu coração o que o matrimónio deve ser. Isto é, Jesus faz remontar à ordem da criação, ao gesto inicial do criador, o encontro que na família se vive. Essa é, de facto, a citação que Jesus faz do livro do Génesis que hoje nós lemos: O homem está no meio da criação, ele dá nome a todas as coisas, mas o homem sente-se só. Sente uma solidão fundamental porque o coração humano precisa de uma conjugalidade. E quando Deus interroga o homem, o homem diz a Deus que precisa de uma “ezer”. As traduções são sempre muito rebuscadas, desde “eu preciso de uma auxiliar” ou “eu preciso de uma assistente”. Mas, verdadeiramente, a palavra “ezer” o que quer dizer é “eu preciso de alguém que olhe nos olhos”. Isto é, o homem olha para a criação de cima para baixo, sente que é diferente dos animais, sente que é diferente das aves, mesmo tendo a missão de ser pastor de todas as coisas e não dominador. Mas o homem sente-se só porque precisa de alguém que olhe nos olhos.

E, por isso, a conjugalidade não é fruto de uma lei, antes de tudo é fruto de uma reivindicação, de uma incompletude que o homem vive no seu coração. Há essa imagem poética extraordinária em que Deus adormece Adão, e quando Adão acorda Deus coloca-lhe Eva, essa “ezer”, diante dele. Então ele diz esse que é um dos primeiros poemas hebraicos, e que é um poema de uma extraordinária beleza: “Esta é realmente osso dos meus ossos e carne da minha carne.” É um poema extraordinário porque mostra o ligame vital que a conjugalidade é chamada a exercer.

Mas nós sabemos, queridos irmãos, que no Cristianismo primeiro vem a dogmática e depois vem a moral. Primeiro vêm as verdades da nossa fé e depois nós temos de fazer uma hierarquia das verdades da nossa fé. A coisa mais importante é acreditarmos que há um só Deus que é misericórdia, que Jesus é o Seu Filho enviado, que Ele veio para dar a vida por nós e não Se envergonha da nossa fragilidade, da nossa imperfeição, do nosso inacabamento, e que nos enviou o Seu Espírito que vive no meio de nós, que vivemos em Igreja e caminhamos no tempo e na história. Esta é a verdade fundamental da nossa fé. A ética deve ser uma expressão, uma tensão, para vivermos na nossa vida concreta esta fé que professamos. Mas Deus leva-nos ao colo em todas as situações.

E por isso, o debate é apenas uma parte do sínodo porque o fundamental é descobrir, aprofundar, o sentido da família, o seu significado, celebrar a família no mundo contemporâneo – onde nós sabemos que é tão difícil porque toda a nossa cultura é uma cultura muito mais instantânea, muito mais precária, onde tudo parece durar o tempo de duração de um iogurte. A tendência é levar isso, também, para as relações mais fundamentais da vida. Nós sabemos como é preciso contrariar uma cultura que nos desumaniza, porque se o homem não é capaz de eterno, o homem não é capaz da sua humanidade.

Nesse sentido, há uma tensão que o cristianismo introduz na nossa humanidade que é importante que permaneça, mesmo que isso represente uma espécie de contra cultura, um ir contra a tendência dominante. Mas, ao mesmo tempo, nós sabemos como as relações humanas e a nossa própria humanidade são uma humanidade ferida. Ela própria é um enigma, ela própria é um mistério e, como sabemos, antes de tudo o que a Igreja tem de testemunhar é o rosto misericordioso de Deus.

Aqui nós temos de rezar, temos de rezar porque as feridas existem, nós não podemos enxotá-las para debaixo do tapete. Os problemas em relação à família são problemas concretos. Se calhar, o discurso de uma época não serve para outra época. E temos de viver com verdade, com autenticidade, este ministério de compaixão e de amor que Jesus nos manda, nos pede viver. Só assim somos fiéis a Jesus.

E nesse sentido, todo este esforço por reconhecer como uma parte significativa dos casamentos que se celebram catolicamente não são válidos. E não são válidos simplesmente porque as pessoas não estão preparadas para assumir, as pessoas não têm consciência do que estão a fazer. Casam cedo de mais, precipitam-se, não fazem um discernimento espiritual. É preciso também reconhecer que muitos casamentos falharam porque tinham tudo para falhar. E é preciso ir em socorro, é preciso perceber essa situação, e esclarece-la do ponto de vista do Evangelho.

Nesse sentido, esta agilização que o Papa Francisco faz da anulação do matrimónio, reconhecendo que o bispo local, o bispo de cada diocese, tem também um poder de juiz, e por isso os processos de verificação do casamento e da anulação passam a ser sobretudo diocesanos, na maior parte dos casos. Isso é um gesto muito importante da Igreja e de adequação à própria realidade. Quer dizer, a realidade é assim, é assim. E quando ouvimos as histórias de fracasso do matrimónio nós vemos aquele homem e aquela mulher que não tinham condições para viverem amplamente aquela missão que aceitam naquele dia, se calhar com a verdade que podiam naquele momento, mas não era a verdade capaz de sustentar as dificuldades e a complexidade de uma vida conjugal.

Por isso, é preciso ir ao encontro das vidas feridas, é preciso ir ao encontro com misericórdia. Nós sabemos que hoje a realidade, o fenómeno, a experiência, a condição da homossexualidade feminina e masculina ganhou nas nossas sociedades uma visibilidade que nós não podemos ignorar. As pessoas têm de viver e temos de escutar a voz das pessoas, temos de escutar o que elas vivem e temos de aprender, temos de acolher e temos de aprender, fazer um caminho com as pessoas. Porque, no fundo, nós muitas vezes pomos o dedo: “Este é este, aquela é aquela.” E nós ignoramos tanto da vida dos outros, do sofrimento dos outros… A verdade é que muitas vezes impomos cargas aos ombros dos outros que nós nem com um dedo as levamos.
Nesse sentido, temos de fazer silêncio e escutar. A Igreja também precisa de escutar, também precisa de ouvir a voz daqueles que muitas vezes não têm voz no meio de nós, e encontrar formas de diálogo, de acompanhamento. Isso é tão importante.

Aqui, na nossa comunidade, há uma experiência de cristãos homossexuais que se reúnem para rezar uma vez por mês na nossa capela. É tão importante dar esse espaço para que as pessoas rezem as suas vidas, para que as pessoas se confrontem com a palavra de Deus de uma forma que não seja para as julgar, para as condenar à partida. Mas, pelo contrário, para dizer que os homossexuais são nossos filhos, são nossos irmãos, são nossos amigos, são nossos companheiros de trabalho, são cristãos como nós, estão na nossa comunidade. Nós temos de encontrar um modelo pastoral, porque também é disso que se trata. Temos de encontrar um modelo pastoral onde a integração seja uma realidade mais vivida, e este ministério da compaixão que Jesus Cristo confia à Igreja seja um ministério praticado por todos nós.

Vamos por isso rezar ao Senhor, é uma hora muito importante da vida da Igreja este mês de outubro, não é um mês qualquer, é um mês importante, jogam-se coisas decisivas. O Santo Padre pediu aos bispos para falarem com liberdade. A palavra grega é uma palavra que vem muito no Cristianismo, que é “parrésia”. “Falem com parrésia”, isto é, falem com desassombro, falem com abertura, falem com verdade, digam o que pensam. Foi isso que o Santo Padre pediu aos bispos, aqueles 270 que estão ali, e pede à Igreja. Falemos com esta abertura, com esta simplicidade, com esta verdade para encontrarmos um caminho comum que tem de ser o caminho da comunhão.

A força da Igreja é a força da comunhão. Uma comunhão que se faz de diferentes ritmos, de diferentes experiências, mas uma comunhão que é um caminho comum à volta de Pedro, à volta daquele que é o que o Senhor colocou na linha da sucessão apostólica e que é o primeiro garante da unidade da nossa fé, da unidade daquilo que todos vivemos.

Queridos irmãs e irmãos, é assim um outubro muito belo este que temos pela frente, mesmo com a sua dificuldade, a sua cruz, mas onde é que há ressurreição sem se passar pela cruz?

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXVII do Tempo Comum

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