Queridos irmãs e irmãos,

Nós começamos a Palavra de Deus pela leitura do Livro dos Números, num texto muito curioso que tem a ver com uma teologia nem sempre dominante nas nossas perspetivas. Muitas vezes olhamos para a história como se o Espírito Santo fosse um monopólio de alguns, um dom especial que alguns têm. Muitas vezes, na forma de encararmos a história do mundo, a história da Igreja, o próprio presente, nós achamos: Ah, fulano é que tem o Espírito, aquele é que tem o Espírito, aquele outro é que tem o Espírito.

É interessante que esta teologia exodal dos Números faz eco. Diz-nos que o Espírito Santo é um dom muito democrático. Isto é, é repartido pelos setenta e dois anciãos de Israel. Isto é, o dom do Espírito Santo não é o dom apenas do sacerdote, ou não é apenas o dom do profeta, não é apenas Araão e Moisés que recebem o Espírito Santo. O Espírito é distribuído a todos os anciãos de Israel. E mais, aqueles que não estavam no momento da oferta, da grande oblação quando os setenta receberam ao mesmo tempo o Espírito e ficaram por alguma razão no acampamento, o Espírito Santo também desceu sobre eles para lá das fronteiras do Sagrado.

Isto dá-nos uma visão muito mais rica do que é a vida, do que é a história. Porque, de facto, o Espírito Santo está derramado em todos nós, sem exclusão. E, cada um de nós é chamado a viver a sua vida exercendo esse dom do Espírito Santo que está em nós.

A própria espiritualidade cristã fala continuamente, por exemplo, da paternidade espiritual, da maternidade espiritual. Não é apenas a figura do padre que tem o monopólio da paternidade espiritual. A paternidade espiritual é a forma como somos amigos uns dos outros, como estamos próximos, como somos capazes de dar um bom conselho, como somos capazes de escutar, de acolher, de abraçar, de corrigir, de avançar, de alertar. Tudo isso é a paternidade espiritual. É uma missão que todos nós somos chamados a ter na vida uns dos outros. Maternidade espiritual o que é? É a capacidade de acolher, a capacidade de ouvir, mas também é a capacidade de por a caminho, a capacidade de fazer ver as coisas de outra forma, de nascer, de perceber aquilo que é importante e aquilo que é acessório.

Esta tarefa, que é a tarefa de trazer o Espírito ao mundo, gerar no mundo o Espírito, é uma missão que nos é confiada a todos, sem exceção. E não é sequer apenas aqueles que estão aqui no momento em que o Espírito desce. Há pessoas que estão nos acampamentos dispersos que são o mundo e neste momento estão a receber o Espírito Santo como nós estamos a receber. E têm de fazer alguma coisa com Ele.

Ainda ontem o Papa (que está neste momento em Filadélfia para o encerramento do Congresso Mundial das Famílias) falou na catedral de S. Pedro e S. Paulo em Filadélfia, numa homília muito breve mas lembrando uma das santas daquela diocese, Santa Catarina Drexel. É uma santa contemporânea que viveu o grande momento da Revolução do Proletariado e o nascimento da Doutrina Social da Igreja. Ela foi a Roma quando jovem militante católica e teve um encontro com o Papa Leão XIII. Expôs ao Papa a situação dos E.U.A, como é que ela via as coisas. Depois o Papa Leão XIII, um homem exercendo a sua paternidade espiritual, faz-lhe a pergunta chave. E a pergunta chave é esta: “ E tu, o que é que estás a pensar fazer?” Esta foi a pergunta de que ela não estava à espera. E foi esta a pergunta o ponto de partida para uma vida toda ela transformada, toda ela habitada pelo Espírito.

É assim, nós somos ótimos no diagnóstico. Todos nós temos um diagnóstico sobre a nossa família, sobre nós próprios, os nossos amigos, a nossa sociedade, a política, este e aquele… Somos ótimos no diagnóstico. Mas tu, o que é que vais fazer? O que é que te propões fazer?

No fundo, é este apelo muito grande a cada um de nós ser profeta. E ser profeta não é apenas: Ah, mas eu não sei nada de exegese bíblica, como é que eu vou ser profeta? A profecia desenvolve-se nos campos mais diversos, e em todos eles é preciso profetas.

Por exemplo, S. Tiago: quando nós comparamos Tiago com Paulo parece que se está a comparar uma águia a uma galinha. Porque Paulo voa, Paulo sabe de teologia, Paulo vai para trás e para a frente no Antigo Testamento, Paulo inventa palavras. Paulo é um génio! Paulo é uma águia! S. Tiago parece que só anda ao rés da terra, parece que não consegue levantar voo. Lutero dizia que aquilo é a carta da palha, porque aquilo de teologia, quando nós vamos ali à procura de um grande pensamento, não encontramos. Mas a carta de Tiago é uma carta fortíssima do ponto de vista profético e é um grande manifesto de um cristianismo social. Na vida social o que é que nós podemos fazer?

Por exemplo, na forma como lidamos com o dinheiro. Como é preciso profetas na forma como se lida com o dinheiro! Porque nós sabemos como o dinheiro é por um lado importante, como ele é um instrumento necessário. Mas sabemos como o dinheiro se torna um deus, como o dinheiro ocupa o lugar do fundamental no coração. E sabemos como o dinheiro corrompe. Porque nós pensamos: aqueles que têm muito dinheiro chegam a um ponto e tornam-se generosos. Não, não se tornam. Porque o dinheiro dá vontade de ter mais dinheiro e depois é uma lógica infernal. É uma lógica infernal. E é preciso saber parar. É preciso saber sempre perceber como o dinheiro é um instrumento para uma vida protegida, para uma vida assegurada – “assegurada” entre aspas, “protegida” entre aspas, porque vivemos todos no desabrigo da vida, mas pronto, dá possibilidades de desenvolvermos tantas coisas importantes. Mas não é só aquilo, aquilo não basta. E, sobretudo, se for apenas para viver em função de nós próprios, para reforçar o nosso egoísmo, o nosso narcisismo, a nossa incapacidade de ir ao encontro dos outros, o dinheiro foi uma oportunidade perdida, foi uma oportunidade perdida.

E por isso, as palavras de Tiago são palavras muito fortes. Nós vemos na nossa sociedade, neste crash a tantos títulos que é vivido, nós descobrimos que o dinheiro serviu para quê, àquela pessoa? Não a tornou melhor pessoa, tornou-a um joguete nas mãos de paixões tão mesquinhas, tão vulgares. Para que é que lhe serviu aquilo? No fundo, essa pergunta, é uma pergunta para nós. Para que é que nos serve aquilo que temos? Para que é que nos serve? Que destino nós estamos a dar? Que finalidade?

Porque é preciso dar uma finalidade, e é preciso perceber aquilo que o Papa João Paulo II dizia muitas vezes: “Sobre os nossos bens recai uma hipoteca social.” Isto é, o que eu possuo não é só para mim. Eu tenho de perceber que uma parte é legítima, temos direito a isso, é bom, é um dom que Deus nos deu, que a vida nos deu. Mas não é para nos trancarmos nele, é para fazermos dele um caminho que tem de ser um caminho evangélico, tem de ser um caminho de amor. E tu, o que é que vais fazer? Nós precisamos de profetas neste campo. No campo da economia, no campo da vida social, no campo dos bens, no campo da gestão. Precisamos aí de profetas, de gente que seja capaz – precisamos de profetas na vida.

Hoje Jesus fala numa linguagem muito clara de como nós somos a nossa própria obra e como temos de ter uma transparência na nossa vida. Jesus quando diz: “Se a mão é para ti ocasião de pecado corta-a, se o olho é para ti ocasião de pecado arranca-o.” Não é para tomar do ponto de vista literal, não é para cortarmos a mão, cortarmos o pé e nos cegarmos. Mas é: corta aquilo que parece que é a tua mão, que tu consideras a tua mão, e no fundo te está a levar por um caminho de perda, de queda, de dispersão. Ser capaz de tomar decisões, é no fundo isso que Jesus está a dizer. Decisões humanas, decisões morais, decisões éticas que tornem a nossa vida alguma coisa onde nos reconhecemos, onde olhamos e percebemos que há uma coerência, que há um sentido.

É claro que isso é muitas vezes como cortar um pé. Por exemplo, em relação aos nossos vícios, apegamo-nos tanto a eles, seja um vício idiota qualquer que nós tenhamos, mas habituamo-nos tanto a ele como se fosse o nosso olho. É um terceiro olho, é um terceiro pé. E cortar aquele vício muitas vezes dói como se cortássemos a própria mão, mas é uma libertação. Podemos dar a volta ao mundo e voltar mas só há uma maneira de nos libertarmos: é aceitarmos morrer para nós próprios. Só há uma forma de liberdade, é alguma coisa política, mas antes de tudo é alguma coisa pessoal. Como é que eu vivo com liberdade a vida?

Não tenhamos dúvidas, não há liberdade sem desapego, não há liberdade sem morte para o próprio eu, não há liberdade sem relativização de si, não há liberdade sem deixar coisas para trás. Não há, não há. Se eu quero carregar tudo, eu fico amarrado àquilo.

No fundo isso que Jesus nos diz: “Sê profeta na tua própria vida, sacode a poeira, não fiques preso a coisas idiotas, coisas que não ajudam ninguém a crescer. Se calhar tu já percebeste isso mas é uma bengala que te dá jeito, mas se calhar a vida começa quando tu deixares isso.” É profetas assim, no concreto da vida, no concreto da história, que nós somos chamados a ser.
“Quem me dera que todos no meu povo fossem profetas.” Esse grito de Moisés é um grito para nós, para cada um de nós. Porque o Espírito é-nos dado abundantemente, abundantemente: e nós, o que vamos fazer?

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXVI do Tempo Comum

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