Queridos irmãs e irmãos
Nestes últimos quinze dias, como se aperceberam, não estive cá, estive em viagem pelo Brasil e pela Argentina. No Brasil tive um retiro com o clero da diocese de Belo Horizonte, Minas Gerais, é a terceira cidade do país a seguir a S. Paulo e Rio de Janeiro. É uma paisagem muito bonita, uma paisagem de montanhas. O Oscar Niemeyer, o arquiteto, diz que se inspirou para fazer aquelas curvas fantásticas da arquitetura dele na paisagem de Minas Gerais, que parece desenhada por um lápis muito fino.
Estive lá essa semana, primeiro trabalhando na universidade de Minas Gerais que é a maior do mundo. É uma universidade enorme para a dimensão das católicas, tem cerca de 60 000 alunos, tem 11 campos universitários diferentes, tem um magnífico museu de história natural e só para uma quantidade imensa de professores e pessoal administrativo. Nos primeiros dias estive a colaborar na formação anual que eles fazem, foi uma experiência muito bela de imersão naquela realidade.
Nesse domingo celebrei missa, há quinze dias atrás, celebrei eucaristia no santuário de Nossa Senhora da Piedade. É um santuário que fica num ponto muito alto do Estado, fica a 1 700 metros de altura, um lugar absolutamente deslumbrante, uma vista fantástica, um frio enorme porque lá é inverno. Uma coisa que me tocou imenso foi o despojamento do lugar. Às vezes os santuários têm aquele cinto de comércio que dispersa imenso o nosso olhar, às vezes as nossas intenções mais profundas. Ali era, de facto, um lugar onde se respirava, um lugar de Deus. Era muito bonito ver as pessoas dependuradas das varandas das esplanadas, lá de cima a olhar a paisagem, e aquele olhar era já uma forma de oração. A contemplação que fazemos do mundo, esta contemplação gratuita, admirativa da própria criação é também uma forma de oração.
Pude ali celebrar a missa com os peregrinos, às onze horas da manhã, e foi de facto uma experiência muito bela de comunhão, sentindo que a nossa língua portuguesa é um veículo de comunhão extraordinária, também com aquele povo. Foi uma experiência muito bela.
Depois, comecei o retiro com o clero da diocese. Foi muito bonito ver uma centena de padres, gostei muito de ver a serenidade da relação entre eles e a alegria com que estavam juntos, a verdade com que procuravam viver aquele momento de paragem a meio do ano pastoral e de procura de Deus nas suas vidas. Foi para mim uma experiência muito enriquecedora.
Gostei muito também da relação com o bispo. É um dos bispos auxiliares que é reitor da Universidade Católica de Minas, D. Joaquim Mole. É um homem que esteve à frente da comissão de direitos políticos e cidadania da conferência dos bispos brasileiros, e que tem lutado muito por uma consciência civil dos Direitos Humanos. Porque a Igreja brasileira é uma Igreja muito atenta aos problemas do país, muito interveniente. Ainda agora, em abril, acabaram de publicar uma nota sobre a situação económica no Brasil e as grandes disparidades, assimetrias. Um texto muito forte, muito profético. Foi também muito belo receber o testemunho deste bispo que está num compromisso muito fiel com o seu povo, sobretudo com os mais pobres.
Depois, no final do retiro, ainda tive oportunidade de ir visitar Inhotim, que é o principal centro de arte contemporânea no Brasil. É uma coleção enorme de arte internacional, e em grande medida brasileira, só que com um conceito novo, parece mais um mosteiro do que propriamente um museu. Há os pavilhões para cada um dos artistas, e depois há uma floresta luxuriante, e nós para caminharmos de um pavilhão para o outro (são onze pavilhões, não os consegui visitar todos) andamos no meio de uma floresta, num caminho de silêncio. É, de facto, uma maneira muito diferente de viver a relação com a beleza, a relação com a arte, e foi também uma experiência muito boa.
Depois dali romei para Montevidéu onde domingo passado celebrei missa na catedral. O Uruguai é um país pequenino no meio de dois gigantes que são o Brasil e a Argentina, mas é um país com uma personalidade muito grande ali na foz do Rio da Prata, que parece um mar imenso. Gostei muito de estar na catedral a celebrar a eucaristia com os “uruguachos”, como eles se dizem, um povo que mantém muito ainda as tradições camponesas, e isso é muito bonito, vê-los viver no seu lugar e exprimir a sua fé.
E depois, então, tive possibilidade de ir até Buenos Aires, e lá conhecer também a Igreja de Buenos Aires, os sítios por onde o Papa esteve, o Bairro das Flores, onde ele nasceu e cresceu, a catedral, e depois as paróquias. Ver o modo de ser Igreja naquele lugar é muito educativo, é muito belo.
E, de facto, a exterioridade tem isso, quando nós fazemos uma viagem ou recebemos alguém de fora parece que temos uma disponibilidade maior para acolher a profecia, para acolher os sinais. Isso é uma grande oportunidade que Deus nos dá, fazer uma viagem, ter um tempo de férias, conhecer outra realidade.
Mas o evangelho de hoje fala-nos do contrário. Fala-nos, às vezes, da nossa dificuldade de perceber na vida de todos os dias, e com os interlocutores que nos são mais próximos, perceber como Deus se manifesta, como Deus nos visita. Jesus visitou Nazaré, e lá fez vários sinais, mas porque Ele era o filho do tal e da tal, e porque Ele era o parente do outro e da outra, não o quiseram escutar. E isso para nós constitui um desafio muito grande que é: como valorizarmos, naquilo que é mais próximo, nas vozes que já nos são mais habituais, no mundo mais conhecido, no nosso espaço doméstico, na nossa vida quotidiana, como valorizamos o Deus que nos visita? E como manter o nosso coração aberto?
Porque, às vezes, o que acontece é que antes da pessoa abrir a boca nós já sabemos, já nem queremos ouvir, já percebemos tudo, ou achamos que percebemos tudo. E a verdade é que perdemos muito se trancamos o coração a este Deus que nos visita não só no extraordinário, mas que nos visita também no ordinário, na vida de todos os dias, e às vezes, no difícil dos dias, no difícil dos dias.
A história de S. Paulo, da Segunda Carta aos Coríntios que hoje nós lemos, é um texto verdadeiramente admirável porque Paulo estava em dificuldade. Ele escreve metaforicamente dizendo que era como um “anjo de Satanás que o esbofeteava”. Era uma situação difícil que ele estava a sofrer e, contudo, Deus diz-lhe: “ Mantém-te forte, descobre a graça de Deus mesmo no meio da dificuldade, mesmo no meio da crise.” Deus não diz: “Não, não estás a viver isso.” Não, estás a viver, a dificuldade existe, a dificuldade existe, a dificuldade existe, o problema está aqui. A questão é: “Conta com a Minha graça aí, no meio da tua dificuldade e no meio do teu sofrimento, a Minha graça revela-se.” E isto parece um oximoro, uma coisa que nunca se vai compreender, que é o oposto: a fraqueza e a força.
O que parece um oximoro torna-se o caminho da nossa vida: “Quando sou fraco, então é que sou forte.” Isto é: descobrir nesta experiência da fragilidade, da vulnerabilidade – que é no fundo uma experiência que todos temos de fazer, faz parte das nossas vidas, por uma razão ou por outra, em todas as idades nós fazemos esta experiência da vulnerabilidade – como torná-la também uma oportunidade para compreender melhor a presença de Deus na nossa vida, compreender melhor a graça de Deus, perceber que não é o fim mas há coisas importantes que se vivem também em ocasiões que são muito difíceis de suportar e de viver.
Como nos lembra o profeta Ezequiel: “Deus não desiste, Deus não desiste.” Nós somos visitados por Deus, Deus não desiste das nossas vidas. E não é a rebeldia, ou a dureza de coração, ou a nossa cabeça dura que impede Deus continuamente de enviar-nos a Sua graça, enviar-nos os Seus profetas que toquem o nosso coração e deixem uma palavra de esperança.
Vamos pedir nesta eucaristia que o Senhor nos dê por um lado o olhar para o extraordinário, para um desejo muito grande de ir além do nosso quintal, do nosso mundo. Mas também que Ele nos ajude a olhar para o nosso pequeno mundo, para a nossa vida de todos os dias, para o nosso universo habitual com os olhos de quem se deixa surpreender e tocar.
Que o Senhor não permita que sejamos impermeáveis em relação aos outros que nos estão próximos e à vida que vivemos, mas nos dê um olhar de quem olha a vida pela primeira vez, de quem repara nos detalhes, de quem mantém um coração muito grato, muito agradecido, por aquilo que em cada dia e com os interlocutores habituais da nossa vida recebe. Porque é sobretudo através desses canais que Deus nos fala. Que no fundo do nosso coração sintamos que Deus não desiste. Deus não desiste de manifestar o Seu amor, de manifestar a Sua ternura, de manifestar a nossa esperança, manifestar a esperança nas nossas vidas.
Vamos colocar no altar as razões da nossa gratidão. Hoje a nossa comunidade tem também a alegria de poder juntar-se em oração e ação de graças pelos 90 anos da Ester, agradecer muito a Deus a sua vida, tudo aquilo que através dela o Senhor tem feito chegar à sua família, aos seus amigos. Pedir que o Senhor a conserve na saúde e na graça. E agradecer o dom da vida de cada um de nós que é o lugar extraordinariamente expressivo do amor e da misericórdia do Pai.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XIV do Tempo Comum
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