Queridos irmãs e irmãos
É muito curioso o início deste passo do Evangelho de S. João, que hoje proclamamos. Há uns gregos que estão por ali, de visita a Jerusalém, peregrinos que ouviram falar de Jesus e tinham curiosidade por Ele. E foram falar com dois discípulos, que pelo nome percebemos que também teriam uma linhagem grega, eram dessa etnia: Filipe e André, nomes clarissimamente gregos. Foram ter com eles, que eram o seu contacto, e disseram esta coisa espantosa: ”Nós queríamos ver Jesus.” E um fala com o outro e vão ambos ter com Jesus e dizer: “Olha Senhor, há aqui gente que te quer ver.”
A questão que aqui se coloca, não só a quem pela primeira vez se abeira de Jesus, mas a nós que nos sentimos perto Dele, que sentimos que Ele é a referência central das nossas vidas, a questão que se coloca é: o que é ver Jesus? O que é ver Jesus?
Porque, olhar para Jesus, ouvir o Seu nome, repetir a Sua palavra, sentir que há uma proximidade, uma comunhão, isso cada um de nós, à sua maneira, ao longo do tempo vai experimentando de formas diversas. Mas, o que é ver Jesus? E será que eu já vi Jesus? Será que eu já despi as cascas, já deixei para trás o ruído, já fiz cair aquilo que são os pretextos, aquilo que são os arredores do rosto, e já olhei, olhos nos olhos, para Jesus? Será que eu já O vi verdadeiramente? No sentido de que eu já compreendi o Seu caminho, já compreendi a loucura e o escândalo da Sua Cruz? Será que eu já olho para a Cruz de uma forma completamente clara? No sentido de perceber a natureza do Seu gesto, a dimensão e as implicações do Seu gesto na minha vida?
“Senhor, nós queremos ver Jesus.” E se calhar, no nosso coração, de uma forma ou de outra, este desejo está muito presente, nós queremos ver Jesus. E é esse desejo que explica que, domingo a domingo, nos encontremos nesta circunstância, na cena litúrgica, para ver, tentar palpar o Seu rosto, tentar ir além das evidências, desterrar essa costura.
“Senhor, nós queremos ver Jesus.” Talvez esta seja a prece mais persistente, este desejo que não se apaga, esta inquietação por ver o Seu rosto. Talvez esta inquietação seja a nossa maior prece, a nossa única prece. Senhor, nós queremos ver o Seu rosto. E Jesus mostra-nos o Seu rosto.
Este caminho quaresmal que estamos a fazer, outra coisa não é do que uma aproximação do nosso rosto ao rosto de Jesus. Para olhá-Lo de perto, para vê-lo no detalhe, para perceber como Ele é semelhante e diferente do nosso. Para perceber como do Seu rosto irradia uma luz que torna o nosso rosto escuro e mal iluminado num rosto luminoso, transparente. A Quaresma outra coisa não é que nos avizinharmos, radicalmente, de Jesus. Para viver a Páscoa, que é o momento em que o Seu rosto se revela na Sua plenitude, na Sua inteireza, nós possamos acompanhá-Lo, vendo-o verdadeiramente. Não apenas as coisas a acontecerem, mas nós a olharmos para Jesus.
Queridos irmãs e irmãos: uma das críticas que outras Igrejas cristãs fazem aos católicos é que nos dispersamos muito. E às vezes essa crítica colhe, é verdadeira. Que nos dispersamos nos símbolos, nos ritos, nas imagens, nos santos, nos papas. Andamos um bocadinho dispersos e distraídos e ocupados com coisas que são de Deus, mas que não são o essencial. E perdemos de vista a centralidade crística que a nossa vida deve ter. Perdemos de vista este centro que nos deve atrair radicalmente com todos os traços da nossa história. Que é nos colocarmos, olhos nos olhos, com a figura de Jesus e com a pessoa do crucificado. Por isso, é também importante purificarmo-nos de uma religiosidade dispersiva. Que nos acorrenta a isto, nos faz acender velinhas àquilo e nos distancia da grande lição do Crucificado. Que é sempre nova, tem ressonâncias sempre atuais no nosso coração.
A palavra espantosa que Jesus hoje diz no Evangelho é uma palavra que nós nunca acabaremos de meditar e de colher o seu significado profundo: “Quando Eu for levantado da terra, atrairei todos a Mim.” E diz o evangelista S. João que Jesus falava da forma como havia de morrer. Claramente, quando Ele for levantado da Cruz, atrairá todos a Ele.
É interessante o verbo que Jesus utiliza: o verbo atrair. Porque o verbo atrair é um verbo de uma grande ambiguidade de sentidos, de uma grande abertura semântica. Atrair é uma coisa que nós ligamos ao desejo, ao erotismo, ao coração, à beleza, não tanto à razão. Às vezes sentimo-nos atraídos pelo que vemos, sentimo-nos colados, sentimos que há coisas no nosso coração, há desejos, há expectativas no nosso coração que, de repente, estão ali presentes e sentimo-nos puxados, puxados para ali. Então, este verbo – “Quando Eu for levantado da terra atrairei todos a mim” – quer dizer que a nossa relação com Jesus não é apenas uma relação racional, não é apenas esta compreensão que a grande ortodoxia nos faz dizer. Que Cristo é o Senhor, que Cristo é o Deus connosco, que Cristo é o Filho de Deus. Essas verdades do dogma sustentam a nossa fé. Mas não é apenas a arquitetura racional dos dogmas que nós somos chamados a viver na relação com Jesus.
Nós somos chamados a viver uma relação para cá e para lá da própria racionalidade. Uma relação que é afetiva com o próprio Jesus. Sentindo que Ele nos emociona, que Ele nos toca, que Ele é também o inexplicado de Deus que vem ao nosso encontro. Que Ele, sem nós podermos explicar como, sem nós podermos dizer porquê, Ele realiza tudo, mas tudo o que nós queremos da vida, que Nele nós vimos tudo aquilo que sonhamos.
É aquele poema tão belo da Sophia de Mello Breyner: “Vimos o lume aceso nos Seus olhos, e foi por o termos olhado que ficámos penetrados de força e de destino, Ele deu carne àquilo que sonhamos, e a nossa vida abriu-se iluminada pelas imagens de ouro que Ele viu.” E, de facto, é esta relação vital que nós precisamos de construir com a pessoa de Jesus. Isso não se faz sem abandono, sem silêncio, sem nos jogarmos – e a palavra é essa – sem nos jogarmos para os pés de Jesus. Sem nos atirarmos para os Seus pés. Se estamos com as nossas reservas mentais, as nossas seguranças, a manter o nosso campo, se queremos manter a respeitabilidade que cada um merece a si próprio, se cada um de nós quer manter apenas uma relação intelectual com a figura de Jesus, também é possível porque é uma figura absolutamente fascinante. Mas não é isso que nos é pedido. O que nos é pedido é que, por palavras, atiremos a nossa vida para os pés Dele, o que nos é pedido é que nos ajoelhemos em silêncio olhando para o Seu corpo, para o Seu rosto, para aquilo que, sem nenhuma palavra, apenas com o exemplo, Ele nos diz.
O importante é que cada um de nós se meta no meio na multidão, atrás Daquele que vai ser crucificado no Gólgota. O mais importante é que cada um de nós se sinta seu discípulo, discípula e que isso meta em perigo a nossa vida. Eu sou discípula, discípulo de um crucificado, de alguém que é um condenado. Mas é isso que me define.
Por isso, queridas irmãs e irmãos, a Páscoa que nós estamos perto de viver tem de ter uma intensidade na nossa vida. E é isso que nos transforma. O verbo que Jesus usa é um verbo poderoso – até pode parecer um bocado estranho, mas não: Jesus atrai-me, atrai-me no sentido que me enche de um amor, toca as cordas afetivas mais recônditas do meu ser. Faz-me estar com Ele, não tenho vontade de me distanciar, de me separar. E isso é um mistério da Cruz, é um mistério da Cruz. Sem esta dimensão que chamamos mística e cada cristão, cada cristã tem de viver, nós ainda estamos como os gregos que vieram ter com os discípulos a perguntar: “Senhor, faz-nos ver Jesus.”
Precisamos de mergulhar, mergulhar. E é desse mergulho que nos fala, de forma tão bela, a passagem do livro de Jeremias que hoje lemos. Ele diz: “Vai haver um momento em que…” A nossa fé é feita de muitas perguntas, de muito debate, de muita discussão, de muita coisa que não compreendemos, de muitas interrogações. E vai ser assim até ao fim, não tenhamos ilusões. Vai ser assim até ao fim. Porque nós somos incompletos, inacabados, nós somos entreabertos, nós não nos vamos realizar completamente aqui, nós vamos morrer com fome e com sede, nós vamos continuar a sentir o peso da nossa nudez. Isso é o que é o ser humano, esse é que é o enigma humano, isso é que nos torna a impressão digital do próprio Deus.
Mas uma coisa é certa: nós somos chamados a experimentar, a viver uma outra realidade. Como nos diz Jeremias, já ninguém tem de nos dizer: “Olha, vem aprender alguma coisa sobre Deus. Olha, vem estudar. Olha, vem ouvir falar sobre Deus.” Já não precisaremos de nada, porque todo o conhecimento de Deus estará inscrito no nosso coração. E isto é verdade, isto tem sido verdade na história da Igreja, na história dos crentes. Porque ao mesmo tempo precisamos de saber tudo e já sabemos tudo. Porque quando o Crucificado nos olha, o Seu olhar permanece em nós. Quando O Crucificado nos olha, o Seu olhar depois não nos abandona, ele continua impresso no nosso coração. E mesmo que nós depois nos sintamos em solidão, é uma solidão diferente, porque é uma solidão em que permanecem connosco os olhos de Jesus Cristo.
Pe. José Tolentino Mendonça, V Domingo da Quaresma
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