Queridos irmãs e irmãos

Todos os grandes acontecimentos da nossa vida requerem uma preparação. E quanto mais significativos eles são, mais uma preparação, um caminho eles pedem de nós. É verdade que o inesperado, a surpresa, também têm o seu lugar, mas se queremos tomar uma grande decisão, celebrar uma grande festa, realizar um grande encontro, o nosso coração e a nossa vida têm de preparar-se para isso. Preparação é a palavra deste arranque da Quaresma, porque Quaresma quer dizer isso. Quer dizer preparação para a Páscoa, para a grande passagem, para a grande travessia. Quaresma são estes 40 dias que são memória dos 40 dias que Jesus passou no deserto, segundo a narração evangélica que ouvimos. Mas também dos 40 anos que o Povo de Deus fez de caminho, de preparação, de reencontro consigo mesmo, até entrar na Terra Prometida.

Nós olhamos para a natureza à nossa volta, e sentimos que alguma coisa está a acontecer: as árvores estão mais verdes, sentimos que primeiro surgiram as flores amarelas, agora surgem as flores brancas, depois vão surgir as flores de todas as cores, e daqui a pouco o tempo já está a mudar. Sentimos que há uma temperatura diferente, mesmo se faz frio. Sentimos que a própria natureza se prepara para uma estação diferente. E esta preparação não pode ser apenas exterior a nós, não pode ser apenas um impulso, um anelo, um desejo que a natureza sente. A nossa vida também precisa de primavera, precisamos acordar o fogo debaixo da cinza, precisamos, também, depois do inverno, sentir que a nossa vida acorda para aquilo que é essencial. Porque, como dizia Tchekhov num dos seus contos, “O coração humano é um mar gelado, é um oceano gelado.” E pode acontecer que o inverno se prolongue na nossa vida. Numa indecisão, num deixar andar, numa incapacidade, no fundo, de descobrir e de habitar a própria vida, pode acontecer que a primavera, verdadeiramente, nunca chega, nunca rebenta em nós.
Nessa preparação para o grande acontecimento pascal, para esse levantamento, esse colocar-se de pé, essa espécie de insurreição espiritual que a Páscoa do Senhor prefigura na nossa própria vida, a Páscoa pode-nos encontrar perfeitamente desmobilizados.

Nesse sentido, a Quaresma é um tempo de mobilização interior, de uma forma muito simples porque tem de ser, porque também é de uma forma muito objetiva, de uma forma muito concreta que eu tenho de me por aberto àquilo que Deus pode fazer em mim. E, neste tempo da Quaresma, nós somos chamados, de facto, a calçar as sapatilhas, a nos colocar à estrada, a tomarmos a trouxa do peregrino, a sentirmos que nos temos de dar ao trabalho. A espiritualidade não é uma zona de conforto, é um caminho, é o desafio, é o desafio a uma estrada que nós temos de abraçar.

Os três meios que nos são dados, que nos são apontados, são meios muito simples, mas como dizia o Papa Francisco na sua mensagem, “São meios que formam o nosso coração.” E nós precisamos disso, formar o nosso coração na caridade, no amor, na esperança, na fé.

Por isso, o primeiro meio é a oração. Temos de nos tornar mulheres e homens para quem a oração é relevante, existe, cabe no nosso horário, está no nosso dia a dia uma oração que seja pessoal e também comunitária. Precisamos intensificar a oração. E intensificar a oração quer dizer apenas isto: intensificar a relação com Deus.

Porque a oração é sobretudo isso: relação. Não é cumprir um rito, não é dizer muitas palavras, mas é uma coisa de coração a coração, é sentir que a nossa vida, em cada dia, está diante do olhar de Deus, é sentir que é no diálogo com esse olhar que a nossa vida se constrói, que a nossa vida, dia a dia, responde às suas próprias expectativas.

Nesse sentido, somos chamados a um esforço de rezar mais, até porque a grande transformação da nossa vida é um dom de Deus, não é apenas um exercício de autocorreção, mas é, sobretudo, acolher o dom de Deus que nos transforma. Nós somos transformados pelo Espírito, não apenas pela nossa vontade. Somos transformados pelo Espírito e por isso é que aquilo que a nós nos parece impossível, Deus pode tornar possível em nós.

Aquelas transformações, que nós não vemos como podem acontecer, Deus permite que elas se realizem em nós. Mas precisamos abrir o nosso coração a essa chegada de Deus, a essa vinda de Deus à nossa vida, através da oração. Tal como o ferro só se dobra a altas temperaturas, e fica como que mole, nós também só atingimos graus de amor, de esperança, de fé nas altas temperaturas da oração – que não tem de ser uma oração especial, que eu não sei fazer, não.

Deus está perto da nossa boca e do nosso coração. Cada um de nós há de encontrar a sua própria oração, o seu próprio caminho, o seu modo de rezar, o seu modo de relacionar-se com Deus, de dizer: “Senhor, eu estou aqui. Senhor, vem. Senhor ajuda-me.” E não dizer mais nada. Neste silêncio, neste eu olho para Deus, Deus olha para mim, crio o espaço para que a comunhão, a comunicação, a relação, verdadeiramente aconteçam. Por isso, que este tempo de Quaresma seja um tempo para descobrir o vigor da oração, a novidade da oração nas nossas vidas.

Depois nós temos o caminho do jejum. E o jejum é um caminho de privação. Nós temos, por vezes, um sentido crítico muito apurado em relação a todos, exceto em relação a nós próprios. Somos capazes de ver o argueiro, o pequeno mato, no olho do nosso irmão, mas não vemos a trave que esconde a nossa própria vista. Nesse sentido, o jejum desenvolve o sentido crítico, porque diz assim: “Eu até tenho direito a isto mas não vou fazer. Ah, mas apetece-me.” Mas eu retraio-me perante aquilo que me apetece, para que o meu eu também não se torne tirânico, não seja caprichoso mas possa seguir uma linha verdadeiramente fundamental. E isto em relação à comida, às coisas que nos dão prazer, mas em relação a tantas outras dimensões da nossa vida, que nós podemos encarar assim, desde a nossa forma de comunicar com os outros, a nossa língua, a facilidade com que falamos dos outros, mas também a dispersão do nosso tempo, o consumismo. Que, de facto, o jejum introduza dinâmicas de sobriedade, que é o mais importante na nossa vida, dinâmicas de frugalidade. Aprender e treinar-se a viver do essencial, é isso que o jejum significa. Neste tempo da Quaresma, todas as sextas-feiras nós somos chamados a fazer abstinência, a não comer carne. Isso também tem um sentido espiritual, porque a carne dos outros seres que nós comemos é derramar sangue, é dizer: “A minha vida é mais importante que as outras vidas.” E pronto, essa é uma decisão. Deus colocou-nos no centro da criação, mas é preciso também temperar a nossa voracidade e o modo mecânico como nós achamos que temos direito a tudo. Por isso, o não comer carne às sextas-feiras é fazer-nos pensar, é dizer: “Eu não quero derramar sangue, eu se calhar posso viver uma vida mais simples, uma vida mais pobre. Posso viver uma vida mais pobre e isso em mim abre espaço para uma riqueza espiritual muito maior.” Por isso era tão importante que, de facto, também a nossa dieta expressasse o tempo da Quaresma que estamos a viver.
E por fim a esmola. A esmola é o encontro com o irmão, nós sermos capazes da condivisão, sermos capazes da partilha. Da partilha do nosso tempo, da nossa vida, porque o verdadeiro dar é dar-se, é dar-se, não é apenas dar uma coisa, é dar-se, estar disponível, estar aberto, ir ao encontro dos outros, e sobretudo do outro que me é mais difícil, que me custa mais. Mas ir ao encontro e estabelecer formas de relação, e também efetuar isso numa partilha material, numa partilha de dons, para que não fique só uma coisa abstrata mas que, de facto, toque todas as dimensões da nossa vida.

Queridos irmãos,

Neste tempo da Quaresma era muito importante que cada um de nós tivesse o seu programa de vida, e em cada uma destas dimensões – oração, jejum, esmola – nós tivéssemos um ponto de esforço, um ponto de caminho, para podermos ir trabalhando. Um ponto que seja pequeno, porque não são grandes coisas que nós podemos fazer e, às vezes, o idealizar é uma espécie de fuga da própria realidade. Uma coisa pequena, que esteja ao nosso alcance, que nós sintamos que conseguimos, realmente, fazer. Claro, com esforço, com decisão, com combate, mas que está de facto ao nosso alcance. E que seja pessoal, não vamos fazer planos para os outros fazerem, para todos fazerem na nossa casa, mas vamos, com muita humildade, traçar um plano de vida, nesta Quaresma, que seja de facto só para nós, mesmo que também outros ao nosso lado também estejam a fazer uma coisa semelhante, mas que nos envolva de facto a nós. Porque, com muita facilidade, achamos que é o outro que precisa, e a Quaresma ajuda-nos a perceber que somos nós que precisamos de revitalizar, de revitalizar. Porque, se calhar, nem nos damos conta como o inverno tomou conta do nosso coração e precisamos desta primavera, que a Páscoa de Jesus acorda na nossa vida.

Jesus preparou-se antes da sua missão. Esteve aqueles 40 dias, e esses 40 dias não foram um passeio. Nós não pensamos: “Ah, vou tomar esta regra de vida, fazer isto, tentar fazer isto, aquilo, e aquilo.” e depois vamos mesmo conseguir. Não, nós dizemos aquilo e depois vamos para a luta, caindo, levantando, esmorrando, tentando, não conseguindo, conseguindo. Jesus esteve neste debate com o Demónio, sendo tentado, mas “Os anjos serviam-no”.

Que nós sintamos que Deus vem em socorro da nossa fragilidade, que Deus vem em socorro da nossa vida vulnerável, e que Ele é capaz de dar consistência espiritual à vida que cada um de nós vive. A Palavra do Senhor é uma palavra forte, exigente, comprometedora, mas também é uma palavra libertadora. Também nós precisamos de liberdade, de libertação. Tanta coisa nos escraviza. Estamos prisioneiros, capturados por tanto egoísmo, tanto individualismo, tanta condescendência, tanta facilidade, tanta autocomiseração. Estamos capturados por tanta coisa que temos de sacudir. A Palavra de Jesus é uma palavra que nos liberta, que nos liberta. Quando Ele diz: “Cumpriu-se o tempo,” e “Está próximo o Reino de Deus, arrependei-vos e acreditai no Evangelho” esta é uma palavra para fazer mulheres e homens novos.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo I da Quaresma

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