Queridos Irmãos e Irmãs
Estes domingos, estes três domingos do meio da Quaresma, nós lemos o Evangelho de São João. Evangelhos desde a antiguidade cristã, destinados a explicar aos catecúmenos e a lembrar aos batizados, o significado do seu batismo.
Domingo passado tivemos a explicação do símbolo da água, com o Evangelho da Samaritana.
Este domingo, temos a explicação do símbolo da luz, com a cura do cego de nascença. No próximo domingo, teremos a explicação do símbolo da vida com a ressurreição de Lázaro.
São assim, três grandes símbolos: a água, a luz, a vida que explicam aquilo que é o impacto do dom de Jesus na vida de cada um de nós. Nós precisamos da Luz. Nós precisamos da Luz.
É interessante a situação que o Evangelho de São João nos relata, com a cura deste cego de nascença: há a cura do cego e há depois uma querela jurídica para saber se Jesus tinha ou não legitimidade, para fazer aquele sinal. E depois há o reencontro, o segundo encontro de Jesus com o cego.
O que é que nós vemos nas duas primeira partes, na cura do cego e na querela jurídica que se lhe segue? O cego tem consciência que é cego. Isto é, tem consciência da sua carência, da sua necessidade, da sua real situação.
Aqueles que promovem a querela em torno à cura e à legitimidade de Jesus curar ou não em dia de sábado, veem e não veem ao mesmo tempo, mas não têm consciência da sua cegueira.
E, no fundo, este é o ponto primeiro que o relato evangélico nos coloca:
Será que nós temos consciência da necessidade de Jesus? Será que nós estamos conscientes de quanto precisamos Dele?
Porque às vezes o nosso problema, e foi esse o problema dos fariseus, é perdermo-nos numa autojustificação. Isto é, nós temos explicação para tudo, sabemos tudo, percebemos tudo, vemos tudo, e nesta soberba, Deus não entra no nosso coração porque o nosso coração é pedra, o nosso coração é porta blindada, o nosso coração é um fecho de correr.
Só quando estamos conscientes da nossa fragilidade, e da nossa fraqueza, só quando percebemos até ao fim e até ao fundo, quanto carentes estamos do perdão, da misericórdia e da ternura de Deus é que, de facto, essa misericórdia é derramada nos nossos corações.
Ganhar consciência de que precisamos de ser tocados por Jesus, ser lavados no seu sangue, na água batismal, ser iluminados pela sua luz.
O que é receber a luz, o que é passar a ver? É ganhar uma nova visão das coisas.
Os Evangelhos têm muitas curas a cegos. E essas curas têm um papel simbólico muito importante. Porque a cegueira tem a ver com a nossa maneira de viver. Às vezes nós estamos cegos mas não temos consciência disso. Achamos que continuamos a ver. É uma imagem que já Platão utiliza na Alegoria da Caverna, i.e., nós pensamos que vemos, mas afinal estamos reféns das imagens e dos fantasmas.
Precisamos de ganhar uma nova visão. E essa nova visão, esse novo entendimento, essa nova maneira de compreender as coisas, é a luz que Cristo nos dá.
O Evangelho de São João tem uma particularidade em relação aos outros 3 Evangelhos.
É que, enquanto os outros três foram escritos para pessoas que ouviam pela primeira vez falar de Jesus, digamos, são os Evangelhos do primeiro anúncio, pensa-se que o Evangelho de São João foi escrito para pessoas que já eram cristãs e por isso não se tratava de aprender o b-a-ba sobre Jesus, o início, mas trata-se sim de um segundo encontro, de um aprofundamento da própria fé.
E, por isso, é muito interessante que no Evangelho de São João, as personagens não aparecem uma só vez, aparecem várias vezes, duas ou três vezes. Por exemplo, o Evangelho da Samaritana, ela aparece-nos a falar com Jesus mas depois aparece-nos a falar com as pessoas da sua terra. No Evangelho de Nicodemos, ele aparece-nos à noite a falar com Jesus mas depois aparece-nos com José de Arimateia a perfumar o corpo de Jesus e a sepultar Jesus.
As personagens não aparecem uma vez só, aparecem uma segunda e uma terceira vez.
Também assim com o cego. Ele era mendigo, era cego, foi curado.
Foi curado, mas acreditava que tinha sido um profeta. Não que era o Messias de Deus que o tinha curado. E então, depois daquela querela toda, Jesus encontra-o pela segunda vez.
E diz-lhe: “Acreditas no Filho do Homem?”
E ele pergunta: “Quem é Senhor, ainda não o vi”. Quer dizer, a cura não é apenas a cura da cegueira, é a cura é de uma cegueira espiritual.
E Jesus diz uma coisa absolutamente comovente, conjugada no verbo presente: “É este que fala agora contigo”. E o homem cai de joelhos, e diz: “ Senhor, eu creio”.
Queridos irmãos,
Nós estamos a viver o Tempo da Quaresma, nós já somos cristãos há um ano, há cinquenta anos, há mais ou menos tempo. Hoje temos aqui três irmãos nossos catecúmenos que se estão a preparar para receber o batismo no tempo pascal.
O que é verdadeiramente para nós o segundo encontro com Jesus?
O segundo encontro com Jesus é recebermos a luz de uma maneira nova.
A Quaresma tem que ser um sobressalto. Tem de nos tornar mais cristãos, melhores cristãos. Tem de nos dar uma compreensão mais lata do mistério de Cristo e do mistério do próprio homem e do mistério da vida.Com Cristo aprendemos uma nova gramática, um novo dicionário, um novo léxico da própria realidade.
Se, antes da Quaresma pensávamos uma coisa, ao chegar à Pascoa o nosso olhar tem que estar lavado. Em Itália, há uma tradição muito bonita, no Véneto, que é na manhã de Páscoa as pessoas vão ao rio lavar os olhos. E nós estamos aqui a lavar os nossos olhos, com esta palavra. Isto é, a lavar o nosso entendimento. A receber esta luz que é o próprio Cristo.
E receber a luz, implica muitas vezes, ver as coisas de uma forma completamente diferente.
Por exemplo, a 1ª leitura, a escolha de David como rei. Este homem, Jessé, tinha doze filhos e naturalmente o que podia ser rei era o mais velho, e no impedimento do mais velho, o filho segundo. Mas Deus vai escolher aquele que nem está em casa. Vai escolher o mais novo, aquele que, do ponto de vista jurídico, não tem direito algum. E Deus vai escolher o mais improvável, que é aquele rapaz chamado David. Deus escolhe o mais improvável, o mais pequenino, aquele que não se espera, o que não está legislado, o que nos surpreende, que não tem a ver com o nosso ponto de vista. Deus escolhe. Deus escolhe fora do nosso baralho e para lá das nossas contas.
E receber a luz de Cristo é nos abrirmos a um novo entendimento. No fundo, nos abrimos às surpresas de Deus. Ao desconcerto do modo como ele atua. À liberdade de Deus ser Deus em nós. À sua vontade que é sempre nova. Nos abrirmos. Nos abrirmos.
Que hoje nos sintamos como o homem cego. Este homem o qual Jesus tem misericórdia e cura, a quem lava os olhos, e a quem diz uma palavra. A quem encontra uma vez e uma outra vez. Uma segunda oportunidade, para lhe dizer: “Acreditas no Filho de Deus?”. Ele é aquele que está a falar connosco neste momento. O que Jesus diz ao cego, diz a cada um de nós : “Sou eu que estou a falar contigo, agora, agora”.
Homilia do Pe. Tolentino Mendonça, na Capela do Rato, a 30 de março de 2014
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