Há uma escultura de S. Francisco de Assis no Monte Alverne, Itália, em que ele está deitado na terra, a olhar. É uma imagem da santidade. A capacidade de se deitar a olhar, a ver, a reparar, a respeitar – olhar outra vez. Por vezes somos injustos com a vida, as coisas, os acontecimentos, porque não olhamos outra vez. O nosso ponto de vista já está muito cheio, muito condicionado, é um funil que deixou de ser abertura de coração.
Por um lado, devemos ter consciência da nossa autonomia. Deus tem de ser um caminho para cada pessoa. Não vivemos encostados à experiência de ninguém. Somos autónomos também no caminho da fé. A nossa relação com Deus é comunitária, sem dúvida, mas antes de tudo é pessoal. Deus não se revelou primeiro a um povo, mas a uma pessoa: Abraão, Moisés,… Um por um. Deus sabe o nosso nome, sabe o que somos. Isto também tem a ver com a aceitação da pobreza. É na pobreza que está a riqueza enquanto ponto de partida.
A par da autonomia, temos de viver na consciência de que dependemos inteiramente do amor de Deus. «Não temas, pequenino rebanho, porque agradou a teu Pai dar-te o Reino.»
A pobreza espiritual, encarnada por Jesus, tem ressonância no Antigo Testamento. Nesta tradição fala-se de um modo de ser e viver pobre em termos espirituais, concretizado pelos anawin, os pobres de Yahweh. O que Maria canta e testemunha no seu “Magnificat” é a reviravolta de Deus, que pôs os olhos na pobreza da sua serva, que retira os poderosos dos tronos e neles faz sentar os humildes, que despede os ricos de mãos vazias e enche os pobres das suas riquezas.
Um coração pobre está disponível para viver a alternativa de Deus, a lógica nova de Deus, as transformações, o modo de ver e atuar de Deus na história.
Jesus também nos ensina o caminho da pobreza espiritual. Quando atravessa a Samaria, acompanhado pelos discípulos, sente fome. Por vezes a fome é um momento espiritual importante. Não só a fome biológica, mas também a necessidade de outra coisa.
Os discípulos vão à aldeia buscar comida e, ao regressar, Jesus fala-lhes de outro alimento: fazer a vontade do Pai. Também nós fazemos um grande investimento para buscar o alimento, mas Jesus, à semelhança do diálogo com os discípulos, como que nos pergunta: «É disso que te alimentas?».
O verdadeiro alimento é vivermos a partir da condição de sermos filhos, de sermos filhos amados por Deus. Se vivemos a partir da convicção profunda de que é o amor de Deus que nos funda – o que o Pai diz a Jesus, «Tu és o meu filho muito amado, em ti coloco o meu amor» -, a nossa existência será completamente diferente. Deixaremos de andar de equívoco em equívoco. Saberemos verdadeiramente qual é o nosso alimento, o que nos sacia, o que é decisivo para nós.
A pobreza espiritual também se expressa na aceitação de si. Não temos apenas mal-entendidos com os outros. Por vezes, o maior e o mais difícil mal-entendido é connosco próprios. Não nos aceitamos, não nos abraçamos, não nos acolhemos, não nos perdoamos. Aceitar-me no que sou e não sou, no que fui, no que não fui, no que não consegui, no que correu bem e no que correu mal, na fraqueza e na fragilidade.
Como é que se torna fecunda a vida pobre? Na aceitação confiante de si. Como diz S. Paulo na segunda carta aos Coríntios (4, 7): «Trazemos em vasos de barro o nosso tesouro». E é sempre assim. Temos de aceitar o tesouro, mas também o barro, o barro que se quebra, o barro que se cola, o barro que não tem remédio, o barro que fica ferido.
O poeta brasileiro Manoel de Barros, com quase 90 anos, é uma das grandes figuras espirituais do nosso tempo: «Prefiro as máquinas que servem para não funcionar». Isto exige uma conversão. Porque nós preferimos o que funciona. «Porque cheias de areia, de formigas e de musgo, elas podem um dia milagrar flores». Há um milagre que só nos chega pela pobreza.
Há a história do monge perseguido por um tigre: o monge corre, o tigre também; o monge sobe a uma árvore, e também o tigre; o monge desce, o tigre imita-o. Chegado ao cume de uma montanha, percebe que de um lado tem o tigre e do outro o abismo. Então pensa: no abismo haverá, possivelmente, alguma coisa que amorteça a queda; e então atira-se. Ao cair, fica preso numas raízes, com o tigre, no alto, a olhar para ele. Mas as raízes começam a ceder com o peso, e daí a momentos ele vai cair onde não sabe. Olhando à volta, encontra um morangueiro, estende o braço e come um belíssimo morango, sentindo todo o seu sabor.
A nossa vida tem o tigre, tem as raízes que cedem, tem o que não sabemos à nossa espera. A atitude da pobreza é a convicção de que, no meio da aflição, os morangos não perdem o sabor. Que os encontros não perdem o sabor. Que sejamos capazes de perceber o sabor que nos é dado, mesmo que não seja nas condições, no modo, no dia ou no tempo que tínhamos previsto. O pobre recebe infinitamente mais do que previa.
Como o mestre que chama o discípulo para a primeira lição, que é tomar chá. Ao deitar chá para o chávena do aprendiz, não para, e então o chá transborda. O discípulo, assustado, grita: «Mestre, o chá está a espalhar-se por todo o lado». E o mestre diz-lhe: «É a primeira lição: se não tiveres o coração vazio, vai perder-se tudo aquilo que ouvires e viveres».
Como é que pode acontecer que passem semanas e nada nos toque? Como podemos dizer que não vemos Deus em nenhum lado? S. Francisco andava com uma varinha a bater nas rochas, nas flores e nas criaturas, e dizia-lhes: «Para, para, não me fales de Deus».
Esta pobreza espiritual é chamada a expressar-se num estilo de vida essencial. É importante que cada pessoa se pergunte o que quer testemunhar. Porque nós estamos sempre a testemunhar.
Diz Rumi: O que é que eu deixo em herança? Deixo em herança a primeira brisa do outono e o primeiro canto do cuco na primavera. O que é que nós deixamos em herança? Podemos até deixar bens, mas se não deixamos o sabor da vida, o sentido, a transparência, se não deixamos a brisa do outono e o canto do cuco na primavera, então não deixamos nada, não testemunhamos nada.
O que possuímos, possuí-nos. Devemos estar muito alerta e perguntar: eu quero possuir isto? Que é como quem diz, eu quero ser possuído por isto? Se pensarmos assim, ganhamos outra liberdade, que é um caminho exigente, de pequenas e grandes escolhas, de momentos extraordinários e da vida de toda a hora.
Queremos viver para dar testemunho do amor e do acolhimento, ou queremo-nos protegidos através do conforto e da segurança?
Rezemos a nossa vida. Perguntemo-nos o que nos alimenta, o que nos toca, perguntemos se só vemos a meta ou se aceitamos a nossa vida pobre e vazia. Perguntemos se em cada dia franqueamos as muralhas do nosso coração.
«O ser humano é uma casa de hóspedes; cada manhã, um novo recém-chegado, uma alegria, uma tristeza, uma maldade, que vem como um visitante inesperado. Diz-lhes que são bem-vindos, e recebe-os a todos, ainda se são um coro de penúrias que esvaziam a tua casa violentamente. Trata cada hóspede com todas as honras; ele pode estar a criar-te um espaço para uma nova delícia. O pensamento obscuro, a vergonha, a malícia, recebe-os à porta sorrindo e convida-os a entrar. Agradece a quem quer que venha, porque cada um foi enviado como um guia do Além».
P. José Tolentino Mendonça
Excertos do Retiro Aberto na Capela do Rato no dia 17 de Março de 2013
Redação: SNPC/rjm
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