Homilia do Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, no passado dia 1 de Dezembro, I Domingo do Advento, na cerimónia de ordenações diaconais no Mosteiro dos Jerónimos.
Cristo que chega, onde a Igreja serve
Chegámos ao Advento e, muito mais do que a um simples tempo litúrgico, aliás belo e sugestivo em quanto nos oferecem a liturgia e a vida eclesial. Sentimo-lo geralmente breve, no andamento em que nos lembra as sucessivas vindas do Senhor Jesus.
Mas essa mesma brevidade pode e deve acrescer em nós o apelo a mais e melhor, no que respeita às nossas próprias vidas em estado de “advento”, como se aclama em cada celebração eucarística, logo a seguir à consagração: «Anunciamos, Senhor, a vossa morte, proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!». Ou também: «Quando comemos deste pão e bebemos deste cálice, anunciamos, Senhor a vossa morte, esperando a vossa vinda gloriosa!». E ainda o presidente, logo depois do “Pai Nosso”: «… para que ajudados pela vossa misericórdia, sejamos sempre livres do pecado e de toda a perturbação, enquanto esperamos a vinda gloriosa de Jesus Cristo nosso Salvador».
Importa este ponto, uma vez que a insistência litúrgica induz-nos a premência existencial. Podemos dizer até que “cristão” é o que espera Cristo, definindo-se exatamente nessa espera. Espera que também apressa o encontro.
Como que se reproduz aqui, espiritualmente, o fenómeno psicológico da “atenção expectante”, que conhecemos bem. É quando estamos à espera duma pessoa e, quanto mais demora a chegar, mais julgamos vê-la em quem entretanto passe e tenha alguma parecença com ela. E não desistimos de esperar, antes ansiamos pela presença de quem ficou de vir.
Uma grande poetisa portuguesa traduziu em magníficos versos esta atitude cristã: «Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio / E suportar e o tempo mais comprido. / Peço-Te que venhas e me dês a liberdade, / Que um só dos Teus olhares me purifique e acabe. / Há muitas coisas que eu não quero ver. / Peço-Te que sejas o presente. / Peço-Te que inundes tudo. / E que o Teu reino antes do tempo venha / E se derrame sobre a Terra / Em Primavera feroz precipitado» (Sophia M.B.A., Chamo-Te, 1950).
Aquele verso: «Peço-Te que inundes tudo!» é aproximável, em contraste, com o versículo do Evangelho há pouco escutado, quando Jesus, lembrando o sucedido nos tempos de Noé, comentava assim: «e não deram por nada, até que veio o dilúvio, que a todos levou». Nos dois casos, refere-se algo que certamente advém. Para mal, quando destrói o nosso habitual descuido. Mas para bem e muito bem, quando corresponde ao nosso mais autêntico desejo, como acontece em Cristo, alfa e ómega das nossas vidas inteiras.
Ainda outro verso do referido poema nos ajuda a compreender como a revelação cristã corresponde profundamente ao mais humano dos desejos. É quando diz: «Peço-Te […] que o Teu reino antes do tempo venha!». Tão coincidente afinal com a petição do Pai Nosso, que devemos levar com a seriedade duma grande urgência: «Venha a nós o Vosso reino!».
O Advento, caríssimos irmãos, situa-nos no único lugar cristão, como expectativa instante e solidária, inteiramente disponível para Quem vem e nos chama, nisto mesmo apressando a história. Duma ponta à outra da revelação divina, não há senão chamamento, vocação: da humanidade à vida, que é convivência com o seu Autor e nunca cortados d’Ele. De Abraão, de Moisés e dos profetas, para que um povo exemplar se forme, se refaça e seja verdadeiramente “de Deus”. De Maria, para que tudo recomece quando tudo parecia ter acabado de vez, sendo Ela a terra intacta onde nasceria o homem novo. Dos primeiros discípulos e da Igreja de sempre, fermentando agora a massa dum Reino que, por ser só de Deus, será finalmente de todos!
Ser de Deus, para ser finalmente de todos… Não passemos depressa pelas palavras, pois são de grande exigência e conversão, como assinalam as cores roxas do Advento. É que, sendo a Bíblia Sagrada uma repetida e insistente vocação, ela exige de cada um de nós uma perfeita e constante disponibilidade para «deixar tudo» o que nos amarre aonde tão facilmente nos distraímos do que mais importa. Distraímos e retardamos, apossando-nos do que deveríamos partilhar, como quem se entreajuda num caminho que havemos de trilhar em conjunto e com a bagagem indispensável apenas.
Tudo quanto Deus sustenta no mundo, só pode ser tomado como sinal e apelo do mesmo Deus que nos espera. E sinal que nos indica o caminho a seguir, sempre em frente e sem parar. Deus que, em Cristo, nos exemplificou claramente que só ganhamos o que partilhamos, como Ele nos ganhou a todos, ao dar a vida por nós. O seu anseio era o Pai e cumprir a vontade do Pai, inaugurando na terra aquela constante partilha que é outro nome do Céu.
Quando, pelo Espírito que nos doou, desejarmos também o Pai, a santificação do seu nome e a vinda do seu reino, seremos filhos de Deus e a criação inteira respirará em pleno, não faltando a ninguém o que Deus criou para todos. Entreviu-o magnificamente São Paulo, em palavras que também são de Advento e ecologia perfeita: «Pois até a criação se encontra em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus» (Rm 8, 19).
Assim é, caríssimos irmãos, como factos que a todos nos tocam arduamente confirmam. – Pois não é verdade que falta a muitos o que outros têm demais, passando-se isto entre pessoas e povos inteiros? E que, tendo demais, nem aos detentores aproveita, pois não obtêm assim nem a paz nem a vida, estando comprovadíssima a advertência de Jesus: “A felicidade está mais em dar do que em receber» (Act 20, 35)?!.
Mal seria, muito mal seria, que desejássemos uma sociedade mais justa e mais capaz, mas sem nos convertemos realmente ao bem comum de todos, que só assim será de cada um. Os primeiros cristãos, que tanto esperavam o Advento do seu Senhor, traduziam essa expectativa num grande desprendimento de quanto os distraísse dela. E assim mesmo tudo chegava para todos: «Eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à união fraterna, à fração do pão e às orações. […] Todos os crentes viviam unidos e possuíam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um» (Act 2, 42 ss).
Será um quadro ideal, diríamos, mas tanto mais real quanto mais vivermos em Advento, pois onde estiver o nosso tesouro, aí estará também o nosso coração (cf. Lc 12, 34). Se, em Cristo, tivermos o coração no Deus de todos, praticaremos a justiça, dando a cada um o que lhe é devido, e saborearemos finalmente o dulcíssimo fruto da paz. A paz que será para «todas as nações», como magnificamente anunciou Isaías profeta, e que só será nossa quando for universal.
Quadro ideal, mas tornado bem real e concreto, quando não trocamos o encontro com o Senhor pelo desencontro das coisas, como alertava São Paulo aos romanos, com alusões muito oportunas em tempo de Advento, isto é, de conversão a Deus como adoração e aos outros como partilha: «Andemos dignamente, como em pleno dia, evitando comezainas e excessos de bebida, as devassidões e libertinagens, as discórdias e ciúmes; não vos preocupeis com a natureza carnal, para satisfazer os seus apetites, mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo».
«Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo»: São palavras para nós todos, mas hoje em especial para vós, caríssimos ordinandos de diácono. O sacramento há de marcar fortemente tudo quanto fizerdes, ativando o serviço de Cristo ao mundo através do seu corpo eclesial, que vós mesmos estimulareis nesse sentido.
Com o Evangelho que solenemente recebereis e tanto distingue o ministério diaconal, tendes agora a empolgante exortação apostólica do Papa Francisco. Especialmente quando nos diz: «… sublinho que aquilo que pretendo deixar expresso aqui, possui um significado programático e tem consequências importantes. Espero que todas as comunidades se esforcem por usar os meios necessários para avançar no caminho de uma conversão pastoral e missionária, que não pode deixar as coisas como estão. Neste momento, não nos serve uma “simples administração”. Constituamo-nos em “estado permanente de missão”, em todas as regiões da Terra» (Evangelii Gaudium, 25).
Assim acontecerá entre nós e certamente com o vosso concurso. Aliás, isso mesmo o indicou o Episcopado português em abril último, na Nota intitulada Promover a renovação pastoral da Igreja em Portugal, urgindo, entre outros itens, «uma Igreja mais dinâmica e participativa, discipular e missionária, próxima e acolhedora, ao estilo de Jesus, Bom Pastor […]; uma Igreja que que busque sempre o empenhamento e a participação de todos, sacerdotes, diáconos, consagrados e leigos, para juntos auscultarmos e seguirmos os rumos que Deus nos quiser indicar».
– Assim faremos, decerto! Como vos disse, logo ao entrar na Diocese, «o mundo, este nosso mundo de hoje em dia, precisa urgentemente de comunidades de acolhimento e missão».
Sede, pois, pela vossa resposta atenta a todas as necessidades dos outros, um sinal expressivo daquele Senhor que vem e já está entre nós «como quem serve» (Lc 22, 27). Sinal de Advento garantido, pois assim o diz também: «Felizes aqueles servos a quem o senhor, quando vier encontrar vigilantes! Em verdade vos digo: Vai cingir-se, mandará que se ponham à mesa e há de servi-los» (Lc 12, 37).
Conclua-se daqui que a diaconia eclesial – que vós sacramentalmente exercitareis – é o sinal mais oportuno e expressivo do Advento de Cristo. E assim cumprireis na vossa parte a formidável exortação que foi dirigida às primeiras comunidades cristãs: «- Como deve ser santa a vossa vida e a vossa piedade, enquanto esperais e apressais a chegada do dia de Deus!» (2 Pe 3, 11-12).
É este o Advento que esperais e apressais – e convosco nós todos, no tempo de agora: Cristo que chega, onde a Igreja serve!
+ Manuel Clemente
Santa Maria de Belém, 1 de dezembro de 2013