Queridos irmãs e irmãos,

É curioso o modo como este passo do Evangelho de S. João termina, porque não deixa de ser desconcertante. Jesus naquela páscoa faz sinais, faz milagres, em Jerusalém. Há quem acredite nesses sinais mas Jesus desconfia dessa fé. Jesus não acredita na crença, na reação que os Seus milagres despertam naquelas pessoas.

Isto é desconcertante porque nós podemos achar que é uma coisa boa: as pessoas assistem a milagres, acreditam em quem os faz. Isso em si é uma coisa boa. É ou não é? É uma coisa boa. Então, como é que Jesus é crítico, afasta-Se, não acredita naquela fé?

Para nós dá que pensar, porque isto também questiona o conteúdo da nossa própria fé. O que é que nos faz acreditar? O que é que nos aproxima de Jesus? O que é que é o cerne da nossa própria religião? O que é que nos liga? É uma fome de milagres? É uma vontade de prodígios? É uma necessidade que Deus resolva as nossas carências, as nossas necessidades? É porque Deus vem, de certa forma, compensar algum buraco, alguma necessidade urgente em nós? É isso que é a razão da nossa fé ou nós seguimos Jesus por outra coisa? Já não é por aquilo que Ele nos dá, já não é por aquilo que Ele nos premeia, que Ele nos oferece, que Ele nos dá a ver? Ou é pela Sua vida, pelo testemunho daquilo que Ele é, daquilo que Ele fez que nós estamos aqui?

A palavra de Jesus desconserta, mas ao mesmo tempo é uma chamada à purificação da nossa própria religião. A religião também precisa ser purificada. Não a religião em abstrato, mas a nossa própria religião, aquilo que está no cerne da nossa relação com o próprio Deus, com o próprio Jesus. Porque, esta imagem que é descrita no Evangelho de S. João do templo, muitas vezes é essa imagem que está dentro de nós – os cambistas, os vendedores disto, os vendedores daquilo. Porque, no fundo, sem darmos conta, reduzimos a religião ou transformamos a religião numa espécie de comércio interior, num sistema de trocas, num mecanismo de compensação, numa expetativa que nós temos em relação a Deus ou que achamos que Deus tem em relação a nós. E, de repente, o Templo já não é um Templo mas é uma praça de comércio e a religião já não é a experiência da gratuidade e do dom, mas é uma troca de serviços, uma troca de benefícios.

Jesus põe em causa este modelo de religião em que muitas vezes assenta a nossa própria espiritualidade e a nossa prática religiosa. Jesus põe em causa esse modelo de religião e desafia-nos a olharmos para o religioso de uma outra forma, como lugar de escuta radical de Deus. Escutarmos a Sua voz, escutarmos a Sua palavra como lugar de uma oração que seja pura, no sentido de que não seja para a imediata satisfação das nossas necessidades, mas seja o colocar a vida em Deus nesta experiência de gratuidade. Amamos a Deus sem ser por nada, como é o verdadeiro amor. O amor por causa disto ou por causa daquilo não é ainda o verdadeiro amor. Amar Deus sem ser por nada, acreditar em Deus sem ser por nada, acreditar por aquilo que Ele é, acreditar como entrega total do que somos. Isso é tornar o templo um Templo.

Quando os judeus tentam aferir porque é que Jesus toma a iniciativa de derrubar, de armar o banzé naquele átrio do Templo, Jesus usa dois verbos que nos fazem mergulhar neste processo de conversão a que a Quaresma nos desafia. Jesus diz: “Destruí este templo e Eu o reedificarei em três dias.” Destruir e reconstruir, apagar e reescrever, morrer e renascer. É o binómio que o próprio processo quaresmal nos desafia a viver. Há coisas a destruir em nós para poderem ser reconstruídas. Há uma imagem que tem de ser superada para poder nascer outra imagem, há práticas que têm de ficar para trás para poderem surgir outras práticas. Há um esvaziamento da nossa vida que é necessário para podermos verdadeiramente renascer. E Jesus, quando falava do destruir e do reconstruir, falava do Templo que é o Seu próprio corpo.

Quando Jesus entra no templo de Jerusalém não é para purificar o templo mas é para o arrasar. Arrasar quer dizer superar aquele modelo de religião em que o espaço físico, a monumentalidade do lugar, a exterioridade ou a lei ainda são o fundamento, em que os ritos ainda são o centro, o âmago. Jesus vem parar esse modelo religioso e vem dizer: agora é o Meu corpo, agora é o vosso corpo, o Templo. Agora é a vossa vida o lugar, esse lugar onde o encontro com Deus, onde o verdadeiro sacrifício, a verdadeira oferta (não é a oferta de uma coisa mas é o dom de si mesmo) ocorre. Por isso, Jesus centra a religião não num templo mas no Seu próprio corpo. E, quando olhamos para o Crucificado nós percebemos que Ele é o nosso Templo, que Ele é o nosso lugar. E, que naquele corpo, naquele corpo vencido, naquele corpo esmagado pelo sofrimento, naquele corpo que é o ícone do amor, que é o ícone do dom, Deus está inteiro. Naquele corpo que morre gritando: “Meu Deus, meu Deus porque Me abandonaste?” Naquele corpo que é o sinal da ausência de Deus, do silêncio de Deus está também a voz de Deus, a palavra de Deus para todos os tempos, para as mulheres e para os homens de todos os tempos.

Por isso, queridos irmãos, é no nosso corpo, é na nossa vida que a expressão de Deus Se manifesta. Isso dá-nos uma responsabilidade por aquilo que somos, por aquilo que vivemos, pela qualidade que empregamos no dia a dia nas pequenas coisas, nas transações da vida, nos seus tráficos que tantas vezes nós abandonamos porque achamos que depois resolvemos a religião de outra maneira, fora da vida ou fazendo um gesto extraordinário, ou estabelecendo um milagre, um protocolo qualquer externo àquilo que vivemos.

E Jesus diz: não, é no teu corpo, é no que és, é no fundo do teu ser que tens de exprimir a verdade desta relação. “Destruí este Templo e em três dias Eu o reconstruirei.” Para que serve a Quaresma? Para que serve este tempo que é também um tempo de prova, um tempo exigente, um tempo de ter propósitos. Um tempo em que pelo jejum, pelo encontro fraterno com os irmãos, pela oração nos somos chamados a ir além do habitual, a ir além daquilo que já fazemos, a crescer, a sairmos de nós, a irmos ao encontro de Deus e dos irmãos. Para que serve este tempo? Este tempo serve para reconstruir a vida. E, de facto, irmãs e irmãos, nós precisamos reconstruir os laços da nossa vida, dar força àquilo que vivemos, emprestar aí, a esta vida deslaçada, a esta vida tantas vezes medíocre, a esta vida que fica aquém daquilo que ela pode ser, a esta vida que não nos satisfaz, a esta vida que não reflete o melhor de nós mesmos, aquilo que Deus já criou em nós e que não aparece verdadeiramente expresso nos nossos gestos, nas nossas palavras, nas reações, nos projetos que nos mobilizam. O tempo da Quaresma é um tempo de revisão, é um tempo de formação, é um tempo para nos vermos ao espelho e dizer: não, a vida não pode ser o rame-rame, a vida não pode ser o deixa andar, a vida não pode ser esta coisa automática em que eu rotinizo o meu coração, em que eu me esgoto de forma sonolenta. A vida tem de ser outra coisa.

Esse rasgão, essa abertura, essa brecha, essa possibilidade nova é que é em nós a Páscoa. Jesus faz-nos tomar a sério a nossa vida, faz-nos tomar a sério aquilo que somos. Por isso, nós temos de olhar para este instante, para este momento no seu dramatismo. Porque, no instante, no presente se joga o definitivo. Neste momento eu posso decidir o bem absoluto ou posso decidir perder a vida, posso decidir não escolher o amor.

Por isso, na primeira leitura do livro do Êxodo, Deus é tão perentório a dizer assim: é agora, é no aqui e no agora que se joga a salvação ou a perdição. E nós, cristãos, herdámos essa conceção da vida. Para nós, este momento que estamos a viver, o nosso corpo, não é uma ilusão. Este momento não é apenas um intervalo, este momento é o palco onde a nossa vida se decide nas pequenas coisas. Mas onde o bem, onde o futuro de Deus já se pode tocar, já se pode encontrar. O presente é uma fábrica de transformação de vida, é a nossa manjedoura. A quaresma para os cristãos é um lugar de nascimento e renascimento.

“Destruí este templo e em três dias Eu o reconstruirei.” O Senhor está empenhado em reconstruir a nossa vida. Aceitemos a misericórdia de Deus, o desafio que Deus nos lança e façamos desta Quaresma um tempo em que damos horizonte à nossa própria vida, em que sentimos que estamos a caminhar. Já vamos no terceiro domingo. Até pode acontecer que até aqui nada tenha acontecido e que os nossos propósitos de Quarta-feira de Cinzas (onde é que eles já estão?) já os abandonámos, não somos capazes, não conseguimos, fomos irrealistas, o que julgávamos que íamos fazer não fizemos, por pequenino que fosse. Aconteceu isto, aconteceu aquilo e pronto, os melhores propósitos já se dissiparam. Vamos recomeçar.

No terceiro domingo vamos relançar o nosso caminho quaresmal e acreditar que os pequenos gestos ascéticos que nós fazemos não são em vão. Não escutemos as palavras de Deus em vão e não esgotemos esta oportunidade em vão. Mas procuremos colhê-la como uma hipótese para a nossa vida. Por tonto que nos pareça dizer: eu não vou comer chocolates na quaresma ou eu não vou beber vinho na Quaresma, eu não vou tomar tantos cafés. Parece uma coisa tola, tonta. Quer dizer, não é de pessoas adultas. Mas as pequenas privações num caminho ascético fazem reflorescer a vida, temos de acreditar na proeza das mediações. Por pequeno que seja sejamos fiéis a elas.

Há uma história de um noviço em que o mestre de noviços lhe diz: “Olha, tu todos os dias vais regar uma planta que está seca.” Ele vê a planta seca mas o mestre mando-lhe regar todos os dias. Muitas vezes ele sente a vontade de desanimar, de atirar o balde, colocar a água noutro sítio. Quer dizer, regar a planta seca de que é que vale isso? Mas na história há um momento em que ele vira as costas e que a planta refloresce. É como a nossa vida. Muitas vezes parece que já não vale a pena, parece que já não há remédio, já não há cura para este caminho torto que eu vivo ou esta incompletude. Já sou assim, já tenho de me adaptar aos meus defeitos, já não me consigo corrigir, já não me vou transformar. E, quando volto costas, alguma coisa se consegui, alguma coisa se fez.

Por isso, este caminho quaresmal que seja um caminho de confiança. São pequenos passos, são pequenos gestos, são pequenos propósitos mas recomecemos. Se for o caso, neste terceiro domingo, senão continuemos. Mas façamos verdadeiramente este caminho de exercícios, de manobras espirituais, de transformação, de desapego para podermos chegar à Páscoa e perceber que Ele é sabedoria para nós.

Aquilo que S. Paulo nos diz na Carta aos Coríntios é um desafio muito grande. Eu tenho de transformar o Crucificado num mestre para mim. Aquele que está pendurado na cruz é o meu mestre. Quer dizer, como é que Ele me ensina a viver, como é que Ele me traz a sabedoria, me ilumina o caminho da minha vida?

Rezemos uns pelos outros, irmãos. Ajudemo-nos neste caminho, confirmemo-nos neste caminho e que na oração ao longo da semana tenhamos presente todos os irmãos com quem celebramos ao domingo a nossa fé.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo III da Quaresma

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