Há um síndrome do Natal, como há da primavera. Às vezes chega a primavera e nós não conseguimos tanta força, tanta vitalidade, tanto renascimento e sentimo-nos muito mais vulneráveis na primavera – o que parece uma contradição, porque o mundo está numa rebentação de vida e nós sentimo-nos fracos, sentimos a desvitalização de nós próprios.

E a mesma coisa em relação ao Natal. De repente saímos de novembro (ou já no início de novembro, porque agora o comércio impõe o Natal muito mais cedo) e de uma hora para outra vemos chegar o Natal com todos os seus compromissos, as tarefas, aquilo que é necessário preparar, o que tem de ser – e acabamos muitas vezes por ficar esmagados por todo esse mundo que nos chega, que se abate, a que é impossível permanecer indiferente…Nós podemos pensar: “vou para uma ilha deserta”, mas não conseguimos, ninguém nos leva para lá – de forma que temos de encarar esta situação com maior resistência, maior sofrimento interior, ou com maior adesão, com maior vivacidade. Há anos em que toda esta bolha nos encontra com uma vontade de pegá-la, de elevá-la, de viver esse tempo, e há outros em que não nos apetece, em que parece que é uma violência acontecer Natal, ir a um centro comercial – parece que é uma violência tudo isto, porque sentimos não uma consolação, mas uma desolação por tudo isto estar a acontecer.

Por isso as palavras de Isaías são palavras importantes para serem repetidas a quem sente este síndrome espiritual do Natal ou deste Natal: “ Consolai o meu povo.” Nós precisamos de consolação. E a grande consolação é por aquela dor que se instala em nós quando sentimos: “Não pode ser só isto.” Isto é muito bonito: os símbolos, a sua música tilintante, os presentes, as surpresas, a ornamentação, as tradições, os ritos…tudo isso é interessante na proporção certa, mas não pode ser só isto.

O Natal tem de ser outra coisa, tem de ser outra palavra, tem de ser outro acontecimento. Se calhar precisa de ser traduzido de outra forma, com outra gramática, com outros gestos, com outra corrida que não seja apenas uma corrida ao consumo, mas seja um estar alerta, uma outra espécie de atenção, uma outra vigilância…

É importante sabermos que o Senhor nos consola da nossa inquietude e da nossa desilusão em relação a este Natal portátil que todos os anos se aproxima de nós. O Senhor consola-nos profundamente e faz dessa insatisfação um caminho de procura de uma maior autenticidade de Natal.

O problema não é estarmos insatisfeitos, ou desolados, ou inconsoláveis. A grande questão é: “Faz alguma coisa com isso”.

Porque é preciso fazermos coisas com os nossos sentimentos, com os nossos afetos – quer fazer coisas com a nossa alegria, quer fazer coisas com o nosso sofrimento.

Se o nosso sofrimento nos pede para construirmos uma alternativa, então construamos caminhos alternativos, encontremos outra linguagem, reinventemos a celebração do Natal. Até na nossa família, reinventemos a celebração do Natal, com os nossos amigos, reinventemos a celebração do Natal. O Natal não tem de ser celebrado sempre da mesma maneira, porque senão torna-se um tique, torna-se uma coisa que já não diz nada, torna-se um teatrinho pobre – e é pena que seja assim. Não pode ser só isso.

A figura do Advento que hoje nos surge no Evangelho é João Batista. E João Batista vem com uma estética muito particular (não pensemos que as pessoas daquela época se vestiam desta maneira estranha, com pelos de camelo, com um cinto de cabedal à volta dos rins) ou que tivessem esta dieta: alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre. Eu ainda ontem via numa crítica gastronómica que os insetos estão a entrar cada vez mais na alta cozinha, mas a de João Batista certamente não era alta cozinha, era o que ele podia apanhar com a mão naqueles fins do mundo à volta do rio Jordão, perto do Mar Morto. Ele claramente construiu um estilo alternativo, um estilo de rutura com o seu tempo, e começou ali uma coisa nova.

Às vezes começarmos uma coisa nova é bom, é importante. Às vezes é a “brecha de Deus”, é a possibilidade de Deus entrar. Por isso, com a nossa insatisfação em relação ao Natal comercial, façamos alguma coisa: e alguma coisa que faça sentido, alguma coisa que nos mergulhe mais profundamente na oração, na espiritualidade, no mistério, no encontro, na conversa com os outros, no serviço, na curiosidade saudável, boa, pelos outros, pelo mundo…isso é viver o Natal.

A modernidade, este tempo que nós vivemos, é um tempo espantoso e ao mesmo tempo muito estranho. E muito estranho porquê? Porque é um mundo que avança em turbilhão, que todos os dias está a atualizar-se (como o nosso computador ou o nosso telemóvel, que estão sempre a pedir atualização) e o sentimento que nós temos do mundo e da vida é que estamos desatualizados, que nós somos os nossos antepassados – e a tecnologia todos os dias nos dá “chapadas” com isto: “tu não entendes, tu és analfabeto, tu és infoexcluído, tens de aprender, agora mudou tudo, agora a tecla que servia para isto vai servir para aquilo, agora há uma nova modalidade, há um novo programa, tu ainda não sabes, tu ainda não viste” – e é esta a nossa vida.

O mundo moderno é um mundo em que os seres humanos são os seus próprios antepassados. Nós podemos ter 20 anos, 40 anos, e sentimo-nos completamente desatualizados, sempre em esforço de atualização, porque vamos ficando para trás, continuamente.

E isto gera em nós um sentimento estranho em relação à vida, porque é como se a nossa vida valesse menos; como se se nós não estivermos “à la page” com o último grito isso já não serve, estamos a perder alguma coisa de fundamental. Porque o presente desautoriza-nos. Nós somos talvez a primeira geração de seres humanos com um elevado conhecimento tecnológico, científico, e que se sente completamente incapaz, que se sente desautorizada, porque este é o túnel: todos os dias estamos a ser vencidos, todos os dias nos dizem “o teu saber não vale”, estamos a ser relativizados – e isto tem consequências profundas em nós.

Como é que nós vivendo isto, padecendo isto, como mulheres e homens com os pés neste presente histórico, olhamos para o Evangelho de Marcos, para este texto que fala da pregação de João Batista, em que ele diz: “Vai chegar depois de mim quem é mais forte do que eu, diante do qual eu não sou digno de me inclinar para desatar a correia das sandálias. Eu batizo-vos com água, Ele batizar-vos-á no Espírito Santo.

Nós podemos dizer: “É exatamente o que eu sinto, isto de “depois de mim vai chegar um maior” é o que eu estou sempre à espera, eu folheio o jornal e sei que vou encontrar coisas muito maiores do que aquelas que eu possuo, e que eu tenho e que eu posso ter, porque o mundo é assim.

Será que a vinda do Messias é isto? É também para superar, também para desautorizar o meu presente, a minha vida, o meu conhecimento?

Não, Jesus vem, não para me tornar um antepassado de mim mesmo, mas Jesus vem para me dizer que eu sou um filho do seu futuro, que eu sou uma obra desse presente que Ele inaugura comigo, sem dizer que o que eu sou não serve, pelo contrário, Ele toma a nossa carne.

E nós podemos pensar: “Mas porque é que Jesus, Filho de Deus, vindo à terra veio como um homem?” Um homem é pouco, Ele devia vir como um Super Homem, Ele devia vir com toda a tecnologia que neste momento o trans-humanismo já consegue pensar que há de ser o homem do futuro, tão modificado que a palavra “homem” já não conseguirá explicar o novo ser.

Então Deus manda à terra o Seu Filho e Ele vem sem nada? Vem pobre, vem nu, vem com as limitações, as fragilidades, a vulnerabilidade de qualquer simples natureza, de qualquer simples humanidade?

Deus vem abraçar a nossa humanidade, Deus não nos vem deitar fora. Deus não vem dizer: “Estás ultrapassado, isto já não serve, vai para a gaveta”. Não, Ele vem dizer: “A tua humanidade é o lugar de Deus, aquilo que tu és é o lugar onde Deus vai nascer” – e Ele assume completamente aquilo que eu sou. Isto, queridos irmãos e irmãs, dá-nos uma confiança, uma certeza de um amor, uma confiança de que vale a pena, de que nós não somos os antepassados de nós mesmos, que nós já perdemos a corrida. Mas vem dizer-nos que nós estamos em movimento, que nós estamos abraçados, nós estamos como naquelas imagens do profeta Isaías que hoje nós lemos: “Ele será o pastor e tomará os cordeiros em seus braços e conduzirá as ovelhas ao seu descanso”. É isto o Natal.

É este entendimento de que nossa humanidade vale, e por isso é a partir dela que nós temos de encontrar a linguagem, a relação, o modo de ser uns com os outros, é a partir das nossas humanidades.

Queridos irmãos, vivamos o Advento, caminhemos no Advento, espiritualizemos este tempo, sem cairmos em dualismos um pouco idealizados, procuremos viver com o que é a nossa tradição, o que é a nossa forma, mas procuremos fazer mais, dar um sentido, passar uma mensagem, criar outro tipo de oportunidades, porque só isso é capaz de espelhar o significado profundo do Natal.

O resto, tudo, é uma onda que passa.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo II do Advento

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