Queridos irmãs e irmãos,

Hoje começamos a ler a primeira Carta de S. Paulo aos Tessalonicenses. É uma carta muito importante, sendo quase ingénua, esboçada apenas, não se pode comparar ao que seriam depois as grandes cartas de Paulo: a Carta aos Romanos, a Primeira Carta aos Coríntios, por exemplo. Mas, esta carta, é uma carta especial, porque é o primeiro texto escrito cristão. O Novo Testamento começou a ser escrito por aqui. Esta carta é escrita nos anos 50. Antes de serem escritos os Evangelhos existiu esta carta, que tem associada a si uma história muito curiosa, porque S. Paulo começou a sua evangelização na cidade de Tessalónica. Tessalónica fica no norte da Grécia, era uma cidade romana onde viviam muitos militares na reforma, era uma espécie de zona franca onde o controlo das estradas, da via Júlia, das estradas que vinham para Roma se fazia e ligava ao Oriente. Era um sítio geoestratégico. E Paulo vai lá, está lá um mês e meio e começa uma experiência de construção de comunidade. Evangeliza, reúne as pessoas, celebram a memória de Jesus. Só que é um mês e meio e Paulo, no final desse tempo, é expulso da cidade de Tessalónica. Há um levantamento dos judeus, há suspeitas das autoridades romanas de que Paulo seria um subversivo. E então, Paulo acaba sendo expulso da cidade.

Quando Paulo sai, ele pensa: “Acabou tudo, foi tão pouco tempo que eu estive com eles, com certeza que eles vendo até o que me aconteceu vão arriar caminho, cada um vai para seu lado.” Paulo começa a descer na direção de Atenas só que, a meio caminho, manda Timóteo para trás pedir informações, saber como é que a Comunidade ficou. E foi a primeira das grandes surpresas de Paulo, ele saber que a comunidade cristã, apesar de ter uma evangelização ainda incompleta, persiste na fé em Jesus e na vida do Evangelho. E, pelo contrário, os sofrimentos não dissuadiram, não dispersaram a comunidade mas fortaleceram-na. No meio dos sofrimentos, daquelas notícias imprevisíveis, a fé consolidou-se. Então, Paulo escreve esta sua primeira carta, que é uma carta escrita para dizer nada. Paulo não tinha ainda grandes tratados para contar. O que é que Paulo diz nesta carta? Fundamentalmente é uma carta para falar do amor entre os cristãos, para falar da beleza de ser cristão, para falar da alegria que é a vida da comunidade. É uma carta onde Paulo sobretudo fala do seu afeto pela comunidade, e do afeto que deve existir na comunidade cristã.

Por isso, são tão incisivas estas palavras que Paulo diz: “Recordamos a atividade da vossa fé, o esforço da vossa caridade e a firmeza da vossa esperança.” A atividade da vossa fé, o esforço da vossa caridade, a firmeza da vossa esperança.

Queridos irmãs e irmãos, dois mil anos depois somos nós que estamos aqui. Se calhar, porventura, também nós sentimos que o nosso caminho de fé está ainda incompleto, se calhar ainda há tanta coisa para apreender, para viver, para perceber melhor, para aderir com outra verdade, outra autenticidade. Se calhar sentimo-nos a caminho, esboçados apenas como cristãos. Mas é importante também sentirmos que este, o caminho que já fizemos, é muito importante. E há momentos em que é importante partir daquilo que já se fez, daquilo que já se é. Porque, às vezes, estamos sempre a olhar para aquilo que nos falta para sermos cristãos de verdade. Mas, já há um caminho, já há uma história, já há uma biografia pela qual nós temos de agradecer, temos de agradecer a Deus. “Recordo a vossa fé, o esforço da vossa caridade, a firmeza da vossa esperança.” Por isso, é assim uma palavra de conforto que Paulo dirige à comunidade, e nós precisamos dessa palavra de conforto. A dizer: muito bem, o caminho é este. Muito bem, o esforço que já fazemos. Mesmo que às vezes pareça pouco. Muito bem a firmeza da nossa esperança, mesmo que ela seja sempre frágil e vulnerável. Mas o pouco que já vivemos aqui é um ponto de partida extraordinário para a nossa fé.

Esta Primeira Carta aos Tessalonicenses lembra-nos a importância de falarmos bem da nossa própria experiência. Porque, na vida espiritual, aquilo que nós cantávamos no cântico penitencial é uma coisa vital. Nós cantávamos: “Senhor Jesus, Tu és luz do mundo, não deixes que as trevas nos queiram falar.” De facto, muitas vezes ao nosso coração quem fala são as trevas a dizer: “Não prestas, não serves, não cumpres, não realizas, não fazes, não vais chegar lá.” E deixamos que a incerteza, o medo, às vezes até uma apreciação deficiente da própria vida, uma falta de confiança persistente acabem por falar mais alto do que a confiança e a misericórdia que Deus nos dá. Muitas vezes nós desalentamos porque ouvimos falar a voz da sombra, a voz do escuro. É importante travar essa voz e dizer que essa voz não tem razão. Porque, aquela voz nos dissuade, nos desmobiliza, nos atira para baixo e para os círculos fechados da não-esperança. Nós temos de fechar essas portas, desautorizar que essas vozes nos falem. Porque, temos sim de autorizar a voz da confiança, a voz do amor, a voz da misericórdia, a voz que diz “Tu és capaz”, a voz que diz “Vamos recomeçar, vamos acreditar”, a voz que diz “Vai valer a pena, tu és capaz, tu consegues, tens a Minha graça, tens o Meu amor contigo.” E ouvir falar esta voz, que é a voz de Deus, a voz do Deus que Jesus nos revela, deste Pai que é misericórdia e amor, deste Deus que não desiste nunca do Homem, deste Deus que não tem expectativas.

Porque, às vezes, o nosso desencontro com Deus tem a ver com as expectativas que nós projetamos em Deus: Deus tem estas expectativas e eu não correspondi às expectativas que Deus tinha a meu respeito. Deus não tem expectativas a teu respeito, não tem. Deus não tem expectativas, Deus tem amor. É uma coisa diferente. Quem ama radicalmente sabe que não pode ficar prisioneiro de expectativas, e que as expectativas muitas vezes são uma fonte de mal entendidos no amor. Quem ama está aberto, quem ama ama numa gratuidade, quem ama até ao fim ama de uma forma incondicional, não fica prisioneiro de expectativas. Deus não tem expectativas.

Por isso, a história da nossa vida que contamos a nós mesmos não pode ser uma história: aí não correspondi às expectativas e agora? Não pode ser essa narrativa. Tem de ser a narrativa de uma confiança que em cada tempo da nossa vida nos é dada. A vida é reversível, é reversível. A vida está em aberto, a nossa vida está em aberto até ao fim. E por isso, é sempre possível começar, é sempre possível partir. Não podemos dizer: eu não fiz, isto agora já não vai dar. Não, é sempre possível começar. Na vida espiritual, na vida de Deus, na vida cristã é sempre possível dar um passo novo, começar uma estação diferente. Porquê? Porque é na Graça que nós estamos, é neste amor desmesurado de Deus, é neste excesso da sua misericórdia que nós fundamos a nossa vida. Por isso, não olhamos apenas para o copo meio cheio, mas olhamos para aquilo que nos é dado, que nos é servido.

Muitas vezes um problema do Cristianismo é se confundir com uma moral. O Cristianismo não é, antes de tudo, uma moral. Claro que há uma ética cristã, claro que há que viver um ethos cristão. Mas, antes de tudo, o Cristianismo não é uma moral. Nós não somos os melhores dos homens, os mais perfeitos. Deus sabe, andamos por aqui. Uns melhores, outros piores, uns mais aperfeiçoados, outros menos, uns mais virtuosos outros menos. Mas o Cristianismo não é uma escola de virtudes, é uma aprendizagem da graça de Deus, da sua misericórdia. Que, com certeza, depois nos há de nos pedir um caminho, uma autenticidade, uma correspondência. Mas não é a virtude o essencial. O essencial é esta descoberta de um Pai que não desiste de nós, de um Pai que não fica refém de expectativas, de um Pai que vive no amor, vive situado no amor incondicional, que está sempre pronto a dar-nos, a servir-nos.

Que estas palavras que Paulo dirige à comunidade sejam palavras para esta comunidade e para cada um de nós. Paulo a recordar a fé, o esforço da caridade, a firmeza da esperança. Sintamos que essas palavras são para nós.

Hoje no Evangelho nós temos esta história de Jesus que é um ponto importante, que é no fundo a forma como o mundo e o tempo penetram nos próprios Evangelhos. Nós vemos que hoje temos uma espécie de fluxo da realidade que entra nesta história de Jesus, quando os rivais de Jesus, aqueles que lhe querem preparar uma cilada, trazem uma moeda e dizem: “Olha, devemos pagar impostos ou não?”

Nós sabemos a situação de Israel, que era uma situação submetida a uma soberania estrangeira que era o Império Romano. Claramente, Israel estava esmagado por um confisco ao Império Romano, era uma questão decisiva que se discutia ali. Mas é interessante o modo como Jesus responde, porque Ele diz: “De quem é a inscrição e de quem é a efígie que está na moeda?” E, com esta pergunta, Jesus reduz o império de César, relativiza a figura de César dizendo que ele vale apenas o que está escrito na aparência daquela moeda. Jesus relativiza, limita, o poder.

É isto que nós, cristãos, também somos chamados a fazer: nós temos de reconhecer os limites do poder, e nomeadamente do poder económico. Temos de saber que não é isso que nos salva. É interessante que Jesus fala sobre o dinheiro, claramente. E as duas perguntas que Jesus faz são duas perguntas que nos devem orientar. A primeira é: que é que nós fazemos com o nosso dinheiro? Se nós acreditamos que o poder económico está limitado ele tem de ter uma finalidade que não é ele próprio. A finalidade do dinheiro não é o dinheiro, a finalidade do dinheiro tem de ser a transformação do mundo, tornando-o mais justo. A finalidade do dinheiro tem de ser o amor, tem de ter uma finalidade que vale em Deus. Se a finalidade do dinheiro é ele mesmo então ele acaba por ser um ídolo e não cumprir a sua função. Temos de relativizar o dinheiro. Mas a principal pergunta de Jesus não é apenas o que é que nós fazemos do nosso dinheiro mas é também o que é que o nosso dinheiro fez de nós, o que é que o nosso poder, o que é que César fez de nós? E isto é uma pergunta que nos deve fazer revisitar a nossa vida, que nos deve fazer um exame de consciência, porque é importante vivermos com liberdade. E quando pensamos na vida, no nosso destino, no sentido daquilo que somos não podemos apenas ficar a dar respostas penúltimas, temos de arriscar dar e confrontar-nos com as questões últimas. Que é a questão: para que é que serve mesmo, para que é que me serviu, no que é que eu me tornei, para onde é que eu caminhei, o que é que valeu a pena e o que é que não valeu. Nós não podemos fugir a estas perguntas.

De facto, há uma idade em que fazemos muitas perguntas. Os adolescentes, os pais que têm miúdos ou os avós que têm netos sabem que há a idade dos porquês. É a primeira fase. Mas depois há uma fase em que não somos nós que nos perguntamos porquê, é a vida que nos pergunta porquê. E depois, até ao fim da vida, nós vivemos interiormente uma espécie de adolescência, e ouvimos muitos porquês, e olhamos para nós próprios a agir e a pensar e há dentro de nós: porque é que estás a lutar por isto? Porque é que estás assim? Porque é que reages desta maneira? Porquê? Porquê? Porquê? E é importante respondermos a esses porquês. Porque, o Cristianismo tem de ser uma escola de vida, uma escola de sabedoria. Ser cristão não é apenas seguir uma religião, é seguir uma maneira de viver, seguir um estilo. Porque Jesus não é apenas um Deus transcendente, Jesus é um Deus encarnado que mostrou na nossa humanidade o caminho.

Por isso, precisamos de estar numa aprendizagem ao estilo de Jesus, à maneira de Jesus, procurando traduzir a nossa vida numa linguagem evangélica.

Queridos irmãs e irmãos, estamos a caminho, estamos a caminho. E estamos a caminho com confiança, sabendo que aquilo que nos tem de falar não é a voz da sombra mas é a luz do amor de Deus.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXIX do Tempo Comum

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