Queridos irmãs e irmãos,

É muito interessante a forma como o Evangelho de S. João está construído porque é o evangelho dos diálogos. Como em nenhum outro evangelho Jesus dispõe-se a conversar. A conversar com aqueles que o procuram e com outras personagens que o próprio Jesus toma a iniciativa de encontrar, como é o caso desta mulher samaritana.

Isto compreende-se porque as mulheres não podiam procurar os mestres, só os homens tinham uma educação religiosa. Por isso, enquanto nós vemos, por exemplo, Nicodemos a procurar Jesus, é Jesus que tem de procurar a mulher samaritana, a iniciativa é Dele. Porque Jesus está disposto a franquear as fronteiras, a franquear os muros, a ir à procura da ovelha perdida, daquela que está mais distante.

Jesus conversa no Evangelho de S. João. Isto é uma imagem que, se calhar, nós não temos habitualmente de Jesus, mas é uma imagem existencial, mas é uma imagem que nós próprios vamos tateando dentro de nós. Porque, no fundo, o que é que é a nossa fé? A nossa fé é uma conversa longa que estamos a ter há vários anos, há muitos ou há poucos, mas que estamos a ter com Jesus. Um diálogo. Um diálogo saboroso como é este, um diálogo também de mal entendidos, como é este, um diálogo em que não se percebe logo à partida tudo, um diálogo que é progressivo e um diálogo que nos dá a conhecer Jesus. E, conhecendo Jesus, com esse conhecimento nós somos capazes de olhar para a vida de outra forma.

Por isso, é muito importante sentirmos que nos diálogos da nossa vida, tal como nos diálogos do Evangelho, o ponto principal é o conhecimento de Jesus. Que conhecimento é que nós temos de Jesus? Porque, porventura, precisamos de descobri-Lo de outra forma. Precisamos que o nosso conhecimento se torne um conhecimento efetivo e afetivo para que depois a nossa vida possa ser vista com outros olhos, com outra disponibilidade e com outra esperança.

É interessante que neste diálogo de mal entendidos vão atirando assim umas coisas como quem não quer. No fundo, às vezes parece que a conversa da samaritana é mais um desconversar. “Mas como é que Tu, sendo judeu, vens falar comigo? Tu dizes que tens aí a água e ofereces a água mas eu não te vejo com balde nem com corda. Como é que vais buscar essa água se o poço é fundo?” É assim um desconversar. Mas, quando Jesus Se vai manifestando, quando Jesus lhe diz “Se tu conhecesses o dom de Deus eras tu que pedirias de beber”, aos poucos, no coração daquela mulher há uma viragem que vai acontecer. Quando ela diz “Eu sei que há de vir um Messias” e Jesus diz “Sou Eu”, não “Sou Eu” em abstrato, “Sou Eu que estou a falar contigo.” Então, “Eu sou o Messias nesta relação, não sou o Messias dogmaticamente, Eu sou o Messias no encontro pessoal que tenho contigo. Eu sou o Salvador, sou Aquele que resgata a tua vida.” Quando a mulher descobre isto no fundo do seu coração, a sua vida transforma-se. Aquilo que eram obstáculos, impossibilidades, tornam-se coisas que são uma oportunidade para o grande encontro, são uma oportunidade para ela ser salva por Jesus, pelo conhecimento de Jesus.

S. Paulo, na Carta aos Romanos, diz-nos isso: “Vede o amor com que Deus nos amou dando-nos o Seu Filho, e um Filho que dá a vida por nós.” Não porque nós somos santos, não porque nós somos os melhores, somos os qualificados eticamente, somos aqueles que vão à frente do pelotão. Deus sabe, Deus sabe como nos arrastamos, Deus sabe a nossa dificuldade, Deus sabe os nossos obstáculos, Deus sabe aquilo que nos forma por dentro. Mas, S. Paulo lembra, por um santo, por um homem justo é normal que se dê a vida, mas por um pecador, por alguém que não merece… Ora, nisto vemos o amor com que Deus nos amou. Jesus ofereceu por nós Sua vida quando éramos pecadores. É esta palavra a que nos temos de agarrar. Que amor é este que se oferece inteiramente a nós quando somos pecadores? Não para premiar o nosso mérito, mas para estimular a nossa fraca esperança; não para nos arrancar do caminho percorrido mas para nos arrancar do caminho que não começa, que resiste a começar dentro de nós; não para dizer “Tu, de facto, cumpriste”, mas para dizer “Tu não cumpriste, tu não fizeste, tu ainda não deste o primeiro passo mas eu amo-te, eu amo-te, eu dou inteiramente a minha vida por ti.”

É este conhecimento de Deus, é este conhecimento de Jesus que mobiliza a nossa vida, que transforma a nossa vida. Por isso, o tempo da Quaresma é um tempo de reencontro com Jesus, é um tempo para aprofundarmos o nosso conhecimento, a nossa relação, não é apenas nós próprios estarmos com os nossos pontos de esforço, estarmos a modificar, a converter a nossa vida por nós próprios, não é disso que se trata. Trata-se de ampliar o conhecimento que temos de Jesus. Quem é este Jesus? No encontro com Ele como é que eu O escuto, como é que eu O descubro? Como é que eu recebo Dele a água viva? A água que desperta todo o meu ser, a água que me liberta da escravidão do meu ser, a água que me liberta da escravidão dos poços, a água que me dá a fecundidade interior, que me dá a liberdade, que me dá a esperança. Como é que eu me construo no diálogo com o próprio Jesus? Porque, o conhecimento de Jesus, o conhecimento do Seu amor é a pedra fundamental.

Por isso, queridos irmãs e irmãos, sintamos o grande desafio de na oração, na leitura da Palavra de Deus, na meditação, nos tempos de silêncio, de recolhimento da nossa vida, na Eucaristia ao longo desta Quaresma nós nos centrarmos na figura de Jesus. Porque, é quando nós descobrimos quem é Jesus que a nossa vida muda e muda para sempre. Não muda porque lhe damos uns retoques e fazemos umas práticas ascéticas que nos tornam um bocadinho mais aceitáveis, não é disso que se trata. Mas trata-se de receber o Espírito dentro de si, de receber o Espírito do Ressuscitado que nos transforma. “Eu Sou o Messias, Aquele que está a falar contigo.” Ele está a falar connosco, está a falar com cada um de nós, sintamos isso. E sintamos aquilo que os samaritanos dizem à mulher samaritana: “Antes nós acreditámos porque tu nos contaste do episódio da tua vida, agora nós acreditamos porque nós próprios vimos e sabemos que Ele é o Salvador do mundo.” Nós precisamos de ver e saber e reconhecer que Jesus é o Salvador, mas isso tem de passar por uma experiência interior, por uma experiência de relação, por uma experiência de fé que é sem dúvida o ponto mais essencial.

Hoje, o livro do Êxodo dá-nos uma imagem e, de facto, as imagens valem por mil palavras. É uma imagem de esperança, é uma imagem de confiança para nós que somos o Povo que caminha, para nós que vivemos tão tentados, tão ameaçados, tão expostos ao vento, tão expostos à sede, à tentação. Aquela imagem é uma imagem de força, porque, quando o Povo reclama e diz “Trouxeste-nos aqui para nos fazer morrer à míngua” Deus dá aquela vara a Moisés e Moisés toca na rocha e a rocha torna-se uma nascente. Isto é, a pedra que é o lugar mais seco, que é o lugar sem nada. Moisés toca com a vara de Deus na rocha e a rocha torna-se nascente. Esta é uma imagem de esperança para nós. Porque, se calhar o que trazemos dentro do peito é uma pedra, se calhar o que sentimos que é a nossa vida neste momento é uma rocha, se calhar aquilo que sentimos é uma sede. E é interessante que todos os personagens têm sede, o povo no deserto tem sede, Jesus tem sede, a samaritana tem sede, todos têm sede. Quer dizer, é a história da nossa vida, todos somos sedentos, todos temos sede, necessidades, estamos a caminho, estamos na luta pela sobrevivência.

Deus transforma a rocha, o obstáculo. Deus transforma o lugar onde é fácil cair, onde é fácil a esperança soçobrar numa nascente. O que é que salta desta imagem? Salta água fresca, mas salta sobretudo a confiança – nós podemos confiar, nós podemos confiar. E esta credibilidade de Deus que Jesus revela é que é a âncora das nossas vidas.

Queridos irmãs e irmãos, nós estamos num tempo de retiro, num tempo de manobras, num tempo para sacudir tapetes, para limpar as coisas dentro de nós, para vencer o inverno dentro de nós, para fazer irromper o verde da primavera dentro de nós. É um tempo de trabalhos interiores, é um tempo para dar-se luta, para apertar-nos, para dizer: vai, acredita, recomeça. Não te instales, não digas: ”Não consegui viver estas três semanas, acabou. A Quaresma já acabou, foi um fiasco”. Não, começa, é hoje o primeiro dia, é hoje o teu primeiro dia. Mas, que no centro desta experiência quaresmal, desta experiência penitencial esteja de facto o diálogo com Jesus, o encontro, a escuta de Jesus. Ele que vem ter connosco, Ele que se mete com a nossa vida, Ele que diz: “Tenho sede”.

Jesus tem sede de quê? Tem sede da nossa vida, tem sede da nossa esperança, tem sede dos nossos sonhos realizados, tem sede da nossa autenticidade, tem sede da nossa verdade, tem sede da nossa dádiva, tem sede do nosso dom, da nossa entrega, tem sede da superação de nós mesmos, do nosso egoísmo, tem sede da capacidade de servir, da amplitude de ser que está dentro de nós. Ele tem sede disso e Ele não desiste de nós. Nós estamos aqui, cada um de nós está aqui, pode pensar que é por uma outra razão qualquer, mas cada um de nós está aqui porque Deus não desiste de nós.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo III da Quaresma

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