Queridos irmãs e irmãos,

Celebramos hoje a solenidade da Santíssima Trindade, a festa de Deus. A Trindade é uma afirmação fundamental da fé cristã que tem a ver com a identidade profunda da nossa própria fé. Juntamente com as outras duas religiões monoteístas, o Judaísmo e o Islamismo, nós acreditamos num Deus único, acreditamos que há um só Deus. Mas, diferentemente delas, nós acreditamos que esse Deus único é uma trindade de pessoas. É Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo.

Então, acreditamos que, no mais profundo de si, Deus não é uma solidão, Deus não é apenas a unicidade mas Deus também é a multiplicidade. Deus é único e é trino. Deus é comunidade, Deus é espaço onde o dom circula, Deus é a relação de paternidade, de filiação, de envio, de dádiva permanente de amor. Então, só olhando para Deus na relação nós podemos colher o seu mistério.

O mistério da Santíssima Trindade é isso, é um mistério. E, por ser um mistério, nós não o podemos compreender completamente. Só na fé o podemos acolher, o podemos sondar, o podemos explorar. Mas, uma coisa é um mistério, outra coisa é um bicho de sete cabeças. Um bicho de sete cabeças  é alguma coisa que nunca vai ter um sentido, nunca vai ter uma narrativa que o estruture, que o ilumine. O mistério não. O mistério nós conseguimos chegar a ele, construímos com ele uma relação, abrimo-nos a ele, sentimos que mergulhamos dentro dele. Por isso, o mistério de Deus não é alguma coisa que nos afasta de Deus, o mistério de Deus é um tipo de conhecimento. É um tipo de relação que nós próprios mantemos com Deus. Porque o mistério abraça-nos, o mistério vem até nós. Continuará sempre a ser mistério, mas não deixará de ser apreendido, não deixará de ser tocado, não deixará de ser compreendido por nós isso que o próprio Jesus promete aos Seus discípulos: “O Espírito Santo virá a vós e vos dará a compreensão do mistério de Deus.” Então, a vinda do Espírito ajuda-nos a compreender Deus.

Nós também precisamos compreender Deus, esse é um dos grandes desafios da nossa vida. E como é que compreendemos Deus? A filosofia tem sido, desde os começos, uma caixa de ferramentas ótima. Ótima para nós nos compreendermos a nós próprios, compreendermos o sentido da vida e compreendermos o próprio Deus. A teologia, desde o princípio, se aliou à filosofia precisamente para encontrar um discernimento, uma sabedoria, uma possibilidade de dizer o mistério de Deus. E nós este ano tivémos a grande oportunidade de ter este curso de filosofia, pensando aquilo que os filósofos dizem de Deus. E foi, de facto, uma viagem maravilhosa, onde, com ferramentas diferentes, conceitos diversificados se foi apurando a nossa capacidade de escuta, a nossa capacidade de acolher o mistério do próprio Deus.

Mas, a filosofia não é a única caixa de ferramentas, há outras ferramentas. É muito interessante lembrar aquilo que hoje nos diz o livro dos Provérbios que nós começamos por ler, que nos fala da sabedoria de Deus. Esta tradução que nós lemos é assim um bocadinho a fugir à estranheza do texto, porque a palavra hebraica que está ali presente diz que a sabedoria de Deus, que é uma emanação de Deus e que no fundo é O próprio Deus, é uma figura de Deus, tinha o seu prazer, tinha sua delícia não em estar mas em brincar com os filhos dos homens.

Então, para lá da filosofia, para lá da razão uma coisa que nos aproxima de Deus, e que nos ajuda a perceber o mistério de Deus, é a experiência da alegria, é a experiência do jogo, é a experiência da própria poesia da nossa existência.

Um grande teólogo que marca o século XX, Romano Guardini, dizia isto: “Só quem compreende aquilo que um brinquedo representa para uma criança pode compreender o que é a nossa relação com Deus.” A nossa relação com Deus não é apenas com a coisa mais séria, com a pessoa mais grave da nossa existência. Mas, ao mesmo tempo, também tem de ser um momento de pura gratuidade, de puro abandono, de pura graça, de pura imaginação, de pura invenção. Dá-se um brinquedo a uma criança e ela esquece-se, ela passa para dentro de uma história, ela é capaz de dialogar, é capaz de perceber e nós dizemos: “Bem, ela está a criar uma ficção.” Não, ela está a criar, ponto final. Ela está a ser, ponto final. Porque nós também somos todas essas dimensões. E por isso, para pensarmos Deus, para compreendermos Deus, claro que a filosofia, aquilo que Aristóteles nos diz, que S. Tomás de Aquino nos diz, isso tudo é fundamental. Mas, ao mesmo tempo, temos de integrar outras dimensões e perceber que nós tocamos a essência de Deus de muitas maneiras.

E uma delas é, de facto, através do jogo, através daquilo que na terra, daquilo que na vida, funciona até ao fim como uma espécie de brinquedo para nós. Aquilo que é a nossa delícia, aquilo que é o nosso prazer. Nós não chegamos a Deus apenas por uma caminhada árida, ascética, de pensamento, de encadeamento de conceitos. Mas, nós chegamos a Deus por nada, por um sorriso, por uma graça, por uma coisa que floresce, pelo inesperado, pelo surpreendente. E é necessário também nos tornarmos sensíveis a estes modos de chegar a Deus.

Um outro modo, e que o salmo 8 que hoje proclamamos nos lembra, é a contemplação, é o espanto. Isto que o salmo diz: “Quando contemplo os céus, obra das vossas mãos, a lua e as estrelas que lá colocastes.” Isto é, quando Pascal dizia que quando comtemplava a imensidão dos céus tinha um arrepio. E não era apenas um arrepio de um frio, mas era um arrepio interior, o arrepio de quem se sente colocado perante o mistério. Para sentirmos Deus, nós não podemos viver uma vida de aviário apenas, uma vida com os vidros fechados, insonorizada, fechada nas sua rotinas, nos seus ritmos. Para sentir Deus nós temos, como dizia a canção de Gilberto Gil, de tirar os sapatos, desatar a gravata, abrir as desculpas e passear, passear. Ir ao jardim, olhar para o ar, ver as árvores, ouvir os pássaros, sentir o ar que corre. Ligarmo-nos, ligarmo-nos em admiração, em contemplação a este mistério que às vezes a gente pensa que está muito longe, e que não consegue chegar lá. Quem é que consegue chegar lá? E se calhar Deus é transparente, Deus está muito mais perto de nós do que nós julgamos e o que nós precisamos é de abrir as mãos, abrir os olhos, abrir os ouvidos e Deus vem, Deus vem, e Deus chega. E esse também é o modo de sentir Deus na sua vida, de nós sentirmos dentro, dentro do mistério de Deus.

Um outro modo é aquele que Jesus nos revela. Jesus revela-nos Deus a partir da experiência da relação. Jesus sente-Se sempre em relação com o Pai. “Tudo o que o Pai tem é Meu.” Mas Ele também diz o contrário: “Eu estou aqui para fazer a vontade de Meu Pai, em Mim está tudo aquilo que é de Deus.” E Jesus fala continuamente do Espírito: “Eu ainda não vos digo todas as coisas, é o Espírito que vos dirá.”

Então, Jesus conjuga Deus em relação. Quando Jesus diz “Deus é Pai”, o que é que Jesus quer dizer? Quer dizer que nós vivemos numa relação com Deus – a nossa experiência de paternidade, essa relação fundante, essa arquitetura íntima, decisiva daquilo que somos. É assim em relação que nós podemos entender Deus.

Nós não podemos entender Deus falando Dele na terceira pessoa do singular, falando do “Ele”, “Deus é isto, Deus é aquilo.” Não, nós entendemos Deus, compreendemos Deus mudando da terceira pessoa para a segunda pessoa, quando tratamos Deus por um “tu” da nossa vida. Quando sentimos que há uma relação, que há um conhecimento operativo, que há um conhecimento que nós descobrimos dentro de nós. No fundo, quando Jesus diz: “ Deus é Pai”, o que é que Jesus está a dizer? Nós descobrimos o nosso pai onde? Descobrimos o nosso pai dentro de nós. Fora de nós existe aquela pessoa durante um tempo da nossa vida, mas é sobretudo dentro de nós que essa figura se perpetua, que essa figura nos estrutura. O que é um pai? É uma relação que nós sentimos que existe com a própria vida, com uma modalidade de existência que nos constrói. E assim, é sentirmo-nos também filhos – e como a filiação é uma dimensão tão fundamental da vida, sentir-se filho.

E depois sentir-se dentro de uma lógica de dom. Há um rio que corre, e esse rio é o Espírito Santo. Um grande pintor, talvez um dos maiores pintores cristãos do oriente, tem muitos ícones em algumas catedrais russas, é o Andrei Rublev, ele pintou a Santíssima Trindade. Às vezes nós pensamos: “A Santíssima Trindade é uma abstração, eu nem quero pensar.” Não, ele fez uma imagem da Santíssima Trindade muito bela usando a narrativa do livro do Génesis, do anjo e depois dos três anjos que Abraão acolheu em sua casa e que lhe vêm anunciar que ele vai ter um filho. E ele colca esses três anjos sentados à volta de uma mesa e à volta da mesa está um cálice. O segredo daquela imagem é que a posição dos três, um a meio e um de cada lado, o espaço vazio entre as imagens desenha também um cálice. Quer dizer, eles não estão sentados à volta de um cálice, eles são o cálice. Deus o que é que é? Deus é o cálice, Deus é o dom, Deus é a oferta de si, Deus é o amor. Deus é essa dádiva permanente, esse ser em relação. E é a este Deus que nós temos de rezar. É neste Deus que nós, cristãos, acreditamos. É com este Deus que nós nos temos que ver, como mulheres, como homens, na nossa história. É este Deus que nós queremos seguir, que nós queremos louvar e que nós queremos imitar na nossa vida, tornando-nos nós próprios também esse cálice, também esse dom. Sentindo que o que é divino não é a solidão, o que é divino é a relação. E aprender isto profundamente. Não é quando eu me fecho em mim, eu tapo a cara, eu me desligo que eu sou divino. Não, eu sou divino quando entro em relação e quando eu percebo que estou em relação, quando eu me descubro em relação, quando eu me descubro nessa torrente eterna de vida. Aí eu sou divino e descubro-me e descubro o sentido profundo de Deus.

Queridos irmãos, a festa de Deus. Nós estamos dentro Dele, somos Dele. A Bíblia também há de dizer que nós próprios somos divinos, nós próprios somos divinos. Divinos, não no sentido que nos confundimos com Deus, mas divinos no sentido de que Deus habita em nós, de que há uma centelha de Deus dentro de nós. O sopro de Deus, o Espírito de Deus habita-nos. E como é que sabemos que somos divinos? Pela relação, pela arte da relação, pela arte do encontro, pela arte do dom. E, de facto, o amor é o grande espelho de Deus, é a grande gramática, a grande linguagem que dá a ver Deus.

Vamos rezar uns pelos outros. E hoje aqui, assim como estamos, de uma maneira que talvez não consigamos ver, mas conseguimos certamente crer: nós todos aqui, juntos, fazemos um cálice. Fazemos o desenho do grande dom.

Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade da Santíssima Trindade

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