Queridos irmãs e irmãos,

Umas breves palavras neste domingo da Paixão do Senhor, em que o mais importante é de facto escutarmos esta história. Hoje lemos a Paixão no relato segundo S. Lucas, que é o evangelista deste ano. Ouvimos a história da Paixão do Senhor. Ouvir esta história é tornar-se testemunha dela, ouvir esta história é ficar na posse do que ela significa, do seu conhecimento. A grande questão é o que é que cada um de nós vai fazer com esta história? O que é que cada um de nós é chamado a fazer com esta história?

É muito belo aquilo que hoje nos sabemos: que antes dos Evangelhos serem escritos propriamente com todos os relatos da vida de Jesus, já o núcleo central era precisamente este relato da Paixão, que quando se reuniam à volta da eucaristia os cristãos recordavam a Paixão do Senhor. Por isso, a Paixão é o núcleo vital, o núcleo central dos acontecimentos de Cristo. É esta história que nos funda, que nos dá identidade, que nos faz ser.

Marguerite Yourcenar, a grande escritora, dizia que é uma das mais belas histórias do mundo, e é. Está aqui tudo, está o mundo inteiro, estão os personagens, está a nossa vida. Mas é mais do que isso, é mais do que uma bela história, é o lugar onde a nossa vida se reflete, se vê mais profundamente, e onde a nossa vida encontra o seu resgate, encontra a sua luz.

Eu queria de modo muito telegráfico sublinhar apenas três palavras daquelas que ouvimos neste longo relato da Paixão, para que elas continuem a reverberar ao longo desta Semana Maior, desta semana das semanas que nós somos como cristãos chamados a viver e que é o nosso útero. Nós cristãos somos formados nesta semana, é a semana da nova criação, da nossa recriação como mulheres e como homens cristãos.

A primeira palavra é uma palavra que Jesus cita da própria Escritura. Jesus diz aos discípulos: “Estejam tranquilos com toda esta violência ao vosso redor, deixai acontecer para que se cumpra o que de Mim está escrito: «fui contado entre os malfeitores».” Jesus é aquele que desce até à ínfima condição humana. Ele aceitou voluntariamente ser assim. Como lembra o grande hino cristão que S. Paulo nos recorda hoje na Carta aos Filipenses: “Ele esvaziou-se a si mesmo.” Jesus esvaziou-se e quis ser contado entre a miséria humana, entre os infernos da nossa vida. Quis ser contado, quis ser encontrado no meio da nossa fragilidade para que nada nos possa separar do amor de Deus. Hoje, cada mulher e cada homem, hoje, cada um de nós sabe que qualquer que seja o lugar em que se situe Jesus está a seu lado e abraça-o. Jesus abraça a nossa condição pecadora, Jesus abraça a nossa miséria, Jesus abraça a nossa inconsistência, Jesus abraça o inacabamento da nossa vida, Jesus abraça o que gostamos e o que não gostamos, Jesus abraça o que lamentamos que tenha acontecido, Jesus abraça tudo em nós.

“Eu fui contado entre os malfeitores.” Quer dizer: “Eu estive a teu lado, Eu estava a teu lado, nunca estive longe de ti, nunca nada nem ninguém te separou do meu amor.” E é esta promessa de amor, é esta aliança de amor que cada um de nós é chamado a sentir.

Depois a palavra que as autoridades, até um dos ladrões que está pregado ao lado de Jesus numa cruz, grita a Jesus: “Salvou os outros, salve-Se a Si mesmo!” É uma boa entrada para perceber o mistério de Jesus. Porque é que Jesus salvou os outros e não Se salva a Si mesmo? Porque para salvar os outros nós temos de nos esquecer de nós mesmos. Para salvar os outros, para colocar os outros em primeiro lugar, para levar os outros aos ombros, para encher os outros do excesso de amor que é a misericórdia, para dar vida aos outros, para entusiasmar os outros, tantas vezes nós temos de morrer, temos de ficar para trás, temos de ficar em último lugar, temos de permanecer em silêncio, temos de dar o que temos e o que não temos, temos de esvaziar-nos, temos de ficar sem nada para poder dar aos outros a vida, para poder gerar a vida nos outros.

Salvou os outros, não pode salvar-Se a Si mesmo. Esta impotência de Jesus, esta incapacidade de Jesus ser, esta imobilidade de Jesus, esta passividade de Jesus, este silêncio de Jesus durante a sua Paixão, estes braços amarrados a uma cruz que já não podem fazer nada. Jesus não pode fazer nada, não pode dizer nada, mas este nada é o princípio da vida.

Por isso, queridos irmãos, a grande escritora brasileira Clarice Lispector dizia: “A Paixão de Cristo é a Paixão do Homem.” Porque Nele nós temos a lição, no Crucificado, Naquele que levantamos da cruz, nós temos o caminho, temos o mapa da nossa viagem. Salvou os outros não pode salvar-se a si mesmo: não conheço melhor definição para o amor.

A terceira palavra é a última palavra de Jesus: “Pai, em Tuas mãos entrego o meu espírito.” Lembro-me de uma peça musical escrita pelo nosso querido João Madureira que se intitulava “Pai”, “Pater”. A mim tocou-me muito a forma como o João interpretou a palavra “Pai”, porque um artista é capaz de nos fazer perceber muitas coisas. Quando eu rezava o Pai Nosso, eu dizia apenas uma vez a palavra “Pai”, depois de ouvir a composição do João Madureira eu perco a maior parte do tempo a repetir: “Pai, Pai, Pai, Pai, Pai, Pai, Pai, Pai, Pai…” E depois é que vem tudo o resto, mas eu percebi que a parte mais importante é o Pai. E agora imaginemos o que é que Jesus sentia, com que emoção, com que dramatismo, com que verdade, com que sopro de vida Jesus disse pela última vez a palavra “Pai”, o que foi esta palavra que o mundo ouviu Jesus a dizer pela última vez, a palavra “Pai” pouco antes de expirar.

E é isso o grande testamento de Jesus, a grande herança, o que Ele nos oferece. Jesus dá-nos um Pai, dá-nos a possibilidade de chamarmos a Deus “Pai”. Não um pai teórico ou abstrato, mas um pai, pai, pai, pai todas as vezes, todos os tons da voz, todas as horas da nossa vida, com todos os silêncios, com toda a leveza, com toda a transparência e com toda a noite escura. Nós em Deus temos um pai, Jesus mostrou-nos o rosto do Pai.

“Pai, nas Tuas mãos entrego o meu espírito.” Queridos cristãs e cristãos, vamos começar esta que é a semana que nos define, é a Semana Maior. Não há cristãos sem a recriação que acontece nesta semana. Não são só as liturgias mais longas, é a oportunidade de estarmos no ventre de Deus, no ventre de Deus e estarmos a ser gerados, recriados no Seu Amor e na Sua Misericórdia, colocando em Jesus os nossos olhos, aprendendo Dele a ser, o que significa ser, o que significa acreditar, o que significa amar, o que significa perdoar, o que significa aceitar e o que significa entregar-se por inteiro, entregar-se no Espírito, completamente nas mãos do Pai.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo de Ramos