Queridos irmãs e irmãos,

Nesta cena do Batismo, que este ano nós lemos na narrativa do evangelista S. Lucas, o cenário é muito importante. Porque João Batista, de forma deliberada, quis construir um lugar simbólico. Então, possivelmente, ele que era ligado à dinastia sacerdotal (o seu pai segundo o próprio S. Lucas nos conta, Zacarias, era um sacerdote do templo), ele que vinha dessa linhagem dinástica, afastou-se de Jerusalém e foi para as margens do rio Jordão.

O rio Jordão não é um lugar inocente para João escolher, porque o Povo de Deus entrou naquela terra pelo rio Jordão. O rio Jordão foi a porta de entrada daquela terra. Quer dizer, foi o momento zero daquela história. Antes de tudo, de tudo o que se construiu, de tudo o que se fez, antes mesmo da cidade de Jerusalém e do Templo e de toda a máquina sacerdotal, o rio Jordão, aquele humilde rio, ali naquela planície sem tamanho, aquele humilde fio de água foi o lugar por onde o Povo de Deus passou para entrar na terra prometida.

Então o quilómetro zero é a possibilidade de dizer assim: “Vamos rebobinar o filme, vamos passar a história para trás, vamos começar de novo.” E, no fundo, a proposta de João Batista, que encontrava um eco nas aspirações disseminadas no Povo de Israel naquela época, era a construção de uma alternativa. No fundo Israel estava sobre o domínio Romano, não havia grande esperança de uma libertação e de uma vivência autêntica da própria palavra. Havia um messianismo, uma expetativa messiânica difusa e João sentiu-se chamado a construir uma alternativa.

Nós hoje conhecemos vários movimentos batistas e conhecemos, na história de Israel deste tempo, várias tentativas para construir uma alternativa ao modelo reinante em Jerusalém. João Batista também era isto, era uma pessoa, um carismático que se sentia chamado a um viver alternativo. Nesse sentido, S. Lucas não nos fala disso na passagem que nós ouvimos mas, quer a dieta de João Batista, ele se alimentar de mel e gafanhotos, quer a sua forma de vestir com uma pele de animal, um cinturão, é de facto alguém que quer comer e vestir de uma forma completamente diferente. Isto é, é alguém que quer instaurar uma rutura simbólica. E este desejo de João Batista é também um desejo partilhado porque muitos vão até ele para serem batizados por ele.

Este é um bocado o clima: há muitas expetativas no ar, há muito desejo de mudança, de construir um caminho diferente, há muitos sonhos. O próprio João Batista, que começa por encabeçar este movimento de rotura, a dada altura ele congrega em torno a si imensas expetativas: “Será ele ou não o Messias?” é a pergunta que abre a leitura do Evangelho que hoje nós lemos. Mas João Batista projeta mais longe a própria expetativa e diz: “há de vir um profeta escatológico. Ele batizará não na água mas no fogo, Ele será o profeta do fim dos tempos.” E também atira mais longe a esperança. É um dos trabalhos do profeta pegar nas expetativas do presente e atirá-las para um futuro maior, para uma escala maior, para uma dimensão mais larga.

E é neste contexto que aparece Jesus. E, sem dúvida, este contexto foi um contexto favorável a Jesus. No sentido de que as expetativas que primeiro se colocaram sobre João Batista foram depois transferidas para Jesus, os discípulos de João Batista foram depois discípulos de Jesus, os sonhos que primeiramente se viveram ali, naquela espécie de rebobinar da história ”voltemos ao princípio, comecemos de novo”, também foram potencializados por Jesus.

Mas o que é que foi decisivo para Jesus? O que é que fez Jesus ao descobrir-se chamado para aquela missão messiânica? Qual foi o seu clique, a sua luz, a sua iluminação? O que é que Lhe deu força para ser? O que é que O confirmou verdadeiramente? E é, no fundo, a pergunta que nós podemos devolver a cada um de nós: O que é que nos confirma? O que é que nos dá força para agir? O que é que nos empurra? O que é que nos motiva para os trabalhos de todos os dias, para as pequenas e grandes decisões de todos da nossa vida? O que é que nos atira mais para a frente?

Se nós formos responder a isto, muitas vezes até são coisas que se revelam infundadas, pensávamos que era uma coisa e depois saiu-nos outra, quisemos usar uma esperança que depois vimos que não era tão esperança quanto isso. Esta reflexão sobre o que é que determina a nossa vida é uma reflexão, eu diria, fundamental, alicerçante daquilo que somos. E aqui importa olhar por os olhos em Jesus. Jesus é mais um nesta fila para se batizar por João Batista, mas naquele momento alguma coisa de fundamental acontece. Os céus abrem-se e Jesus escuta esta voz. Se calhar os que estavam juntos também puderam escutar, mas é claramente uma voz dirigida para Jesus, porque é uma voz que diz “Tu”, por isso é sobretudo para Aquele. E o que é que Jesus ouve? “Tu és o Meu filho muito amado, em Ti coloco o Meu agrado, a Minha complacência, o Meu amor, a Minha estima, o Meu elogio, a Minha esperança, a Minha expetativa, o Meu deleite, é em Ti que Eu coloco o Meu coração. Tu és o Meu filho, é em Ti que Eu coloco o Meu coração.”

É claro que o ambiente de expetativa messiânica que Jesus encontrou foi muito importante para o pregador que Jesus foi, para o profeta, para o taumaturgo, para o anunciador do Reino que Jesus foi. Isso tudo foi o contexto político, o contexto sociológico, o contexto social.

Mas se nós queremos perguntar: Qual é o segredo de Jesus? O que é que o empurrou para aquela vida? O que é que o fez sair de Nazaré para os caminhos da Galileia? O que é que O fez assumir plenamente o Seu destino? Eu não teria dúvidas a dizer que foi esta experiência profunda de que Ele é o Filho, de que Ele é o Filho amado, e que Nele Deus coloca o Seu deleite, o Seu coração, o Seu agrado. No fundamento de toda a vida de Jesus está esta certeza de amor, de ser amado. E uma certeza de que fomos amados é uma força para sempre, é uma fortaleza para sempre.

Isto na vida de Jesus é muito claro desde o princípio. E é interessante que nós ouvimos isto no Batismo de Jesus e depois vamos ouvir no momento da Transfiguração, quando o destino tremendo, exigentíssimo de Jesus, aquele desfecho que é a Cruz se desenhava, ouve-se de novo a voz do céu: “Tu és o Meu filho, em Ti coloquei o Meu coração.”

Queridos irmãos e irmãs, o que é que nós somos aqui? Qual é o sentido de estarmos aqui juntos? Porque é que o Cristianismo se torna razão da nossa vida? Nós não somos apenas simpatizantes, partidários, militantes de Jesus. Nós estamos aqui porque cada um de nós faz aquela experiência que Jesus fez. Nós, como depois dirá S. Paulo, somos feitos filhos no Filho. Em Jesus nós descobrimo-nos filhos amados de Deus, e é essa a experiência fundamental.

É claro que os cenários podem ser uns ou outros, mais favoráveis ou mais desfavoráveis. Mas o fundamental é que cada um de nós sinta, oiça, escute no fundo mais silencioso da sua alma Deus a dizer: “Tu és o Meu filho, tu és a Minha filha, amados, em ti coloco o Meu coração.” Cada um de nós é depositário desse amor, e é a certeza desse amor a alavanca da nossa vida, a força que nos sustem, a porção de espírito necessária par nós podermos ser. Deus derrama o Seu Espírito em Jesus quando derrama o Seu amor. E também em nós. Nós somos recetáculos do Espírito, o Espírito derramado em nós porque esse amor está presente nas nossas vidas.

Por isso, nesse discurso inicial que S. Pedro há de fazer, e que nós proclamamos hoje na leitura do livro dos Atos dos Apóstolos, S. Pedro explica assim o fenómeno Jesus, diz ele: “Ele passou pelo mundo fazendo o bem porque Deus estava com Ele.” E é porque Ele está com Jesus que Jesus é Jesus. Como é porque Deus está connosco, porque nós temos a memória desse amor viva em nós, que nós somos capazes de ser, que nós somos capazes de vencer a noite, vencer a dificuldade, vencer a dúvida, vencer o cerco de tudo aquilo que afunila a vida, de tudo aquilo que nos tira o tapete. Nós ganhamos a força na certeza de que somos filhos, e somos filhos amados.

Nós vemos isso, por exemplo, na história de pessoas que resistem a coisas inimagináveis. Por exemplo, uma pessoa que consegue num campo de concentração não ser completamente aniquilado mas consegue manter a esperança. Qual é o segredo daquela pessoa? Se formos analisar, o seu segredo é uma imagem de amor que a pessoa tem dentro de si, que internalizou, que experimentou e que vai ser a sua força para sempre, para sempre. E não há ameaça nenhuma, não há peso nenhum capaz de esmagar essa experiência fundamental.

Queridos irmãos, que neste Ano Santo da Misericórdia cada um de nós sinta o desafio muito grande de reforçar, de avivar, de iluminar dentro do seu coração a experiência fundante do amor de Deus. Este é o ano para nós ouvirmos a voz do Pai: “Tu és o meu filho, tu és a minha filha muito amada.”

Contrariando em nós tantas barreiras, tanto desamor, acharmo-nos órfãos de Deus, acharmos que Deus não está presente, que Deus no fundo não nos ama, que Ele tem razões para não gostar de nós, ou tem razões para castigar-nos, ou tem razões para voltar-nos as costas. Desmentirmos estas imagens, estes caminhos labirínticos das culpabilidades que não levam a parte alguma e colocarmos no centro da nossa experiência religiosa a experiência do amor, de que somos amados de uma forma incondicional, de uma forma primeira. E que esse amor nos dê forças, nos dê criatividade, nos dê emoção, nos dê alegria, nos dê as competências necessárias para afrontarmos os trabalhos da vida.

É muito belo isto que ouvimos na primeira leitura do profeta Isaías a falar da missão do Messias. No fundo o que é que o Messias vai fazer? O Messias vai como um relojoeiro, como um ourives, vai restaurar os traços pequeninos e frágeis da vida, vai cuidar da vida, e vai dar à vida que está quase a deslaçar-se uma nova oportunidade. Vai amparar, vai proteger, vai avivar, vai confirmar. E é, no fundo, isso que nos é pedido a nós, esse trabalho que a vida nos pede de sermos ourives, miniaturistas a restaurar os pequenos laços quebrados da vida. Nós só vamos ter força para isso se tivermos bem presente em nós a certeza de que somos, como dizia o verso da Sophia de Mello Breyner Andersen, a certeza de que somos “olhados, amados e conhecidos.” Esta certeza que fez a diferença na vida de Jesus é esta certeza que faz a diferença na vida de cada um de nós.

Pe. José Tolentino Mendonça, Festa do Baptismo do Senhor

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