Queridos irmãs e irmãos,

Nós na natureza, entre os outros animais, encontramos a lei do mais forte como nas nossas sociedades, mas há uma coisa que é típica do ser humano que é a vingança. Os animais não se vingam uns dos outros. Nós temos esse impulso dentro de nós. Temos o impulso não só individualmente mas como sociedade de descarregar a nossa fúria, o nosso medo, o nosso temor, a nossa fragilidade. Descarregarmos em cima de uma vítima que nós mandamos para fora dos nossos olhos.

É aquilo que um filósofo de inspiração fortemente cristã, René Girard, trabalhou muito no esquema do bode expiatório. Ele diz que é muito fácil embarcarmos nesta lógica e dá o exemplo de S. Pedro. S. Pedro, que conhecia Jesus muito bem e que devia defendê-lo, quando no momento da Paixão estão ali à volta da fogueira e Jesus é preso já se percebe que aquilo tudo vai acabar muito mal. Há uma criada do Sumo Sacerdote que diz: “Olha lá, tu não és um deles?”, ele diz: “Não, não sou, não conheço esse homem.” E nega Jesus por três vezes.

René Girard diz que este é o desejo mimético, nós ficamos com o desejo de imitar a multidão, a massa e não temos a força de cortar e dizer: “Não, é preciso fazer outra coisa. Não, ele não tem a culpa toda.” Nós não podemos descarregar a nossa responsabilidade num bode expiatório que escolhemos para ser ele a carregar com as nossas culpas e com aquilo que todos tínhamos a responsabilidade de fazer e não fazemos.

Nesse sentido, a tradição bíblica e cristã vai noutra linha, que é dizer assim: em vez de transferir a responsabilidade, nós assumimos a culpa, nós assumimos a transgressão, nós assumimos o pecado. Nós vemos isso quer no profeta Isaías, nesta figura misteriosa do servo do Senhor, quer no autor da carta aos Hebreus, que faz uma belíssima teologia, mas que ao mesmo tempo é quase impenetrável, difícil para os nossos conceitos, que é a teologia de Jesus Sumo Sacerdote, Jesus como aquele que faz o sacrifício da sua própria vida, e que, no fundo, é isto que nós repetimos em cada Eucaristia.

O que é que está por detrás disto? Está aquilo que para nós é mais fácil: é transferir, é culpar o outro, é dizer “Se não fosse isto, se tu não tivesses dito aquilo.” É sempre o outro que tem a nossa culpa. E este, o Servo, Jesus é aquele que assume sobre Si o peso de muitos, aquele que assume voluntariamente sobre Si as culpas, os pecados, as fragilidades.

Por isso Jesus inverte esta lógica, a lógica que nos coloca como adversários uns dos outros, a lógica da competição, a lógica que nos faz querer salvar a nossa pele – queremos lá saber de como o outro fica ou não fica. Jesus ensina-nos a quebrar com esta lógica e a dizer: “Não, sou eu que carrego a culpa, e sou eu que dou a minha vida pelos outros.” Esta figura do servo sofredor que se oferece a si mesmo para ser espancado, para carregar sobre si os castigos todos, é a figura do justo, a figura da vítima da história – mas a figura da vítima que nós, na nossa cultura dominante, não queremos ver, não queremos saber, pois as vítimas não têm lugar, as vítimas que não nos incomodem.

A experiência bíblica e cristã coloca a vítima como um modelo para nós. Por isso é que Jesus é a vítima de expiação pelos nossos pecados, como vai dizer a carta aos Hebreus : “Mas é Ele, Jesus enquanto vítima, Jesus enquanto assume Ele próprio, enquanto aceita dar-Se, que Se torna para nós o grande modelo, que Se torna para nós o grande sinal, o grande ensinamento, a grande lição.

Como é que nós somos chamados a ter fé? Como é que nós somos chamados a viver? Somos chamados a viver à maneira de Cristo, cortando com este impulso que é tão forte em nós, o impulso de culpar os outros, o impulso de nos vingarmos, o impulso de nos sobrepormos e aceitarmos fazer o inverso. Fazer o inverso que é aceitar a lógica da dádiva, a lógica do dom, a lógica do sofrer pelos outros, a lógica do serviço aos outros.

Quando estes apóstolos vieram ter com Jesus a dizer “Senhor, senta-nos um à Tua direita e outro à Tua esquerda” quem não gostava? Quem de nós não gostaria de estar sentado à direita ou à esquerda do Senhor na sua glória? Mas Jesus diz: “Não é isso que é importante, o importante é tu tornares-te o servo de todos e o último de todos, porque o Filho do Homem veio para servir.” Nós identificamo-nos com Jesus na medida em que nos despojamos de nós próprios, na medida em que desconstruímos esta lógica que há em nós de agressividade, de autodefesa, de sobrevivência, de afirmação pessoa, na medida em que desconstruímos e nos colocamos a servir, a aceitar ser o último. Quem é que aceita ser o último?

Nós pensamos: “É o último quem não tem hipóteses de ser o primeiro”, porque no fundo o importante é ser o primeiro. Mas Jesus diz: “Não, o importante é ser o último.” É alguma coisa que nos faz tombar, é alguma coisa a que nós dizemos “É absurdo.” A nossa carne grita outra coisa, a nossa vontade quer outra coisa. Nós queremos o sucesso, queremos triunfar, queremos afirmar-nos, e Jesus diz: “Queres isso? Então o caminho é este: é o caminho do serviço, é o caminho do apagamento, é o caminho da humildade, é o caminho da aceitação vitimária. Aceita tu ser a vítima, coloca-te tu no lugar da vítima, no lugar do mais fraco, no lugar do mais pobre, no lugar do excluído, coloca-te aí, coloca-te aí. E então, receberás o batismo que Eu vou receber, e tomarás o cálice que Eu vou beber.”

É muito belo este trecho da carta aos Hebreus porque diz-nos o seguinte: “Por causa disto (por causa do gesto de Jesus, que é um gesto em rutura com aquilo que a carne e o sangue nos ensinam, e com aquilo com que a nossa cultura nos vacina), por causa de Jesus, cheios de confiança, nós podemos ir ao trono da graça a fim de alcançarmos a misericórdia.”

A partir do dia 8 de dezembro deste ano de 2015, nós cristãos vamos começar o Ano Santo da Misericórdia. Na bula de convocação da Igreja para o Ano Santo, o Santo Padre diz três coisas fundamentais, no meu ponto de vista.

Primeiro: Jesus é o mestre da misericórdia, Jesus é o rosto da misericórdia de Deus. Precisamos de colocar os olhos em Jesus. Isto é um desafio para cada um de nós porque, se calhar, nós já vimos Jesus, mas ainda não O vimos. Isto é, ainda não vimos um Jesus capaz de falar à mulher e ao homem que eu sou em concreto. Não é Jesus que todos nós amamos e adoramos, mas um Jesus que me ensina a viver nas pequeninas coisas. Não é nas grandes coisas, na vida eterna, na salvação da alma, não é nas grandes coisas, é nas pequeninas coisas que Ele é o Mestre, que Ele me ensina a viver. Então é descobrir Jesus como mestre, como mestre da misericórdia.

Depois, descobrir como a misericórdia torna credível a fé. Isto é, eu não posso dizer que sou cristão sem a misericórdia. Por isso, o Santo Padre diz: “A Igreja fala de Jesus e fala de Deus com credibilidade quando ela usa da misericórdia.” Então, a misericórdia torna credível a nossa fé. Se há um cristão no qual eu posso confiar é um cristão misericordioso, que usa de misericórdia, que sabe o que é a misericórdia.

E a terceira parte é um grande desafio para a Igreja, mas para cada um de nós, que é o que Jesus manda os discípulos fazer: “Ide aprender o que é «eu quero misericórdia e não sacrifício». Ide aprender o que é que isto significa.” Eu acho que é uma tarefa para cada um de nós nas nossas vidas, na nossa forma de viver, nos nossos passos, nas nossas relações: “Ide aprender o que é que isto significa.”

Na preparação para este Ano Santo da Misericórdia é tão importante centrarmo-nos em Jesus, é tão importante perceber que a misericórdia não é a cereja em cima do bolo, é o próprio bolo. Não é apenas um ornamento, uma coisa: “Ah, é tão bonito! Se tu fores misericordioso então é um plus.” Não, não é um plus, se tu não és misericordioso, és uma fraude. Tu só serás cristão na medida em que a prova da misericórdia for uma prova ganha na tua vida concreta.

Por fim, essa coisa em aberto, porque a misericórdia não é uma coisa com cinco pontos, fazer isto, fazer aquilo, fazer aquilo, fazer aquilo. A misericórdia é uma criatividade, há uma fantasia. A misericórdia é vivida por cada um de nós, há-de ter expressões muito diversas, muito singulares. E é a isso que nós também somos convocados pelo Papa Francisco neste Ano Santo, para aprendermos o que é a misericórdia.

Que cada um de nós sinta isto como um desafio às portas do Ano Santo. O que é que significa? O que é que vai ser para mim este Ano Santo da Misericórdia? O que é que vai ser? Porque é que é que ele se vai tornar decisivo nas nossas vidas? Temos de nos ajudar muito uns aos outros, temos de rezar muito. Temos de rezar muito uns pelos outros, para que a misericórdia seja de facto uma arte que todos nós praticamos em beleza, em liberdade, em esperança.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXIX do Tempo Comum

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