Queridos irmãs e irmãos

O Livro do Génesis, que hoje lemos no contexto da grande solenidade da Imaculada Conceição de Nossa Senhora, coloca-nos a questão das origens e da transgressão das origens.

Nós perguntamos: o que está no princípio do Homem? A própria cultura judaico-cristã, mas também a cultura ocidental não religiosa, olha para o fundamento humano como uma espécie de crime original, de pecado original.

Sentimos que há uma culpabilidade e uma fratura na nossa consciência, que como que nos funda. Esse mal é algo que nos acompanha, que está presente no mundo quando nascemos, que nos contagia. É alguma coisa para a qual não temos explicações. Na nossa história individual podemos encontrar as explicações, mas há sempre alguma coisa sobre o mal que fica por explicar, porque é um mistério enorme.

Nós não conseguimos iluminar, racionalmente, este sentimento de culpa, de falha, de transgressão que aparece na história do Homem. Muitas vezes, é o único patamar para justificar aquilo que vemos de violência sem sentido, puramente gratuita, de exercício de maldade prepotente. Nós pensamos: mas o que é isto? Como é que o ser humano é capaz desta coisa hedionda? A verdade é que ela existe. Olharmos para a natureza humana não é sermos pessimistas, mas é percebermos que, na nossa natureza, o mal está presente. O mal está, e é possível o mal existir.

Como é que ele entrou na nossa vida? A Sagrada Escritura fala-nos por metáforas, fala-nos por símbolos. Na história desta desobediência original está uma tentativa de explicação teológica pela fé, de alguma coisa que depois atormenta tanto a nossa realidade. Todos nós sentimos esta vulnerabilidade, esta fragilidade moral, este mal que tantas vezes nos visita e que não sabemos de onde vem, que é maior do que nós.

Mas será que é isso que explica o mistério da vida do homem? Será que é isso que explica o que eu sou como mulher e como homem?

O grande filósofo cristão, Paul Ricoeur, que pensou muito a questão do mal original, propõe que esta reflexão sobre o mal não nos desvie de uma outra, mais fundamental, que é a reflexão do bem fundamental. Ele diz que mais do que falarmos do pecado original – que não podemos simplesmente descartar (eu acho que às vezes facilmente nós descartamos), pois tem um sentido que se calhar precisamos de reinterpretar, dado que ele expressa uma realidade humana fortíssima – mais do que falarmos do pecado original, devíamos colocar os olhos na Graça original.

Cada um de nós, mais do que fruto de uma transgressão, de uma desobediência ou de um crime original, é fruto de uma Graça original. É absolutamente comovedor este começo da Carta aos Efésios que hoje nós proclamamos. Porque é a frase mais comprida do Novo Testamento: no texto original grego são 24 verbos, alinhados, sem qualquer ponto, só no fim é que tem um ponto. É uma frase, todo o texto que hoje lemos, é uma frase que se lê quase sem respiração. E essa frase é a visão sobrenatural do Homem.

O que é que é o Homem para Deus? E então nós lemos isto: “Bendito seja Deus porque Ele nos abençoou com toda a espécie de bênçãos em Cristo. Ele nos escolheu para sermos santos e irrepreensíveis, Ele nos predestinou para sermos Seus filhos adotivos por Jesus Cristo.”

Nós fomos constituídos herdeiros, fomos predestinados conforme a decisão da Sua vontade, para sermos um hino de louvor da Sua graça. Reparem, nós somos consequências, somos um fruto da graça de Deus. É verdade que em nós encontramos também este enigma do mal, mas maior do que esse enigma é o enigma do bem. É o enigma do amor, que nos habita desde a raiz. É tão fundamental que cada um de nós sinta que o olhar de Deus para a sua vida, para a sua história concreta, é um olhar de amor. Deus olha para nós e diz: ”Minha filha amada, meu filho amado, Eu sonhei contigo desde sempre. Eu enchi-te de todas as bênçãos, Eu fiz de ti o meu herdeiro, o lugar da minha beleza, o lugar do meu louvor.”

É com estes olhos que temos de olhar para a nossa vida e para a vida uns dos outros. Como lugares, moradas da própria graça, da própria divindade, da própria transcendência. Cada um de nós é uma história sagrada e, nesse sentido, tem de haver uma revitalização da vida. É verdade que o nosso olhar tem de ser um olhar adulto para perceber o que é que nos habita, perceber mesmo o mistério do mal, perceber como ele se torna táctil. Mas, meu Deus, a que distância o mistério do bem deixa o mistério do mal. Por isso nós não podemos ser pessimistas.

Um cristão não desarma nunca, nunca, nunca. Um cristão não desarma. Há sempre caminhos, há sempre soluções, há sempre possibilidades. Um cristão é um antídoto contra o irremediável. Para um cristão nada, nunca, não tem remédio. Tudo é possível porque nós fomos olhados, olhados por Deus, nós fomos declinados pelo Seu amor, pela Sua misericórdia. Por isso, a nossa vida tem um valor, a nossa vida vale mais do que nós próprios, tem outro valor. Por isso o Advento, o Deus encarnado, é um investimento na vida da pessoa humana. Nós temos de sentir que Jesus, cruzando os nossos caminhos com os Dele, tornou a nossa vida preciosa. É isso que é preciso testemunharmos, como cada vida, a nossa vida, é uma coisa preciosa, que temos de tratar com veneração. Que temos de tratar com aquela atenção, com aquela dedicação que dedicamos ao bem mais raro, mais precioso que tenhamos.

Hoje, celebramos a festa da Imaculada Conceição e, na nossa caminhada do Advento, Maria aparece também como um modelo para construirmos a nossa própria vida no seguimento dela, colocarmos, atirarmos para ela o nosso coração. Ontem víamos a imagem de João Batista, hoje temos a figura de Maria. E Maria é construída com três grandes traços perfeitamente admiráveis:

Primeiro, Maria é uma mulher da escuta. Ela não está desligada. Ela vive numa porosidade, ela deixa-se visitar, no coração dela e na vida dela ela tem as portas abertas. Às vezes vivemos uma vida autista, completamente desligada, vivemos na nossa cápsula, no nosso mundo. Nem um anjo de Deus pode visitar-nos. Estamos cegos e surdos ao que quer que seja, queremos lá saber, queremos lá ver. Uma vida assim não é uma vida visitável. Nada nos visita. Às vezes passam-se semanas e meses e nós não ouvimos nada, não vemos nada porque também não estamos disponíveis. Não temos as portas do nosso olhar e do nosso coração abertos à vida, não nos deixamos surpreender. Quando, a dada altura, começamos a caminhar pela vida fora a achar que já nada nos surpreende, que já sabemos de tudo, entramos num desalento e num desânimo, e mesmo num ressentimento em relação à vida que nenhum anjo nos vai visitar assim. Um anjo só nos visita quando temos o coração desarmado, quando estamos disponíveis para a surpresa, disponíveis para acolher, para acolher a vida e essa é a coisa mais bela. Mesmo na nossa fragilidade, naquilo que nos fere, naquilo que sabemos e não sabemos, deixar que a vida passe por nós, que a vida fale, que a vida nos diga, escutemos. Um ver que seja um ver, um ouvir que seja um ouvir, um estar que seja um estar. Estarmos. E esta hospitalidade nós percebemos que Maria tem, ela está ligada.

Depois, Maria é de uma honestidade a toda a prova, a toda a prova. Às vezes nós falseamos, quer dizer, sabemos um bocado cinicamente que aquilo não é bem assim, mas vamos estamos na festa, estamos a acompanhar, não estamos mas estamos. Maria é de uma honestidade a toda a prova. Quando o anjo lhe diz: “Ave. O Senhor está contigo.” Ela fica a pensar: “Mas o que será isto? O que será isto?” E quando o anjo lhe anuncia o que vai acontecer, ela pergunta: “Como é que isso pode ser, se eu não conheço homem?” Honestidade, honestidade. Porque Deus não falseia, não é um ornamento para a nossa humanidade. Não. Nós temos de ser salvos com verdade, com a nossa verdade, e é importante fazer perguntas a Deus. É importante abrir o nosso coração mas colocar a nossa razão. A fé não é apenas um sentimento onde vamos entretidos, não, não é um entretenimento, é a partir daquilo que eu sou. Por isso, é importante que eu seja profundamente honesto na minha vida espiritual, profundamente honesto. Um sim que é um sim, um não que é um não, uma pergunta que é mesmo uma pergunta. Não andar ali, num jogo de mascaramento, não. Maria põe-se na sua verdade. Não são obstáculos que ela põe, mas também é uma reflexão a partir da sua própria vida. “Diz-me como é que pode ser, diz-me, eu não estou a ver como. Explica-te.” Esta honestidade é alguma coisa que nos purifica muito. Custa muito ser honesto a dada altura, e ser honesto mesmo na nossa relação com Deus. Custa-nos muito, pomos subterfúgios, preferimos fazer de conta, não ouvir, ou não ver, ou virar costas, ou adiar. Maria coloca as questões. Porquê? Porque ela está a expor-se. Honestidade é uma forma de exposição. “Olha, a minha condição é esta e eu não vejo como é que isso possa ser.” Esta atitude de Maria é muito desafiadora para as nossas vidas.

Por fim, Maria descobre neste encontro com o anjo que a sua vida está ao serviço de uma vida maior, de um projeto maior. Isto é, que a vida não começa e acaba nela, não começa e acaba nos sonhos que ela teve para a sua vida, nos desejos que ela teve, com certeza, no coração de rapariga sonhadora que ela era. A vida não acaba no perímetro dos desejos e dos sonhos que ela fez de felicidade para a sua vida. Mas o Senhor chama-a a colocar-se ao serviço de uma felicidade maior, imprevista, com a qual ela não tinha nunca sonhado, nem poderia sonhar. Mas o Senhor diz: “Olha, a tua vida é para servir uma vida maior, para servir uma coisa maior.” E Maria diz: ”Eu sou a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a Tua palavra.”

Queridos irmãos: Maria tem esta capacidade de escutar e acolher a vida, de ser visitada, de não viver com a porta fechada. Maria deixa-se visitar. Tem esta honestidade muito grande, esta exposição, e depois esta compreensão de que a vida não é apenas a realização da felicidade que eu pensei para mim próprio, mas que é a compreensão de que estou ao serviço de uma história maior, de uma história que me ultrapassa, e na qual o Espírito Santo me vai dar a força de participar, vai-me dar a competência de ser, colocando-me inteiramente ao serviço.

São três atitudes que nos ajudam muito a viver este Advento. Vamos pedir ao Senhor que nos ajude neste caminho, que é um caminho também de transformação. Nós vamos chegar ao presépio na medida em que sentirmos que Ele vai nascendo dentro de nós. Nós só podemos reconhecer Aquele que nasce se já o trouxermos nascido no fundo da nossa alma.

Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade da Imaculada Conceição

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