Queridas irmãs e irmãos

Esta semana estive em Milão e, pela primeira vez, pude ver a “Última Ceia” do Leonardo Da Vinci.

Fui a Santa Maria delle Grazie, com muita paciência lá esperei, e pude finalmente estar diante do quadro, que é um fresco no refeitório daquele convento. Nós vemos as imagens em livros e em postais, mas quando estamos diante delas parece que as vemos pela primeira vez. E é espantosa aquela “Última Ceia” do Leonardo da Vinci. A mim o que me marcou mais foi que aquele momento é uma grande conversa. Ao contrário do que pensamos, que na “Última Ceia” está toda a gente muito calada, muito compenetrada à volta do que está ali a acontecer e do que Jesus está a dizer, não, aquilo é uma conversa pegada, uma discussão sem fim, um desassombro, um desconcerto cheio de movimento. Estão os doze discípulos organizados em grupos de três: três, três, três, três e todos à conversa uns com os outros, em conversas cruzadas, a falar, a perguntar, uns muito atónitos de braços abertos, como que a perguntar “o que é isto?”. De facto, eu pensei, isto tem alguma coisa de verdade em relação à eucaristia, porque mesmo que estejamos quietos no nosso lugar, a escutar ordeiramente, a verdade é que à volta desta mesa nós estamos aqui por causa de uma discussão, de uma conversa que temos connosco próprios, uns com os outros e com o próprio Deus. Nós estamos aqui não apenas para nos pacificarmos, não vimos apenas à busca de um momento de tranquilidade na nossa semana. Este momento, ao mesmo tempo, é um momento de grande alvoroço porque somos trazidos aqui, também, por grandes perguntas, grandes questões que habitam o nosso coração. E uma das perguntas é, de facto: Como viver uma vida feliz? O que é viver uma vida feliz? O que é que Deus quer de mim? São perguntas que, mesmo em silêncio, cada um de nós traz até aqui, domingo a domingo. Qual é o meu caminho? O que é que eu hei-de fazer? A palavra de Deus hoje, pela boca de Jesus, trata precisamente disto, e trata, como é normal, com uma grande capacidade de nos desconcertar. Nós conhecemos as leis, temos por exemplo uma Constituição da República que é a nossa lei fundamental como cidadãos, como país. Temos o Código Civil, essas leis todas, a lei de trânsito, …temos as leis todas. Mas não há nenhuma lei que nos mande amar. O amor parece alguma coisa que nenhuma lei nos pode pedir. A lei pode pedir que eu seja respeitador, que eu seja cordial, que eu pague os meus impostos, que eu seja solidário, que coopere. Mas nenhuma lei me obriga a amar. Porque, na nossa experiência, o amor é alguma coisa que está para lá das leis, o amor é alguma coisa puramente gratuita que nasce no nosso coração. E pode nascer ou não nascer, mas não somos obrigados a amar. Contudo, o discurso cristão é um discurso paradoxal. Porque quando vêm perguntar a Jesus: “Olha lá, qual é o maior mandamento da lei?” Jesus diz: “É o amor.” Então nós somos obrigados a amar? Então o amor é também um mandamento? Ou o amor é uma eventualidade, é uma coisa gratuita, é um chamamento que a gente pode ter ou não? Para Jesus o amor não é apenas episódico, não depende apenas da nossa vontade. O amor tem de estar colocado como coração da própria lei. Uma lei que tem no seu coração o amor tem de ser uma lei completamente diferente das nossas. Porque as nossas são para orientar uma boa ou uma justa convivência social. Mas a lei de que Jesus fala é uma lei que quer mais da vida, que não se basta com pouco. Se no centro da lei está o amor, então isso quer dizer que nós temos de refazer tudo. O que é que está no centro da nossa vida? O que é que está no centro das nossas relações? O que é que está no centro da minha relação com Deus? Quando pensamos nisto com honestidade se calhar não é o amor que surge em primeiro lugar. Se calhar é muito mais a procura de uma convivência, de uma justa relação. A procura de um lucro, de um proveito, a procura de uma sobrevivência. Mas não é o amor que está ali e, contudo, Jesus diz “o cristão é um especialista em amor”. A relação que tem com Deus é antes de tudo uma relação centrada no amor. Ora, uma relação centrada no amor é uma relação livre, é uma relação de afeto, é uma relação de dedicação, é uma relação de conhecimento mútuo, é uma relação de intimidade. A verdade é que muitas vezes estamos longe disso. A relação que temos com os outros muitas vezes é uma relação de puro uso, de pura conveniência, quando não é até de aproveitar, aproveitar os outros para os nossos planos e para os nossos projetos, sem ter em conta a realidade dos outros. Contudo, Jesus diz: ”que a vossa relação com os outros seja marcada por isto: amar”, “ama o outro como te amas a ti mesmo”. Queridos irmãos, é uma imensa novidade. Se a gente se pusesse aqui a discutir, fazíamos uma cena ainda mais extravagante e desconcertada que a última ceia do Leonardo da Vinci. Porque se nos puséssemos a discutir o que é que está no centro da nossa vida – E será que é possível no centro da nossa vida estar o amor? – eu não sei se nós estaríamos de acordo, não sei se estaríamos aqui bem sentados numa boa paz de espírito. Esta semana, falando com um amigo sobre o Evangelho ele diz “Isso é impossível. Isso é para vocês cristãos que têm esses idealismos, essas utopias. Isso é impossível.” Eu não sei se é possível ou não, digam-me vocês, é possível ou não? Nós confrontamo-nos com esta palavra: isto é possível ou não é possível? Não sei. Há uma coisa que eu sei: é que isto só é possível se, previamente, nós fizermos a experiência do amor de Deus. Eu acho que quem nunca fez a experiência do amor de Deus, do que significa o amor de Deus na sua vida, um amor incondicional, um amor total, um Deus que envia o seu próprio Filho para dar a sua vida por nós, um Deus que espera por todos sempre, um Deus que não desiste de ninguém, não desiste de mim, nunca, nunca, se eu não fiz até ao fundo esta experiência de amor, se eu não vivo da contemplação e da certeza deste amor, eu não sei como é que é possível colocar o amor no centro da vida. Acho que é simplesmente uma daquelas coisas bonitas que Jesus disse mas que já não é para nós, já não vamos a tempo de viver isto.

Queridos irmãos, não é fácil, não é fácil, este Jesus. E nós não o vamos resolver nesta homilia, nem o vamos resolver hoje. Cada um de nós leve o problema Jesus para casa. As palavras que Ele diz são palavras que nos tiram do sério, são palavras que nos acordam porventura para outra realidade, são palavras que nos dão outros critérios, mas estamos dispostos a vivê-los ou não? E como é que está a ser o caminho da nossa relação com estas palavras que despertam em nós tamanha tensão, tamanho espanto? Jesus é um problema, é uma conversa que a gente tem também connosco próprios. É importante que cada um de nós leve esta conversa para a sua semana. O que Jesus me pede é possível ou não é possível? E se é possível, como é que é possível? E se não é possível, como é que isso não é possível? Como é que eu cruzo os braços? Como é que eu o oiço e não consigo viver? Eu penso que precisamos de ter esta conversa. Porque isto é o centro, e se a gente não põe perguntas, não põe questões, não diz “Isto não é possível. Isto não é para mim.”, não se volta de novo a reencontrar com esta palavra com frescura, com espanto, acho que não estamos a viver o caminho cristão.

Eu lembro-me que na primeira paróquia onde eu estive, na Madeira, era jovem padre, havia uma senhora, uma cristã, que tinha mais de oitenta anos, uma daquelas, nós diríamos, beatas da paróquia, e eu também pensava assim com um certo preconceito dela, mas depois quando a conheci, ela deixava-me a milhas. No fundo, a grande questão desta mulher era: “É possível construir uma espiritualidade baseada no amor ou não? E nós podemos mesmo amar ou não podemos? E conseguimos ou não conseguimos?” Era a questão dela e não queria respostas fáceis, não queria discursos redondos. Não. Era ou não era possível? Eu aprendi muito com a exigência daquela senhora que queria saber se era ou não era assim. Penso que todos nós, em todas as idades, somos chamados a colocar esta questão assim, com verdade.

Queridos irmãos, nós não temos muitas respostas mas Jesus incendeia, Jesus mete fogo na nossa paz, Jesus tira-nos a campo, tira-nos a terreiro. Esta questão do amor é uma daquelas questões com a qual a gente tem de lidar sempre. Mesmo que a gente diga “Ah, não é possível.” Mas depois ela vai-nos aparecer à frente e vai-nos pedir respostas cada vez mais concretas. A decisão ‘sim’ ou ‘não’ não é uma decisão filosófica, é uma decisão muito concreta. Se há o amor então o que é que tu fazes? Então como é que vives? Qual é o teu programa? Como é que ages? Aquela ceia do Leonardo da Vinci fez-me pensar aqui na nossa comunidade, aqui na nossa Capela. No fundo, como é que esta palavra nos põe a pensar, nos põe a discutir uns com os outros, nos põe a conversar à mesa das nossas famílias, com os nossos amigos? Porque se isto não é um problema que nós levamos connosco, então não o estamos a habitar verdadeiramente, e é isso que nós vamos pedir: a força de habitar este Cristianismo que, muitas vezes, não é fácil e para o qual, muitas vezes, nós não temos uma resposta pronta, mas que é um combate que dá sentido às nossas vidas.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXX do Tempo Comum

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