Queridos Irmãs e Irmãos.

Celebramos hoje a festa do Bom Pastor. Quando nós pensamos nas primeiras representações da figura de Jesus, esta imagem do Bom Pastor é certamente aquela mais utilizada, pelos cristãos, desde o início.

Quando entramos nas catacumbas, nesses lugares onde os cristãos se reuniam às ocultas e ao mesmo tempo preservavam a memórias dos seus mortos, nós encontramos, em muitas delas, quer em escultura, quer gravada na própria pedra, a imagem de Jesus, o Bom Pastor.

Perguntamos, porque é que esta imagem, de certa forma, se sobrepõe às outras? É porque esta imagem é, de facto, muito completa.

Diz muito do modo como Jesus é, na nossa vida. Porque Jesus é o Pastor, no sentido de que Ele vive connosco, vive para nós, vive nesse cuidado, nesse acompanhamento. Nós somos o objeto do seu cuidado, do seu amor, da sua disponibilidade. E, como tantas vezes acontece, o Pastor conhece cada ovelha pelo seu nome, não as confunde, sabe a história de cada uma delas. Percebe como cada uma está, em cada dia, em cada momento.

Depois, há aquela maravilhosa parábola que o próprio Jesus contou de si mesmo: o Bom Pastor é aquele que é capaz de deixar as 99 ovelhas no redil e partir pelos montes à procura da ovelha perdida. Quando a encontra, coloca-a aos seus ombros, faz o caminho e diz: Alegrai-vos comigo porque encontrei a minha ovelha perdida.

Os símbolos, as imagens, nós sabemos, valem por mil palavras. Porque não falam apenas à nossa cabeça, ao nosso pensamento, falam também ao nosso coração. As imagens são uma forma muito especial de comunicação, precisamente porque elas cabem e não cabem nas palavras. Dizem de outra forma. Comunicam connosco de uma outra maneira.

Esta imagem de Jesus Bom Pastor sem dúvida que é uma imagem inspiradora daquilo que somos. É importante que Jesus seja o nosso Bom Pastor, que seja Ele o nosso Bom Pastor.

Hoje nós líamos este Salmo 22 ou 23, segundo a numeração quer grega quer hebraica, e deste Salmo que diz «O Senhor é o Meu Pastor», que é um dos mais conhecidos, nós podemos fazer dele a oração quotidiana e encontrar nele o consolo e a força de que precisamos.

O grande filósofo Henri Bergson dizia que rezar o salmo 23 era para ele sempre o momento mais fundo da sua espiritualidade.

Porque é a certeza não de um Deus distante e indiferente à nossa história, um Deus que paira filosoficamente sobre a nossa existência. Mas é um Deus que verdadeiramente está implicado na nossa situação.

Aliás, é interessante recordar que este salmo 23 foi um salmo muito discutido na tradição judaica. Porque alguns diziam, isso é uma heresia, é uma blasfémia. O que esse salmo diz é impossível porque atenta contra a omnipotência e a impassibilidade de Deus. Porquê? Porque a dada altura o salmo diz : «Ainda que eu ande por vales tenebrosos, de nenhum mal terei medo porque Tu estás comigo».

E então os Mestres perguntavam-se: Mas então Deus está no vale da sombra, quer dizer, no vale da morte, no vale da infâmia, no vale da vulnerabilidade, no vale do pecado. Deus está na nossa lama?

Nesse aberto implacável onde parece que a vida se dispersa? Deus está aí?

Como é que isso é possível? Isso põe em causa a fé no Deus único, no Deus absoluto.

A verdade é que ninguém nunca se atreveu a retirar este salmo 23 do conjunto dos salmos. E mais, ele é uma espécie de joia, é uma espécie de Santo dos Santos, no interior do saltério que é composto por 150 salmos. Este é, sem dúvida, o salmo mais lido, o salmo mais usado.

E, contudo, até parece uma heresia. Mas o amor tem que ter alguma coisa de heresia, tem que ter alguma coisa de sobressalto, de excessivo, de ir além das medidas, de ir além da própria razoabilidade. E o amor de Deus é isto. Deus parece que se nega a si mesmo para nos amar, e nos amar sempre e nos amar até ao fim.

Este é o mistério do amor de Deus. O Senhor torna-se escravo para poder estar junto de nós.

Queridos irmãos, é muito importante perguntarmo-nos se, de facto, Jesus é o Pastor das nossas vidas. Perguntarmos quem é que apascenta a nossa vida, às vezes no seu lugar, às vezes ocupando o próprio lugar de Deus.

Numa parede de uma prisão do Harlem em Nova Iorque foi descoberto um poema, escrito por um toxicodependente que estava ali preso. É um poema que é uma paráfrase do Salmo 23. E é verdadeiramente impressionante. Diz assim:

“A heroína é o meu pastor, ela sempre me faltará

Ela faz-me dormir debaixo das pontes e conduz-me a uma doce demência

Ela destrói a minha vida e conduz-me pelo caminho do inferno por amor do seu nome

Mesmo se eu caminhasse pelo vale da morte

Não temerei nenhum mal porque a heroína está comigo

A minha seringa e a minha agulha dão-me conforto”

É um poema que é um grito, mas nós podemos perguntar: o que é que colocamos no lugar do nosso Pastor? Este homem colocou a heroína. Nós o que é que colocamos?

Podemos colocar o dinheiro. Podemos colocar a ambição. Podemos  colocar a nossa satisfação pessoal. O nosso prazer. O nosso individualismo. Podemos colocar tantas coisas.

Rezar o Salmo 23 é também purificar o nosso coração. Desses falsos ídolos que nós colocamos no lugar de Deus a apascentar a nossa vida, a cuidar da nossa vida, a velar por aquilo que somos.

Neste domingo do Bom Pastor nós celebramos também o dia dos seminários, o dia das orações pelas vocações consagradas, no fundo, pela dimensão do pastoreio do povo de Deus.

É muito importante que peçamos ao Senhor que envie, em cada tempo, à sua Igreja, pastores dedicados à maneira de Jesus. Pastores dedicados ao seu rebanho, capazes de expressar na sua vida, nas suas atitudes, a própria imagem de Cristo, o Bom Pastor.

Vamos rezar pelos ministérios na Igreja e, de forma particular, por aqueles que têm esta missão junto dos irmãos, este encargo de apascentar, para que o Senhor também os conforte para que eles encontrem em Cristo também o Pastor previdente e possam traduzir na sua vida esse sentido.

Vamos rezar pelas vocações sacerdotais, para que o Senhor continue a despertar no coração dos jovens, mulheres e homens um grande desejo, de uma forma radical, também ela excessiva, também ela extravagante na sua radicalidade. Que o Senhor possa atrair jovens para se dedicarem às vocações que se ligam de uma forma mais íntima com pastoreio da própria Igreja.

Mas também é verdade que no seu conjunto, a própria Igreja, formada pelos pastores e pelos leigos, fazem um único povo de Deus, nós todos temos a responsabilidade ser pastores, de apascentar. Isto é, somos responsáveis por um ministério, que é um ministério de compaixão. Compaixão pela humanidade. Tantas vezes Jesus olhando para a multidão enchia-se de compaixão dela, porque eram como ovelhas sem pastor.

Às vezes nós, com uma grande facilidade, julgamos os outros e remetemos para o vale da morte, para o vale da sombra e somos implacáveis e castigamos, quando aquilo que nos é pedido, é essa grande vocação de misericórdia: o pastor é aquele que tem um olhar de misericórdia.

É isso que é pedido a cada cristão. Que possa exercer e ser servidor da misericórdia, servindo a humanidade frágil, a humanidade vulnerável. Que é humanidade, no fundo, que existe em cada homem, porque todos, todos, somos feridos pela fragilidade.

Pe. José Tolentino

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